Quando escrevi sobre Demolidor:
Redenção, eu achei que ia ser mais um texto nichado que só meia dúzia de
gente ia ler num fim de semana qualquer. E aí começaram a pingar os
comentários, o MCU dizendo que a HQ “não prometeu nada e entregou tudo”, o Alan
comparando com filmes tipo A Caça, e principalmente o Xandão aparecendo
dias depois com aquele post sobre o Thor encarando fanatismo religioso. Foi a primeira vez em muito tempo que senti um efeito em cadeia real no
blog: uma leitura puxa outra, um gibi esquecido desperta outra resenha, e por
aí vai.
Eu estava, inclusive, rascunhando uma continuação daquele texto sobre mega sagas. A ideia era emendar Infinito, Pecado Original, Guerras Secretas e companhia em mais um bloco de retrospectiva. Mas, quanto mais eu escrevia, mais sentia que isso era assunto para leitores muito específicos, dispostos a encarar um textão sobre cronologia, furos e retcons. E, olhando a reação de vocês a Redenção, me pareceu bem mais honesto fazer o movimento contrário: sair do macro e voltar para o miúdo do personagem.
Daí nasceu este post, preferi
montar um guia rápido e prático com histórias muito boas e pouco comentadas
do Demolidor, fora das fases óbvias de Miller,
Ann Nocenti, Bendis, Brubaker e Waid. Nada contra esses nomes,
pelo contrário. É justamente porque todo mundo já sabe que eles são o “arroz com feijão de luxo” do personagem que eu quis apontar para os cantos de
prateleira. O objetivo aqui é simples: te dar cinco opções concretas para colocar
na lista de leitura, sem precisar abrir um wikipédia de cronologia do universo
Marvel.
Se Redenção já te pegou pelo
estômago, a ideia é que pelo menos uma dessas daqui faça o mesmo. E, se você
nunca leu nada do Demolidor, talvez esse seja o empurrão que faltava para
entrar no universo dele por uma porta lateral, em vez de começar logo pelo
“grandalhão obrigatório” da vez.
1) “Tempo de Despertar”
(Daredevil vol. 2 #16–19 – Brian Michael Bendis &
David Mack)
Antes do Bendis virar “o cara do
Demolidor”, ele entra pela porta lateral com essa história que quase ninguém
coloca em lista de melhores fases. “Wake Up” é, tecnicamente, um arco do
título regular, mas ele funciona quase como um one-shot estendido sobre o Ben
Urich e um garoto catatônico ligado ao Homem-Púrpura. Matt aparece pouco,
quase sempre como rumor, sombra ou memória distorcida. É um gibi do Demolidor
em que todo mundo fala sobre ele, mas quase nunca com ele.
O peso está justamente nisso: ver
o impacto do universo do herói na cabeça de alguém que não tem como “dar reset”
depois. A arte do David Mack mistura aquarela, colagem, rabisco de caderno,
desenho infantil e enquadramento quebrado. Não é frescura gratuita; é forma
casada com conteúdo. Você sente a confusão do garoto e, ao mesmo tempo, a
exaustão do Ben, que tenta entender se vale a pena continuar sendo o repórter
que corre atrás do impossível enquanto a redação quer só clique fácil.
“Wake Up” não é lembrada como
“grande arco” porque não tem vilão de capa dura, não muda o status quo e não
rende splash page de pôster. Mas, em termos de identidade, ela faz algo
que poucos gibis do Demolidor fazem: mostra que o título também é sobre quem
fica no chão vendo os destroços. Se você gosta de A Queda de Murdock por
causa da presença forte do Ben Urich, essa aqui é leitura obrigatória e, ao
mesmo tempo, uma excelente porta lateral para apresentar o personagem a alguém.
2) Demolidor: Amarelo
(Daredevil: Yellow – Jeph Loeb
& Tim Sale)
Demolidor: Amarelo costuma ser
jogado naquela gaveta “série de cores do Loeb/Sale, legalzinha, um dia eu leio”. E fica lá, pegando poeira, enquanto todo mundo repete os mesmos três
encadernados de sempre quando fala do personagem.
A estrutura é simples e cruel:
uma longa carta do Matt para a Karen Page. Ele revisita o período do uniforme
amarelo, as primeiras aventuras, o encanto meio bobão de início de carreira, e
vai costurando tudo com a culpa de quem sabe exatamente onde essa história vai
terminar. O foco não é “como virei Demolidor”, é “como eu me apaixonei por você
e como estraguei tudo”. O herói ainda está tateando nesse papel, tentando
impressionar, flertando no escritório, equilibrando a memória do pai com esse
novo papel de justiceiro acrobata.
Tim Sale trabalha com layouts bem
limpos, mas cada expressão corporal carrega sentimento: insegurança, desejo,
tentativa de manter a pose de piadista enquanto o luto continua ali, latejando.
Amarelo funciona como contra-campo emocional das fases mais pesadas.
Quando você já leu Miller e companhia, essa minissérie bate como lembrança de
um tempo em que ainda havia espaço para ingenuidade. Quando você ainda não leu
nada, ela é uma introdução suave que já prepara o terreno para o tom mais
sombrio depois.
Não é a HQ mais obscura da lista,
mas com certeza é muito menos celebrada do que merecia.
3) “Partes de um Todo” (Parts of
a Hole)
(Daredevil vol. 2 #9–15 – David
Mack & Joe Quesada)
Entre o fim do Kevin Smith e a
chegada definitiva do Bendis, existe esse meio do caminho que muita gente pula.
“Partes de um Todo” é o arco que apresenta a Maya Lopez/Echo,
criado e escrito pelo David Mack com arte do Joe Quesada no modo “tudo que eu
posso inventar com página de quadrinhos, eu vou inventar”.
Maya é surda, indígena, filha de
um homem ligado ao submundo do Rei do Crime, com capacidade de reproduzir
qualquer movimento que observa. Em outra editora, isso viraria só mais uma
heroína “estilosa”. Aqui, Mack usa a personagem para desmontar a forma como
Matt se relaciona com mulheres e com o próprio passado. Ele projeta nela uma
ideia de “salvação”, enquanto ela, enganada pelo Fisk, vê no Demolidor o
monstro responsável pela morte do pai. Tudo gira em torno de percepção: o que
você ouve, o que você vê, o que te contam e o que de fato
aconteceu.
Graficamente, o arco é um
laboratório. Quesada brinca com linguagem de sinais nos quadros, com cenas
coreografadas quase como dança, com contrastes entre o mundo sensorial da Maya
e o cotidiano barulhento da Cozinha do Inferno. Não é perfeito, tem alguns
exageros típicos do fim dos anos 90, mas tem uma honestidade rara na tentativa
de incorporar deficiência auditiva e identidade cultural na narrativa sem
transformar a personagem só em “tema do mês”.
“Partes de um Todo” merece mais
releitura justamente porque hoje a Echo existe no cinema/TV como um conceito meio solto. Voltar a esse material mostra de onde vem o peso emocional dela e
como ela, por um breve momento, funcionou como espelho (bem desconfortável) do
próprio Matt.
4) Jack Batalhador Murdock
(Daredevil: Battlin’ Jack Murdock #1–4 – Zeb Wells,
Carmine Di Giandomenico)
Aqui a câmera sai de vez do Matt
e vai para o pai. Battlin’ Jack Murdock é uma minissérie curta que
reconta a velha história do boxeador falido que ama o filho, mas está amarrado
a dívidas, violência e escolhas péssimas. A diferença é o foco: tudo é narrado
do ponto de vista do Jack, tentando justificar para si mesmo cada passo que
levou àquele beco onde a história dele termina.
Zeb Wells (hoje em dia tido como
um péssimo escritor pela maioria) evita transformar o Jack num santo
incompreendido. Ele é carinhoso com o Matt, sim, mas também é orgulhoso, fraco,
incapaz de largar o jogo sujo que mantém as contas pagando. A minissérie
desmonta aquela memória “limpa” que o próprio Matt cultiva do pai e coloca no
lugar um sujeito real, cheio de vergonha, que tenta convencer a si mesmo de que
ainda dá tempo de fazer uma coisa certa, um último gesto que salve o filho –
mesmo que isso custe tudo.
A arte do Carmine Di Giandomenico
abraça o ringue como cenário de tragédia: corpos borrados de movimento, suor,
sangue, luz estourada, sombras duras. Não é uma HQ de super-herói; é
praticamente um drama de boxe com uniforme vermelho nas entrelinhas. O valor
dela está em afinar a origem que todo mundo acha que conhece. Depois de
ler esse conto sobre o Jack, cada flashback de pai e filho nas outras HQs ganha
uma camada a mais de amargor.
Para quem já cansou de recontar
“a noite do beco” sempre do mesmo modo (ou ficou demasiadamente apegado a superestimada
mini “O Homem Sem Medo"), essa minissérie é um excelente antídoto e, ao mesmo
tempo, um ponto de entrada curioso para leitores que gostam de histórias de
crime mais pé no chão.
5) Daredevil: Dark Nights – “Angels Unaware”
(Daredevil: Dark Nights #1–3 – Lee Weeks)
Daredevil: Dark Nights é uma
minissérie em oito partes, com arcos de autores diferentes. O primeiro deles,
escrito e desenhado pelo Lee Weeks, é o que nos interessa aqui.
A premissa é quase minimalista:
uma nevasca absurda cai sobre Nova York; Matt está doente, febril, meio cego
dentro da própria cegueira, e acaba se envolvendo na tentativa de salvar uma
criança cujo coração precisa ser transportado pela cidade. Não tem grande
conspiração, não tem Rei do Crime tramando do alto de um arranha-céu. Tem um
homem em frangalhos físicos tentando atravessar um inferno branco para que uma
menina que ele nem conhece tenha alguma chance de viver.
Weeks usa a neve como personagem.
Tudo é branco, silencioso, pesado. O radar do Demolidor fica “ruído branco”, os
sons se embaralham, o corpo falha. As páginas parecem escorregar, como se você
estivesse tropeçando junto com ele em telhados e becos congelados. É quase um
estudo sobre limite: o quanto Matt aguenta antes de literalmente
desabar, e que tipo de teimosia é essa que faz ele continuar mesmo quando já
passou do ponto racional.
É o tipo de história que some no
meio de encadernados mais “importantes”, mas que diz muito sobre quem o
Demolidor é longe do tribunal, longe dos grandes arcos conspiratórios. Não
redefine cronologia, não vira manchete de evento, não rende estátua. Só lembra
que, no fim das contas, o que mantém esse personagem em pé e sendo conhecido
como “o homem sem medo”.
Agora eu quero ouvir de você.
Destas cinco histórias, quais você já conhecia de verdade e quais eram
só capa passando no feed de encadernado da Panini. Você já leu alguma
delas e achou superestimada, ou nunca tinha lido?
Se você é leitor antigo do
Demolidor, conta nos comentários quais fases te marcaram mais. Você é do
time que vive de reler Miller e Bendis ou já foi fuçar essas beiradas menos
badaladas. E, se nunca leu nada do personagem, qual das cinco parece um ponto
de partida mais interessante para você agora? Se tiver outra história pouco
falada que você acha que merecia entrar na lista, joga nos comentários...
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