Salvat Marvel: meu TOP 10 das 60 primeiras edições

 


Quando a coleção da Salvat chegou às bancas, parecia correção de rota para um mercado que vivia de reimpressões prometidas e nunca entregues. Muita coisa clássica estava sumida há anos, e quem quisesse, por exemplo, “A Queda de Murdock” pagava mais de duzentos reais numa HQ usada quando aparecia.

De repente, você tinha esses tijolinhos por cerca de trinta reais a cada quinze dias, num papel decente, com acabamento digno e um texto de apoio que contextualizava quem estava chegando dos filmes. Foi um empurrão num momento os modelos de mixes mensais já não empolgavam, e até leitor veterano preferia esperar encadernado. A Salvat, no começo, acertou o alvo: deu porta de entrada para quem queria ler o melhor de cada personagem sem caça ao tesouro em sebo. Depois perdeu a mão, tentou dobrar o número de edições, subiu preço em ritmo acelerado e veio com a linha de capas vermelhas que, no geral, somava pouco e mirava só o hype. Nasceu aí a piada do “lombadeiro”, mas honestamente cada um compra pelo motivo que quiser. O que fica com carinho é o recorte inicial de sessenta volumes, quando a curadoria tinha prioridade e a conversa era com leitor novo e com quem queria reler direito o que marcou. Vale lembrar que, antes disso, os encadernados da Panini eram caros, mal distribuídos e viravam raridade de vitrine em poucas semanas. A Salvat democratizou o acesso por um tempo e mudou hábito de consumo. Sim, há escolhas discutíveis, como em qualquer seleção. Aqui vai o meu top 10 entre as sessenta primeiras, com foco no que envelheceu bem e no que eu realmente releio. Sinta-se livre para discordar, trocar posições, dizer o que você colocaria no lugar e quais desses você leu e ainda acha que valem a estante.

1) Demolidor: A Queda de Murdock (Daredevil #227–233, 1986 — Frank Miller; David Mazzucchelli; cores Richmond Lewis)




Voltar ao Demolidor depois de redefinir o Batman dava a sensação de “ponto sem retorno” para o Miller, e é isso que ele faz com o Wilson Fisk. Nada de monólogo grandioso. Ele desmonta o Matt com instrumentos que doem mais que soco: banco, polícia, imprensa, advogado comprado, telefone cortado, gás desligado. Mazzucchelli desenha a humilhação em enquadramentos que prendem o ar; quando a página respira é porque o personagem está caindo. O que sempre me pega são as referências religiosas usadas sem medo. O Matt perde tudo e corre para a igreja, e aquilo não é alegoria fofinha; é desespero católico de verdade, culpa, perdão, corpo quebrado tentando achar sentido. O Rei do Crime é mostrado como um mal paciente, quase burocrático, que não dá ao herói a chance de “vencer bonito”. Releio e lembro que o auge da crueldade é fazer o outro perder a identidade antes de perder a luta. Não há catarse. Há sobrevivência, que é outro tipo de vitória.

2) O Espetacular Homem-Aranha: A Última Caçada de Kraven (Web of #31–32; Amazing #293–294; Spectacular #131–132, 1987 — J. M. DeMatteis; Mike Zeck; Bob McLeod)


Eu cresci vendo o Kraven como “vilão de safari”. Aqui ele vira uma obsessão de homem velho encarando morte e legado. O momento histórico ajuda: Aranha de traje negro, clima sério, Nova York molhada, zero alívio cômico. DeMatteis tira o Peter do centro e deixa o inimigo narrar, o que é desconfortável e eficiente. Zeck repete imagens como batida de tambor: chuva, pá, caixão, túnel. A sequência da cova é uma das mais fortes que já li; é uma página que você sente no corpo. Quando o Peter volta, não existe revanche adequada. Ele não “vence o vilão”. Ele sai, respira e segue a vida; o Kraven encerra seu assunto do próprio jeito. Releio para sentir o Aranha sem piada, para lembrar que alguns traumas não se resolvem em cima de arranha-céu com pose heroica.

3) Marvels (Marvels #0–4, 1994 — Kurt Busiek; pintura Alex Ross)



Ler isso nos anos 90 foi como abrir um álbum de fotografias que alguém guardou por décadas. Phil Sheldon nos guia pelos anos 60 e 70 com um misto de encantamento e cansaço que eu reconheço em qualquer fã que envelheceu com a Marvel. Alex Ross não “desenha” o Surfista; ele materializa um homem de metal que reflete a cidade. Até hoje não vi nenhum filme entregar esse senso de presença. Nem o visual correto do cinema antigo do Quarteto dá essa impressão de sagrado secular que o Ross imprime ao Surfista e ao Galactus. O impacto maior para mim é perceber que os grandes eventos não são “plot twists”. São memórias públicas. Busiek respeita toda a década fundadora da “casa das ideias” sem infantilizar. Quando eu releio, não é para chorar nostalgia. É para reaprender a olhar para esses personagens como gente que ama, erra, trabalha e tenta ser decente enquanto o impossível acontece na esquina.

4) Wolverine: Arma X (Marvel Comics Presents #72–84, 1991 — Barry Windsor-Smith)



Antes disso a origem do Logan era fumaça. Barry fecha a porta e nos prende num laboratório que fala em relatórios, números e tubos. O texto é seco a ponto de parecer desumano. A arte tão afiada quanto se tornam as icônicas garras do Wolverine. Você lê e sente o metal entrando, o controle reduzindo o sujeito a experimento. O fator de cura, que roteirista adora usar como “ok, pode torturar sem culpa”, vira provocação: quanto mais ele aguenta, mais os monstros testam limites. A estrutura cíclica cria uma sensação de labirinto; por páginas você acha que nada muda, até que tudo muda de uma vez e o bicho explode. O que fica em mim não é o “como ele ganhou o adamantium”, é o vazio de quem teve a identidade e memórias arrancadas a bisturi. Fecho o encadernado com a certeza de que entendi o Wolverine sem lineares. É um horror corporal com propósito.

5) Capitão América: O Soldado Invernal (Captain America vol. 5 #1–9, 11–14, 2005–2006 — Ed Brubaker; Steve Epting; Michael Lark)


Brubaker puxa o Cap para o terreno do Tom Clancy com consciência dos anos 2000 e a memória de 1940. Steve vive sob luz pública, lida com Estado, terrorismo, mídia, e ainda precisa encarar a pior pergunta: e se o amigo morto virou arma do inimigo. Trazer o Bucky de volta só funciona porque a série se compromete com lógica de espionagem e culpa histórica. Epting e Lark fazem páginas que cheiram a concreto molhado. É uma HQ de corredor, de rua molhada, de apartamento vigiado. Eu relia para lembrar que o Capitão não é “o cara do discurso bonito”. Ele é um sujeito decente tentando sobreviver à política. Depois dela, ficou difícil aceitar o Steve como boneco de propaganda. Ele continua símbolo, mas um símbolo que admite rachaduras.

6) Planeta Hulk (Incredible Hulk vol. 2 #92–105, 2006–2007 — Greg Pak; Carlo Pagulayan; Aaron Lopresti)




A fase do Bruce Jones havia deixado o Banner no centro por muito tempo; a estratégia editorial foi praticamente ejetar o cientista e deixar o Hulk em tempo integral. Pak transforma isso em oportunidade. Em Sakaar o Hulk não é bicho de circo; é gladiador, exilado, líder, marido. O mundo tem religião, política, geografia e língua que você escuta. O enredo pega o estereótipo “monstro quebra tudo” e pergunta o que acontece quando o monstro recebe um povo e um lar. Eu sinto falta do Banner como contraponto, sim, mas entendo a escolha radical. E justamente por isso eu prefiro esse arco ao “Hulk Contra o Mundo”. A vingança só dói porque aqui ele teve o que perder. Toda vez que volto, a sequência do casamento e a consequência final me pegam de novo. E se você curte o verdão, vai atrás do post do Xandão com as melhores histórias por décadas; é leitura obrigatória e o sujeito escreve Hulk como ninguém aqui no blog.

7) Surpreendentes X-Men: Superdotados (Astonishing X-Men vol. 3 #1–6, 2004 — Joss Whedon; John Cassaday)


Os X-Men vinham da reinvenção do Morrison, couro preto, ideias grandes e uma certa frieza fashion. Whedon decide olhar para a sala de aula e para o coração. Coloca a “cura” mutante na mesa e faz a equipe reagir do jeito que só os X-Men reagem: com debate, amor e teimosia. Kitty volta a ser nossa porta de entrada. O reencontro com o Colossus é uma das cenas mais honestas da história do grupo. Cassaday enquadra como cinema sem cair na afetação: painéis claros, rostos legíveis, heroísmo bonito de ver. Também há piscadas ao clássico sem museu: uniforme, a Sala de Perigo e a dinâmica de equipe que parece família. Eu releio quando preciso sentir os X-Men como pessoas que se escolhem todos os dias, e não como tese ambulante. E continuo achando impressionante como seis edições dão conta de tanta coisa sem parecer press release de filme.

8) Doutor Estranho: O Juramento (Doctor Strange: The Oath #1–5, 2006–2007 — Brian K. Vaughan; Marcos Martín; cores Javier Rodríguez)


O que me ganha aqui é ver o Stephen lidando com algo que não se resolve só com gesto e palavra arcana. Vaughan atira logo na primeira página e faz o mago investigar como detetive que conhece bibliotecas do além. Wong deixa de ser mordomo e aparece como amigo que salva e é salvo. Marcos Martín desenha magia como sistema com regras, não brilho por cima de nada. As soluções visuais para portais, dobras e remédios são elegantes de um jeito que dá vontade de estudar cada página. Quando termino, sinto que entendi por que o Estranho é médico antes de ser mago.

 

9) Os Supremos (vol. 1 completo: Super-Humano + Segurança Nacional) (The Ultimates vol. 1 #1–13, 2002–2004 — Mark Millar; Bryan Hitch)


Isso explodiu na minha mão quando saiu. Fury como maestro, apresentação da equipe como lançamento de produto, celebridade, política, militares, tudo junto. Parece cinema antes de virar cinema. Hitch dá escala e Millar escreve com cinismo afiado. E sim, eu sinto falta de certos exageros hoje. A cena do Capitão descendo a porrada e perguntando se ele tem a letra da França na testa é grosseira, politicamente problemática e… memorável. Quadrinho também é isso. Gente com bolas para escrever e aguentar leitura difícil. Eu releio para entender de onde não só o MCU veio, como muito dos conceitos da Marvel nos anos 2000. Como peça de “origem de equipe”, continua precisa; fecha onde tem que fechar, sem virar refém de evento.

10) Quarteto Fantástico: Inconcebível (Fantastic Four vol. 1 #503–#511 e  2003 — Mark Waid; Mike Wieringo; cores Paul Mounts)


Waid e Wieringo me lembraram que o Quarteto é família, imaginação e risco. Esse arco prepara a operação na Latvéria e já adianta o tom: Reed brincou de Deus e a conta chegou. Wieringo tinha a mão leve que permite salto para o maravilhoso sem perder humanidade. O roteiro conversa com o mundo real sem colocar placa na história. Quando o Quarteto mexe com regime estrangeiro, você entende o comentário sobre “levar democracia” e, ao mesmo tempo, lê uma aventura que te carrega. É o raro equilíbrio. O final desse ciclo e o que ele dispara depois me pegaram na época e ainda me pegam. E confesso: eu teria lido 100 edições deles. Talvez a força esteja justamente no fato de ser curto, sem gordura nem discurso que atropela a narrativa. É meu lembrete de que dá para falar de política e de paternidade e, ainda assim, entregar um gibi que você devora sorrindo.