O milagre das tempestades & Guerra santa – Quando as histórias do Thor abordaram religião?

 



Semana passada, a Valentina postou uma resenha de “Demolidor Redenção”, uma história do Homem sem Medo que abordava assuntos bem complexos sobre ódio e violência em comunidades pequenas e uso de fé e moralismo para justificar tais injustiças. Essa foi uma review muito bem escrita e me introduziu a história pouco conhecida do Demolidor.



Poucos dias atrás, eu estava lendo umas hqs do Thor, selecionando algumas para apresentar numa futura retrospectiva de suas melhores histórias, quando encontrei 2 (ou 3, se formos considerar que a segunda história é dividida em duas partes) histórias que chamaram minha atenção: O Milagre das tempestades (publicado em Thor vol.1 nº303, em 1981), A vinda do Cruzado e a Guerra Santa (ambas publicadas em Thor vol.1 nº330 e 331, em 1983).



Embora sejam histórias separadas, notei como ambas, tal como “Demolidor Redenção”, exploravam uma temática sobre religião sobre a influência que isso pode ter num indivíduo ou grupo. Porém, elas estão longe de serem copias, pois o roteiro abordava os conflitos de uma forma bem mais profunda do que estamos acostumados nesses tipos de histórias.

Para explicar isso melhor, esse texto será uma review sobre essas duas (três) histórias esquecidas do Thor e como a forma que elas exploram seus tópicos consegue torna-las uma leitura tão relevante.

Trama

Como expliquei, as três histórias são duas aventuras distintas, tendo tramas que foram escritas e desenhadas por roteiristas e artistas diferentes.

“O milagre das tempestades” foi escrita por Doug Moench e desenhada por Rick Leornardi. Nela, Thor salva a vida de Coza, um padre que está sendo ameaçado pelo mafioso Angelo Simoni a vender sua igreja. Enquanto se recupera de ferimentos, o padre conta para Don Blake (alter-ego de Thor) sobre a falta de apoio que a Igreja tem tido e como ele tem perder sua fé diante da sociedade. Qual o ponto de lutar por um símbolo religioso quando a fé não demonstra ter efeito algum nas pessoas?



Quando os homens de Simoni colocam fogo na igreja, Blake se transforma em Thor para ajudar Coza a salvar uma mulher e, no processo, o ajuda a reencontrar a confiança em seus ideais.




Já na Vinda do Cruzado e a Guerra Santa (as duas escritas por Alan Zelenetz e os desenhos de Bob Hall), Thor está lidando com a descoberta de culto dedicado a ele. 



A existência desse grupo provoca tensão com outros religiosos que enxergam essa idolatria como um sacrilégio e uma tentativa de substituir a "verdadeira religião" por tradição pagã. 



Dentre essas pessoas está Arthur Blackwood, um extremista religioso que, frustrado diante a ascensão do culto de Thor, recebeu dos espíritos de seus ancestrais, uma armadura, escudo e espada medieval. Passando a se chamar Cruzado, ele jurou eliminar todos os infiéis, começando por Thor, por esse se declarar um “deus do trovão”. 

Porém, logo Blackwood demonstra sua insanidade, quando começa atacar não só Thor e aqueles que o apoiam, mas também membros de sua igreja, simplesmente por discordarem de seus métodos, tornando-o uma ameaça a todos envolvidos nesse conflito religioso.



 Para salvar a cidade desse inimigo, Thor não só deve confrontar o Cruzado, mas também suas próprias dúvidas sobre seu papel como um deus e sua fé em sua missão na Terra.

 

O papel de deuses na sociedade

Quando se observar as histórias como um todo, principalmente Vinda do Cruzado e a Guerra Santa, é possível compara-las não só com Demolidor Redenção, como também outra história memorável do Thor, O Carniceiro dos Deuses. 



Assim como o arco de Jason Aaron,  tanto Milagre das tempestades e Guerra Santa também explorarem a relação entre deuses e mortais, e como a presença de uma figura divina influencia as vidas dos humanos.







Esse paralelo pode ser identificado pelo fato dos antagonistas de ambos casos (Gorr e Cruzado) estarem buscando, através de seus métodos cruéis e distorcidos, “libertar a humanidade” dessa idolatria (e também ambos acabam sendo corrompidos por uma espada mágica).




Mas o aspecto mais interessante dessas duas histórias de destaque do texto é a forma como exploram a posição do Thor diante esse conflito religioso envolvendo sua imagem.

Na primeira história é mostrado, através do padre Coza, a forma como Thor é visto pelas pessoas como esse arauto dos milagre, um anjo que vem atender as preces dos necessitados, seja com seus poderes ou com suas palavras sábias e encorajadoras.

 


 

O que “A vinda do cruzado” e “Guerra Santa” fazem é colocar essa dedicação do Thor em proteger a humanidade a teste, com as distintas opiniões que o público tem dele levando a sociedade a se dividir entre os que o idolatram e os que o rejeitam.



Embora o deus do trovão seja contra o Cruzado e seus atos extremos, ele também se mostra bem desconfortável com esse culto de fanáticos a ele. Mesmo sendo um deus, Thor, após anos vivendo na Terra como um mortal, não se coloca acima dos outros ou espera idolatria por seu heroísmo. Ele se vê como um nobre guerreiro, que serve e ajuda porque é a coisa certa.

Porém, essa divisão faz Deus do Trovão questionar ponto dele continuar a servir os humanos se isso apenas levará ser incompreendido por aqueles que ele protege? Ele é realmente protegendo a humanidade ou tornando-a dependente dos deuses?



Ver o confiante Thor tendo essas dúvidas cria um drama bem relacionável, que aborda o conflito entre a auto expressão de uma pessoa contra a pressão de atender as exigências de um grupo ou sociedade para poder se encaixar.

O valor da religião vs a corrupção do extremismo

Outra história que pode ser comparada a essas três edições é X-men Deus ama, homem mata, já que elas exploram o efeito que ideias religiosa possuem numa sociedade, e como tal conceito pode ser usado por indivíduos para incitar o ódio das pessoas contra um grupo de indivíduos. O personagem do Cruzado pode ser facilmente comparado com William Stryker, já ambos extremistas tão cegos por seu ódio e preconceito, que distorcem suas ideias religiosas para justificar suas maldades.




Contudo, o roteiro dá um passo além com o desenvolvimento do Cruzado, deixando claro como o fanatismo dele é uma pura desilusão para mascarar sua frustração e insegurança, com até mesmo pessoas que compartilhavam da mesma religião que ele, como o padre William, o rejeitando por causa de sua atitude desagradável.




Tal como vários intolerantes, Blackwood diz estar tentando preservar “os ensinamentos de deus”, mas, no fundo, é tudo um resultado de seus próprios sentimentos de inferioridade. Ele é incapaz de aceitar que sua ideologia não é algo absoluto e ter que encarar essa realidade lhe causa tanta frustração que, como resposta, ele escolhe torna aqueles que discordam e desafiam sua perspectiva alvo de sua fúria. Seu incentivo para pessoas se unirem a sua causa não vem de preocupação com elas, mas sim busca por apoio para alimentar seu ego frágil.



A conexão dele com cavaleiros das Cruzadas foi uma decisão astuta, não só porque permite encaixar o Cruzado no tom de fantasia e misticismo das histórias do Thor, mas também por uma questão simbólica: Visualmente, o Cruzado representa um cavaleiro das cruzadas (uma figura culturamente associada como um aventureiro nobre e heróico), mas seu comportamento subverte essa imagem, representando a realidade como um guerreiros que lutavam apenas por questões políticas, econômicas e religiosas de suas nações, usando o argumento de que "agiam em nome de Deus" para justificar suas conquistas e opressão de outros povos.



Em contraste a isso, temos o padre Coza que, embora seja religioso como Blackwood, é um homem bondoso e gentil, que tenta ajudar pessoas que necessitam. Quando é introduzido, ele é mostrado sofrendo com uma crise de fé devido aos  problemas que ele e sua igreja estavam passando. Porém o ajuda a recuperar sua crença, fazendo-o perceber que não é a presença dos deuses que dão força para as pessoas, mas sim a fé das pessoas, a forma como elas continuam a viver e acreditar nesses valores que inspira os deuses.



A presença desses dois personagens pode tornar as histórias opostas uma da outra, mas também permite a revista explorar duas interpretações do mesmo assunto, mostrando como religião não é algo bom ou ruim. Ela pode ser usada por indivíduos para incentivar ódio e discriminação, mas também pode inspirar fé e confiança nas pessoas, mesmo diante situações difíceis. Como tudo na vida, dependente da forma como interpreta e pratica esses ideais na vida

Considerações finais

Não sendo uma pessoa religiosa, não me vejo sendo uma pessoa adequada para dizer qual das histórias interpretou melhor o conceito de religião. Mas, o que posso dizer é que essas duas histórias conseguem abordar a complexidade do assunto, mostrando tanto as vantagens e desvantagens da influência religiosa, ao mesmo tempo em que entrega uma aventura que descontrói a imagem do Thor, mostrando não como um deus lutando por seus adoradores, mas sim um nobre guerreiro lutando pelo seus ideais. Por isso que eu considero esses arcos um dos melhores do Deus do trovão, merecendo mais atenção dos fãs e leitores.

Nota: 10/10



Então é isso! Qual a opinião de vocês quanto a O milagre das tempestade e Guerra Santa? Sintam-se a vontade para colocar suas opiniões e ideias nos comentários abaixo