[TIME PARADOX] CONTRATEXTO: O mal de se sentir inteligente lendo Harry Potter e Guerra dos Tronos


Eu vi esse texto sendo compartilhado nas redes sociais umas duas vezes, e fiquei com um monte de coisa na cabeça. Resolvi que valia escrever um texto em "resposta". Se trata de "O mal de se sentir inteligente lendo Harry Potter e Guerra dos Tronos", por Ademir Luiz no site Revista Bula. Você pode conferi-lo no link abaixo:



A não ser que você acesse o blog há poucos dias, deve se lembrar que eu fiquei todo cheio de chilique quando começaram a meter que aqueles filmes do Oscar, como o maravilhoso e inesquecível Birdman, eram mais artísticos que filmes de super-heróis. Como se houvesse qualquer cabimento nessa comparação. Como se o entretenimento correto para milhões de crianças e adolescentes (e jovens adultos) cujos sonhos ainda vivem fosse a trama de um coroa frustrado que até comete suicídio. Julgar o que é e não é arte já é um dos meus pensamentos mais recorrentes há uns bons anos. Desde quando eu era adolescente no Ensino Médio discutia isso com meu amigo Bud (era um cara assustadoramente inteligente, e era sempre bom conversar com ele sobre qualquer coisa), afinal éramos obrigados a ler José de Alencar, e sendo nerds, valorizávamos nosso entretenimento mais que a média das pessoas (isso na época, lá pra 2010, hoje ser nerd é legal). Eu gostava de ir colecionando os argumentos conforme entrava em contato com eles, e me lembro que os principais eram "Batman", "Watchmen", "O Hobbit" e, é claro, "Metal Gear". Mas isso tudo é só pra atualizá-lo do meu histórico pessoal no tema, vamos rebater o texto da Revista Bula, que menciona "Harry Potter" e "Guerra dos Tronos".


Vamos começar pela primeira parte que me incomodou, apesar de muito do que o autor diz no texto ser verdade.

"(...)os volumosos livros que compõem “As Crônicas de Gelo e Fogo” (genericamente chamadas pelos civis de “Guerra dos Tronos”) são divertidos, movimentados e parecem possuir certas pretensões artísticas, detectáveis sobretudo na opção pela narrativa a partir de diferentes pontos de vista. Contudo, apesar de seus inegáveis méritos, a saga de George R. R. Martin se insere em uma tendência que têm se mostrado nociva à formação literária das novas gerações. A tendência de fazer com que o leitor se sinta muito inteligente por estar lendo. Num olhar superficial parece positivo, mas pode ser perigoso."

Essa porcaria de vir dizer o que não é arte. É como se o que é "legal" não fosse arte. Como se fosse errado apresentar elementos fantásticos pra atrair as pessoas a ouvir o que o escritor quer dizer. Como se um dragão tivesse menos mérito literário por ser um dragão, mesmo sendo uma criatura que vive de forma violenta e solitária se preocupando apenas em guardar seus bens materiais e, às vezes uma dama também. Como se não houvesse filosofia no super-herói ser obrigado a usar uma máscara para exercer o seu potencial máximo que a sociedade não permite. É como quando dizem que funk não é cultura. E não serei hipócrita, eu odeio funk, odeio ter que admitir que aquilo existe e faz parte da cultura. Mas as consequências que mais me incomodam são as crianças cada vez mais tendo filhos e pegando DSTs enquanto o McJunior diz pras Juniorquetes chuparem o pirulito dele. Se houver uma pegada crítica do McJunior quanto a essa questão, por favor, me avisem, porque eu interpreto como a celebração de uma situação muito degradante que deveria a todo mundo preocupar. Não é como falar que é trágico ouvir funk e não ouvir música clássica. Mas agora que já me defendi, depois voltamos as consequências, vamos tentar não fugir muito... Depois de dizer que os livros não chegam a ser artísticos, ele falou do leitor se sentir inteligente.

Quem?

Vou usar minha experiência pessoal aqui, mas é porque conheço muita gente que leu "Guerra dos Tronos" e 5x mais que leu "Harry Potter" (eu mesmo li os Harry Potters duas vezes). E... eu nunca vi alguém se achar inteligente por causa disso. Na boa, que afirmação estranha. Não me sinto mais inteligente nem lendo o jornal, nem livros de Filosofia, nem o Hobbit, nem o bendito Watchmen. Já disse um professor de Harvard em uma videoaula de Direito que eu estava assistindo ano passado que "(...)Filosofia é ouvir coisas que você já sabe". O autor do texto parece ler de forma diferente que os jovens, não se trata de ficar mais inteligente, apesar de, é claro, ler ampliar a inteligência. Mas é um pouco mais sensível que isso. Há uma passagem de "1984" do George Orwell, em que ele descreve isso de forma melhor do que eu conseguiria em muitas tentativas:

"O livro o fascinava, ou, mais exatamente, tranquilizava-o. Em certo sentido não lhe dizia nada de novo, o que era parte do fascínio. Dizia o que ele teria dito, se tivesse a capacidade de organizar os seus pensamentos dispersos. Era o produto de uma mente semelhante a dele, porém muitíssimo mais poderosa, mais sistemática, menos amedrontada. Os melhores livros, compreendeu, são aqueles que lhe dizem o que você já sabe."

Acho que deu pra entender, né? Quem nunca se sentiu assim? Quem não acha isso importante? Alguém aí diz que isso não é arte? O sujeito havia dito que a alta literatura expande o universo de pensamento e dar menos valor à "Harry Potter" e "Guerra dos Tronos" é uma questão de maturidade. Próximo ponto então...

Quem aguenta?

Isso retorna a o que eu disse no início da comparação de "Birdman" com os filmes da Marvel Studios/Disney, como Guardiões da Galáxia. Quem lê todos os clássicos intocáveis de vocabulário quase incompreensível são ou professores de Literatura ou pessoas muito tristes que em algum momento se convenceram a lerem o que não querem. Aí a pessoa lê como se estivesse tomando um remédio, e não faltam artigos por aí explicando como isso prejudica a formação de leitores. Todo mundo tem entretenimento de distração. Aliás, a maioria é de distração, independente do grau de complexidade. Não é como se se tornar um intelectual fosse uma pressão da sociedade sobre os indivíduos. Você pode ser burro, vão até gostar. As pessoas leem porque querem. Por prazer. Sendo assim é óbvio que elas lerão o que é prazeroso e foi escrito nos Anos 90 por autores muito competentes justamente para eles. Luiz até afirma que esse entretenimento por entretenimento é importante no seu texto, mas ao mesmo tempo fala como se fosse ficar um buraco enorme nas pessoas por não lerem o que é considerado essencial pelos críticos. Além de fazer um paradoxo, meio que dizendo que "isso é legal, mas nem tanto quanto você diz, você tem que ler essas outras coisas." Bem, eu tenho uma perspectiva meio diferente...

Nada Se Perde, Tudo Se Transforma
A partir do momento que um livro faz sucesso e é lido por milhares de pessoas, ele se torna um pedaço de inspiração pra todas essas pessoas. As que escreverem outras coisas, terão sido influenciadas por esse primeiro livro. Sendo assim, a mensagem não morre, é o fluxo da inspiração. Por mais original que algo pareça, surgiu de algum lugar, e assim vai se transformando. Há um excelente livro sobre isso que eu li ano passado, e mesmo com ciúmes dele vou deixar recomendado pra todos vocês: "Roube Como Um Artista". Um amigo meu me emprestou e é nota 10, acho que eu li em um dia só (tinha acabado de sair da faculdade). É de Austin Kleon e é dessa onda de livros com diagramação completamente criativa, de forma que todo mundo (TODO MUNDO) consegue ler sem problemas pra se concentrar, interessar e etc.


Mas há um outro exemplo pra você conseguir entender sem ter que comprar um livro pra isso. Ano passado uma amiga minha me deu o já mencionado "1984" de aniversário. É um dos livros preferidos dela (se não o preferido), ela sempre recomendava que eu lesse. Eu gostei muito, é realmente assustador, mas lembro de explicá-la como eu já conhecia grande parte do que estava lá. Por que? Porque o livro do Orwell inspirou:


Prefiro não falar muito sobre esse exemplo, mas o nome do programa é referência direta ao livro de ficção.


"Bioshock", que como um jogo de videogame, não duvido que seja considerado um "entretenimento perigoso" por Ademir Luiz. Mas Bioshock mostra uma utopia falida lotada com câmeras, pessoas loucas, discursos sobre alienação, pôsteres opressivos e os personagens "Big Daddy", "Little Sister" e "Big Sister" sendo referências ao sistema "Big Brother" do livro do Orwell. As discussões da trama também se mesclam com "A Revolta de Atlas" de Ayn Rand, uma clássica trilogia literária americana que hoje muitos jovens só vêm a conhecer por causa desse game.


Outro videogame de imenso sucesso, "Fallout: New Vegas". O personagem Mr. House é também inspiradíssimo nas tele-telas e no conceito do Big Brother.


"Metal Gear Solid", não só outro videogame, mas o melhor. No momento da tortura o jogador é colocado na visão de primeira pessoa do personagem, sendo incapaz de movimentar seu rosto enquanto ouve os seus inimigos falarem; similar o bastante com uma das passagens mais marcantes de 1984. O segundo game, "Sons of Liberty" de PlayStation 2 também discute as ideias da "Revolta de Atlas", como Bioshock.

Ou seja, cerveja? Não. Água. Água de buenas, meu amiguinho. Eu havia absorvido a mensagem de duas grandes obras literárias por meio das obras que eles inspiraram. E devo dizer que no caso de Metal Gear e Bioshock, talvez sejam até melhores. Isso porque eu nem falei do "V de Vingança" que eu tinha lido no terceiro ano quando tinha iniciado a minha caçada à obras do Alan Moore depois de ler o Watchmen. Também preciso nem dizer o quanto esse é lotado de explícitas influências.


É claro que ver o filme não faz com que você tenha lido o livro, e também não é a mesma coisa. Por exemplo, se você lê os livros do "Hobbit" e do "Nárnia" há mensagens que não ficaram tão expressas nos filmes. Aliás, principalmente no Nárnia há referências claríssimas aos contos da "Bíblia Sagrada", voltando de novo ao ponto do fluxo de transformação das ideias, como é muito bem explicado em "Roube Como Um Artista". Mas pra terminar isso tudo, acho que posso resumir com um...

Quem liga?

Eu não desprezo nem um nem o outro. Só acho que o autor faz tempestade em um copo d'água. Quantas pessoas não passam a vida sem ler nada?! Mesmo quando não são analfabetos? Eu não acho que o autor do texto esteja errado, só acho que ele foi desnecessário. Quem sai se sentindo inteligente porque leu Harry Potter? Quem sai se sentindo inteligente porque leu 1984? Alguém realmente lê pensando nisso? E mais, que autores hoje não foram influenciados por Shakespeare e por outros autores influenciados por Shakespeare? Brigar contra o tempo é complicado, mas essas comparações não tem cabimento não, sinto muito. Deixe as pessoas lerem e pensarem, no fundo está tudo conectado, não há porque de se estressar. Já dizia um sábio...

"Fiquem com seus documentários de filosofia austríaca, eu vou assistir Vingadores 2 e Batman Vs Superman"

Como ponto final... uma leitura semiótica (onde você procura interpretar a ideia que o autor realmente quer expressar por trás das imagens e das palavras) pode ser feita em todas essas obras, e o público vai decidir se foi importante pra elas ou não. "Chapeuzinho Vermelho", talvez um conto bobinho, quer desesperadamente evitar que as crianças acabem estupradas e assassinadas por confiarem em estranhos. Isso é menos importante que reflexões existenciais? As pessoas tem que ler o que é bom pra elas, oras. É como ser fã de "Vingadores" e ir assistir "Crepúsculo" ou "50 Tons de Cinza", filmes sobre a sexualidade feminina e até onde eu saiba, nada mais. Que utilidade isso vai ter pros marveteiros? Só se for pra tirar um sarro. Vou aproveitar e tirar um sarro também.


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