E assim
começa um bom filme...
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stat rosa pristina nomine, nomina nuda tenemus.
Quando procuramos Umberto Eco (ou ele nos encontra?) queremos isso: uma boa trama, bem construída sobre pesquisa consistente por um dos cérebros humanistas mais capazes de nosso século. Queremos informação, mesmo que, a princípio, pensemos que não a queríamos. O leitor de Baudolino (2000) não esperava encontrar tantas referências míticas (creio) ao iniciar-se na leitura. Mas e daí? Acaso ele precisa descartar a leitura em razão das mais de cem de páginas de como seriam, no imaginário medieval, as terras de Preste João no Oriente? "Ah, dessa informação eu não preciso; deixarei de ler...". Sempre são bem vindas e oportunas as demonstrações exacerbadas (sim!) de Eco sobre história, estética, teorias mirabolantes e conspiracionistas etc.. E sempre haverá um público afim a vários momentos das tramas, de acordo com tema abordado. Particularmente, gostei de cada trecho em O Nome da Rosa acerca da confecção de livros, tratamento de pergaminhos etc., pois me interesso por bibliofilia e encadernação, entre outros temas correlatos. Entre teorias gerais do complô e de conspirações mundial presente em O Pêndulo de Foucault (1988), encontrei a melhor abordagem ficcional sobre o sincretismo brasileiro.
Enfim, vamos a O Nome da Rosa, romance de estreia de Umberto Eco na ficção. Até então, este autor já era reconhecido por sua extensa produção acadêmica, em especial no ramo da Semiótica. Quanto à escolha do título, há suposições. Embora ligue-se diretamente à última citação na narrativa, uma possível corruptela a verso mais conhecido em razão de Bernard de Cluny (transcrita acima, em epígrafe a esta postagem), também possui estreita relação com o amor de Adso de Melk (narrador da história) e a única mulher que chegou a ter em sua vida: uma camponesa miserável que residia próximo à Abadia onde todos os "eventos miríficos e formidáveis" que dão corpo à obra ocorreram. Sobre a mulher, Adson testemunha: "Do único amor terreno da minha vida não sabia, e nunca soube, o nome".
A obra tem uma estrutura peculiar: é divida em dias (sete, no total) e estes são divididos em períodos correspondentes às horas litúrgicas (Matinas, Laudes, Prima etc.). Esse formato segue o manuscrito de Adso, narrador da história da qual fora testemunha. Umberto Eco nos diz, no Prólogo, que este manuscrito foi organizado posteriormente por um certo abade Vallet e que, em 1968, o autor teve contato com o material. Sob cada subdivisão das horas litúrgicas foram inseridos subtítulos em terceira pessoa, provavelmente por Vallet. Cada subtítulo sintetiza o que acontecerá nas próximas páginas. A "mentira" de Eco acerca da procedência da história ajuda o leitor a ingressar no clima de mistério da trama.
Durante os sete dias de permanência de Guilherme e Adso na abadia, várias mortes ocorrem, com algo em comum: todas as vítimas tem manchas negras nos dedos e na língua. As disposições dos corpos, em alguns casos, chamam atenção, como se, no post mortem, alguém os manipulasse. Exceto pela primeira morte, ocorrida antes da chegada dos protagonista ao local, todas as demais, relacionadas, tratam-se de assassinatos. E, mesmo no caso da primeira (um suicídio), há uma correlação.
Cuidado com "spoilers" a partir daqui. Aos poucos, descobrimos que as respostas às mortes ocorridas ligam-se à biblioteca. Mais precisamente, ao que ela encerra. Uma encadernação com textos em árabe, sírio e grego. Indicada no códice de consulta em poder do bibliotecário Malaquias, de acordo com a data de aquisição e origem, dão a Guilherme pistas decisivas para solucionar o que está acontecendo. No entanto, sua entrada na gigantesca e labiríntica biblioteca é vedada. A biblioteca era a única fonte de pesquisa e de conhecimento, de maneira que até sua arquitetura foi planejada para confundir os "indesejados". Conforme palavras do Abade:
O romance foi adaptado para o cinema em 1986 e isso, sem dúvidas, ajudou a popularizar o romance. A direção de Jean-Jacques Annaud soube como aproveitar tantos elementos de um romance erudito e levá-los à tela, numa trama de suspense envolvente, que cativou públicos diversos. A produção de arte é impecável. Aliás, para a constituição da abadia (cujo nome não é dito na obra), o diretor Jean-Jacques Annaud consultou um dos mais respeitados medievalistas do mundo: o francês Jacques Le Goff. As atuações são excelentes, em especial a do único grande astro hollywoodiano entre os competentes atores: Sean Connery. Christian Slater, ainda quase estreante, também merece reconhecimento.
Não é fácil produzir uma adaptação cinematográfica que agrade ao leitor, ainda mais tratando-se de Umberto Eco, onde o desfile de erudição não é comedido. Costumo dizer que o cinema, naturalmente, retira de uma obra literária toda sua parte adjetiva, mantendo tão somente a substantiva. Explico melhor. Enquanto o autor do romance (ou conto) tem nossa disposição por tempo ilimitado para discorrer sobre a natureza de um personagem, nos narrando seu estado emocional em minúcias e até mesmo esmiuçando seus pensamentos e sentimentos mais íntimos, por palavra, o cinema (ou televisão) não tem. Nestes últimos, temos que apreender o estado espiritual do personagem através de ações e expressão. A tentativa de narrar essas características deixa o filme enfadonho e até mesmo pueril, transformando-o numa antiga fotonovela. Enquanto, na obra cinematográfica, por exemplo, uma vítima de serial killer é apenas mais um figurante que deu azar, na obra escrita é alguém com vida pessoal, afetiva, profissional, com aspectos emotivos. Um exemplo que me socorre, agora, é a adaptação de O Xangô de Baker Street, de Jô Soares, para as telas por Miguel Faria Júnior. Ali, cada vítima do livreiro maluco é um mero transeunte; enquanto, na obra original, o autor nos fala sobre ela, às vezes intimamente. Jean-Jacques Annaud e os quatro roteiristas do filme souberam disso e conseguiram narrar, justamente, o essencial à ação e à compreensão do tema central presente na obra impressa.
Diante da necessidade de cortar muita coisa, vários momentos relevantes para se compreender o âmago dos assassinatos foram suprimidos. No romance, compreendemos como a biblioteca é o ponto central de toda a política da abadia. No livro, descobrimos que tanto Abade Abbone quanto o bibliotecário Malaquias foram inseridos em seus posto por empreendimento do aparentemente inofensivo Jorge de Burgos. Este deveria ser o próximo bibliotecário, mesmo que a oposição dos italianos a estrangeiros fosse grande. No entanto, ao quase tomar o lugar de outro potencial candidato (o velho e caduco Alinardo), começou a perder a visão e apressou-se a deixar, no local, um ambiente que lhe favorecesse, com a escolha dos cabeças que melhor lhe servissem. Malaquias e Abbone tornaram-se seus "fantoches", por assim dizer. A última grande aquisição de livros foi realizada por Jorge, quando ainda jovem e assistente do bibliotecário anterior. E todas essas informações auxiliaram frei Guilherme descobrir quem foi o responsável por todos os fatos "formidáveis" ocorridos nos últimos dias. Na província de Burgos e arredores era costume utilizar, ao invés do pergaminho mais tradicional, a charta lintea, uma espécie de tecido. E o livro cerne de todos os infortúnios possuía essas páginas delicadas, o que foi atestado pelo herborista Severino, que o teve brevemente em mãos.
Minha edição é da editora Record: brochura com papel bom para se ler (amarelado, o que não cansa a visão) e com fonte até grande, embora com pouca margem. São 576 páginas traduzidas por Aurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas de Andrade, dois competentíssimos acadêmicos. No entanto, recomendo que comprem a edição em capa dura com sobrecapa da Folha de S. Paulo, vendida em vários sebos por até R$ 10,00. Vi dezenas de ofertas no Estante Virtual. O trabalho da Folha para a coleção de sua Biblioteca foi muito bom e a tradução também é dos dois acadêmicos citados (salvo engano).
Sei que essas postagens longas sobre livros fora de moda não chamam atenção. Mas achei interessante divulgar um pouco da produção ficcional de Umberto Eco e, mais à frente, postarei uma resenha sobre seu último romance: O Cemitério de Praga (2011). Quem quiser boa literatura e um pouco mais de "conteúdo" em sua vida intelectual, leia este grande autor vivo.