Obras de Umberto Eco, O Nome da Rosa e sua adaptação para o cinema



[Texto da tag “Escritor Convidado*”, escrito por Blogue do Neófito, publicado originalmente em: https://bloguedoneofito.blogspot.com/2017/02/obras-de-umberto-eco-o-nome-da-rosa-e.html]


E assim começa um bom filme...

Deixo esta escritura, não sei para quem, não sei mais sobre o quê:
 stat rosa pristina nomine, nomina nuda tenemus.

Não posso nem lamentar quando vejo um monte de gente descendo a lenha em Umberto Eco apenas porque considerou alguma ficção sua extremamente "chata" em razão do excesso de erudição empregado. Eco, erudito, é um dos maiores intelectuais vivos deste planeta moribundo onde sobrevivemos, com uma longa experiência catedrática e que só se atreveu a escrever ficção quando se sentiu maduro para isso, já com quase meio século de vida. Ele não pode inventar tramas bobas cheias de loucas e radicais aventuras, sexo gratuito ou vampiros meigos apenas para agradar. Se o sujeito tem a cabeça lenta ou é incapaz de se esforça um pouco para ler uma obra mais densa, que exija até certa pesquisa histórica e literária, tenha a vergonha de não culpar o autor. Ele é inocente.



Por que escrevi o parágrafo acima? É que li recentemente O Cemitério de Praga - último romance escrito pelo italiano que penso em resenhar mais à frente - e andei conferindo "resenhas" e "críticas" em sites escritos por fãs da péssima literatura moderninha que entope as prateleiras das livrarias. Praticamente todos os espaços visitados "não indicam" a leitura deste recente livro. Impressionante. Fãs de Stephenie Meyer, Meg Cabot, George R. R. Martin, J.K. Rowling, Erika Leonard James e Dan Brown atacando a produção ficcional de Umberto Eco? É mesmo o final dos tempos! E, sim, como estão criticando abertamente bons autores (o próximo ao apedrejamento talvez seja Machado de Assis, vai saber...), não tenho pudores em dizer - com base não apenas em gosto pessoal, mas, sim, em arcabouço literário e anos de leitura - que esses autores de "modinha" produzem bosta quase hollywoodiana. Querem falar mal de Eco, Thomas Mann, Thomas Pynchon e Hermann Hesse em seus blogs? Ok. Não vou lá criticar. No entanto, no meu espaço serei bem franco sobre a oligofrenia pseudo-literária que se multiplicou como baratas (ou erva-daninha?) nos últimos anos.


Como falei no início, não posso nem lamentar. É que está tudo indo para o inferno e a qualidade de nossa educação encontram-se, a cada dia, no fundo do poço. Se um autor usa mais de seis palavra num mesmo período, a cabeça do leitor já fica confusa e ele põe o livro de lado, maldizendo por aí que a obra simplesmente não presta. Além de cansar lendo grandes períodos, muito preguiçoso também não aceita encontrar, numa obra, referências (especialmente as históricas). É que cansa a cabecinha e, assim, é mais fácil atacar o autor de "pedante". Pedantismo seria se a obra fosse limitada a um desfile gratuito de conhecimento, até mesmo fajuto. Não é o caso de Eco, onde a grande maioria de seus leitores busca justamente essa amarração oportuna, eficiente e até mesmo divertida de informações. Hoje, com o São Google, é tão fácil pesquisar essas referências!

Quando procuramos Umberto Eco (ou ele nos encontra?) queremos isso: uma boa trama, bem construída sobre pesquisa consistente por um dos cérebros humanistas mais capazes de nosso século. Queremos informação, mesmo que, a princípio, pensemos que não a queríamos. O leitor de Baudolino (2000) não esperava encontrar tantas referências míticas (creio) ao iniciar-se na leitura. Mas e daí? Acaso ele precisa descartar a leitura em razão das mais de cem de páginas de como seriam, no imaginário medieval, as terras de Preste João no Oriente? "Ah, dessa informação eu não preciso; deixarei de ler...". Sempre são bem vindas e oportunas as demonstrações exacerbadas (sim!) de Eco sobre história, estética, teorias mirabolantes e conspiracionistas etc.. E sempre haverá um público afim a vários momentos das tramas, de acordo com tema abordado. Particularmente, gostei de cada trecho em O Nome da Rosa acerca da confecção de livros, tratamento de pergaminhos etc., pois me interesso por bibliofilia e encadernação, entre outros temas correlatos. Entre teorias gerais do complô e de conspirações mundial presente em O Pêndulo de Foucault (1988), encontrei a melhor abordagem ficcional sobre o sincretismo brasileiro.
Posteriormente, conhecendo um pouco mais de terreiros de umbanda e de candomblés, puder "medir" - por assim dizer - o elevado nível de comprometimento histórico e literário do autor com o leitor. Umberto Eco não publica falcatrua. Que ele continue me destilando pedantismo em mais obras. Infelizmente, sua idade avançada indica que, talvez, não tenhamos outra obra de ficção após O cemitério de Praga (2011).

Enfim, vamos a O Nome da Rosa, romance de estreia de Umberto Eco na ficção. Até então, este autor já era reconhecido por sua extensa produção acadêmica, em especial no ramo da Semiótica. Quanto à escolha do título, há suposições. Embora ligue-se diretamente à última citação na narrativa, uma possível corruptela a verso mais conhecido em razão de Bernard de Cluny (transcrita acima, em epígrafe a esta postagem), também possui estreita relação com o amor de Adso de Melk (narrador da história) e a única mulher que chegou a ter em sua vida: uma camponesa miserável que residia próximo à Abadia onde todos os "eventos miríficos e formidáveis" que dão corpo à obra ocorreram. Sobre a mulher, Adson testemunha: "Do único amor terreno da minha vida não sabia, e nunca soube, o nome".
A trama, sucintamente: em um monastério situado ao norte da Itália algumas mortes sem explicação aparente são atribuídas à presença demoníaca no local ou às revelações do Livro do Apocalipse. Estamos no século XIV e, neste mosteiro beneditino haverá um encontro entre franciscanos e uma delegação papal para discutir a necessidade de acúmulo de riquezas por parte da Santa Igreja. Entre os franciscanos está Guilherme de Baskerville, monge pensador e erudito que preza pelo raciocínio e dedução, acompanhando de seu aprendiz e escrivão Adso, filho do Barão de Melk. Por espírito inquisidor, amor à verdade e ao emprego da lógica, Guilherme empreende investigações em busca de um culpado "carnal" para aquelas mortes, ao tempo em que tenta descobrir os mistérios que rodeiam a quase inacessível imensa biblioteca ali sediada, trancada à sete chaves.

A obra tem uma estrutura peculiar: é divida em dias (sete, no total) e estes são divididos em períodos correspondentes às horas litúrgicas (Matinas, Laudes, Prima etc.). Esse formato segue o manuscrito de Adso, narrador da história da qual fora testemunha. Umberto Eco nos diz, no Prólogo, que este manuscrito foi organizado posteriormente por um certo abade Vallet e que, em 1968, o autor teve contato com o material. Sob cada subdivisão das horas litúrgicas foram inseridos subtítulos em terceira pessoa, provavelmente por Vallet. Cada subtítulo sintetiza o que acontecerá nas próximas páginas. A "mentira" de Eco acerca da procedência da história ajuda o leitor a ingressar no clima de mistério da trama.



A narrativa é recheada de precisão histórica, em especial quanto a costumes medievais. Falando em referências, Umberto Eco escolheu bem os nomes de seus personagens. Guilherme tem o seu em referência clara ao homônimo de Ockham (mencionado no livro, dentro dos diálogos), pensador lógico que criou a teoria da Navalha de Occam e ao livros Os Cães de Baskerville, escrito por Conan Doyle e protagonizado pelo detetive Sherlock Holmes. Jorge de Burgos, por sua vez, remete ao escritor argentino Jorge Luis Borges. A própria biblioteca em forma de labirinto representa um dos aspectos da obra do autor cego, em especial pelo seu conto intitulado A Biblioteca de Babel.

Durante os sete dias de permanência de Guilherme e Adso na abadia, várias mortes ocorrem, com algo em comum: todas as vítimas tem manchas negras nos dedos e na língua. As disposições dos corpos, em alguns casos, chamam atenção, como se, no post mortem, alguém os manipulasse. Exceto pela primeira morte, ocorrida antes da chegada dos protagonista ao local, todas as demais, relacionadas, tratam-se de assassinatos. E, mesmo no caso da primeira (um suicídio), há uma correlação.

Cuidado com "spoilers" a partir daqui. Aos poucos, descobrimos que as respostas às mortes ocorridas ligam-se à biblioteca. Mais precisamente, ao que ela encerra. Uma encadernação com textos em árabe, sírio e grego. Indicada no códice de consulta em poder do bibliotecário Malaquias, de acordo com a data de aquisição e origem, dão a Guilherme pistas decisivas para solucionar o que está acontecendo. No entanto, sua entrada na gigantesca e labiríntica biblioteca é vedada. A biblioteca era a única fonte de pesquisa e de conhecimento, de maneira que até sua arquitetura foi planejada para confundir os "indesejados". Conforme palavras do Abade:

A biblioteca nasceu segundo um desenho que permaneceu obscuro a todos durante séculos e que a nenhum monge é dado conhecer. Somente o bibliotecário é que recebeu o segredo do bibliotecário que o precedeu, e o comunica, ainda em vida, ao ajudante-bibliotecário, de modo que a morte não o surpreenda, privando a comunidade dessa saber. (...) Somente o bibliotecário, além de saber, tem o direito de se mover no labirinto dos livros, somente ele sabe onde encontrá-los e onde guardá-los (...). Somente ele decide como, e se deve fornecê-lo ao monge que o está requerendo, às vezes após ter-se consultado comigo.

O livro em questão - suspeitamos em pouco tempo de leitura - é o segundo da Poética de Aristóteles, dedicado a Comédia (tão desprezada por Jorge de Burgos, por estimular o riso entre aqueles que deveriam cultivar a seriedade e o temor diante de Deus e da própria vida), considerado perdido ou nunca escrito. E, talvez, trate-se da última cópia existente. Como dito por Jorge, ele tem o "poder de mil escorpiões", tanto pelo conhecimento contrário à fé católica (ou, ao menos, crítico de alguns aspectos de tal fé) quanto pela fato de suas páginas estarem envenenadas, meio coladas, precisando que o monge passe-lhe saliva com os dedos e, com esses movimentos repetidos, acabe ingerindo o unguento e, consequentemente, falecendo.

O romance foi adaptado para o cinema em 1986 e isso, sem dúvidas, ajudou a popularizar o romance. A direção de Jean-Jacques Annaud soube como aproveitar tantos elementos de um romance erudito e levá-los à tela, numa trama de suspense envolvente, que cativou públicos diversos. A produção de arte é impecável. Aliás, para a constituição da abadia (cujo nome não é dito na obra), o diretor Jean-Jacques Annaud consultou um dos mais respeitados medievalistas do mundo: o francês Jacques Le Goff. As atuações são excelentes, em especial a do único grande astro hollywoodiano entre os competentes atores: Sean Connery. Christian Slater, ainda quase estreante, também merece reconhecimento.

Não é fácil produzir uma adaptação cinematográfica que agrade ao leitor, ainda mais tratando-se de Umberto Eco, onde o desfile de erudição não é comedido. Costumo dizer que o cinema, naturalmente, retira de uma obra literária toda sua parte adjetiva, mantendo tão somente a substantiva. Explico melhor. Enquanto o autor do romance (ou conto) tem nossa disposição por tempo ilimitado para discorrer sobre a natureza de um personagem, nos narrando seu estado emocional em minúcias e até mesmo esmiuçando seus pensamentos e sentimentos mais íntimos, por palavra, o cinema (ou televisão) não tem. Nestes últimos, temos que apreender o estado espiritual do personagem através de ações e expressão. A tentativa de narrar essas características deixa o filme enfadonho e até mesmo pueril, transformando-o numa antiga fotonovela. Enquanto, na obra cinematográfica, por exemplo, uma vítima de serial killer é apenas mais um figurante que deu azar, na obra escrita é alguém com vida pessoal, afetiva, profissional, com aspectos emotivos. Um exemplo que me socorre, agora, é a adaptação de O Xangô de Baker Street, de Jô Soares, para as telas por Miguel Faria Júnior. Ali, cada vítima do livreiro maluco é um mero transeunte; enquanto, na obra original, o autor nos fala sobre ela, às vezes intimamente. Jean-Jacques Annaud e os quatro roteiristas do filme souberam disso e conseguiram narrar, justamente, o essencial à ação e à compreensão do tema central presente na obra impressa.

Diante da necessidade de cortar muita coisa, vários momentos relevantes para se compreender o âmago dos assassinatos foram suprimidos. No romance, compreendemos como a biblioteca é o ponto central de toda a política da abadia. No livro, descobrimos que tanto Abade Abbone quanto o bibliotecário Malaquias foram inseridos em seus posto por empreendimento do aparentemente inofensivo Jorge de Burgos. Este deveria ser o próximo bibliotecário, mesmo que a oposição dos italianos a estrangeiros fosse grande. No entanto, ao quase tomar o lugar de outro potencial candidato (o velho e caduco Alinardo), começou a perder a visão e apressou-se a deixar, no local, um ambiente que lhe favorecesse, com a escolha dos cabeças que melhor lhe servissem. Malaquias e Abbone tornaram-se seus "fantoches", por assim dizer. A última grande aquisição de livros foi realizada por Jorge, quando ainda jovem e assistente do bibliotecário anterior. E todas essas informações auxiliaram frei Guilherme descobrir quem foi o responsável por todos os fatos "formidáveis" ocorridos nos últimos dias. Na província de Burgos e arredores era costume utilizar, ao invés do pergaminho mais tradicional, a charta lintea, uma espécie de tecido. E o livro cerne de todos os infortúnios possuía essas páginas delicadas, o que foi atestado pelo herborista Severino, que o teve brevemente em mãos.
Entre as melhores cenas, destaco o momento que a imensa biblioteca (uma das maiores da cristandade) é tomada pelo fogo e Guilherme tenta, às pressas, selecionar alguns tomos para salvá-los. Todavia, se dando conta de que seu esforço é inútil e apenas fruto do desespero, apenas olha em volta com ar de lamentação e abaixa a cabeça, em sofrimento.

Ótima atuação de Sean Connery!



Minha edição é da editora Record: brochura com papel bom para se ler (amarelado, o que não cansa a visão) e com fonte até grande, embora com pouca margem. São 576 páginas traduzidas por Aurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas de Andrade, dois competentíssimos acadêmicos. No entanto, recomendo que comprem a edição em capa dura com sobrecapa da Folha de S. Paulo, vendida em vários sebos por até R$ 10,00. Vi dezenas de ofertas no Estante Virtual. O trabalho da Folha para a coleção de sua Biblioteca foi muito bom e a tradução também é dos dois acadêmicos citados (salvo engano).

Sei que essas postagens longas sobre livros fora de moda não chamam atenção. Mas achei interessante divulgar um pouco da produção ficcional de Umberto Eco e, mais à frente, postarei uma resenha sobre seu último romance: O Cemitério de Praga (2011). Quem quiser boa literatura e um pouco mais de "conteúdo" em sua vida intelectual, leia este grande autor vivo.

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