Demolidor de Brian Michael Bendis – A maior queda do homem sem medo
A fase do Demolidor, escrita por Frank Miller, é não só uma melhores fases de Hqs, mas um ponto de virada para o personagem de Matt Murdock. Enquanto, a princípio, suas histórias eram mais light e com um clima de aventura, após Miller elas se tornaram um drama noir, com Demolidor sendo um vigilante bem mais sombrio e lidando com situações muito mais complexas, envolvendo violência urbana, corrupção e dilemas morais.
Essa representação se tornou o ponto de referência para vários autores seguintes que continuaram essa trajetória criando novos desafios que testavam a dedicação de Matt Murdock, com ele sofrendo uma perda atrás da outra, mas ele, no final preservando seus ideais.
Esse ciclo de triunfo e
tragédia sofreria uma reinvenção quando a Hq do homem sem medo foi assumida por
Brian Michael Bendis, que, anteriormente escreveu um arco nas edições de
Daredevil vol.2 nº16 a 19 até assumir oficialmente o título a partir da edição
26.
Em parceira com o artista
Alex Maleev, Bendis trabalhou na revista do Demolidor por 55 edições (Daredevil
vol.2 nº26 a 81), escrevendo histórias que realizaram mudanças ousadas no
status quo que deixaram marcas profundas em Matt Murdock, levando cada vez mais
a fundo do poço.
Trama
Uma tentativa de
assassinato é realizada contra Matt Murdock. O advogado consegue sobreviver,
porém, logo descobre que o ataque foi causado por alguém que pôs sua cabeça a
prêmio no submundo.
Enquanto isso, Wilson Fisk é traído e esfaqueado por vários seus associados, incluindo seu filho Richard.
Essa traição foi elaborada por Sammy Silkie, um malandro filho de mafioso que revelou aos outros chefes do crime que o Rei sabia da identidade secreta do Demolidor. Com essa informação, ele conseguiu virar os chefes do crime contra Fisk, planejando elimina-lo e tomar controle de seu império. No entanto, as coisas não sairiam como planejado: Fisk foi socorrido e sua esposa Vanessa ordenou a morte dos traidores. Sendo perseguido, Sammy recorreu a pedir proteção ao FBI, oferecendo, em troca, a identidade do Homem sem Medo.
Apesar do chefe do
departamento ordenar que deixassem o Demolidor em paz, um dos agentes vende
essa informação para um tabloide.
Com seu segredo
revelado e sua vida com risco de ser destruída por qualquer deslize, Matt
começa a lutar para proteger o que ele ainda tem. Mas, cedo ou tarde, suas
decisões o levarão a ter que responder pelas consequências.
Quebrando
a fórmula
Embora eu curta os
trabalhos de autores que assumiram o lugar do Miller, como Ann Nocenti e Kevin
Smith, eles sofrem de uma armadilha comum na área das histórias em quadrinhos:
Repetições.
Mesmo com aspectos que
davam para as fases deles identidades únicas e distintas uma das outras, certas
tramas eram muito réplicas uma das outras, como se eles tivessem tentando
copiar o que Miller já feito. Por exemplo
- Demolidor se
envolvendo com uma criminosa.
- O Rei do Crime ou
algum outro vilão tentando arruinar a vida do Matt e leva-lo a insanidade.
- Matt ficando
deprimido e se isolando de seus amigos.
- Matt e Foggy tem uns argumentos mas, no final, fazem as pazes.
Esses detalhes não
tornam as histórias ruins, mas eles prendem a narrativa num ciclo, tornando
suas direções um pouco previsíveis.
Por isso, foi uma decisão
sábia do Bendis confirmar em suas entrevistas que sua inteção não seria de
repetir o que outros autores fizeram com o Demolidor. Dito e feito, sua fase
buscou expandir sub-tramas já estabelecidas, explorando o impacto delas no Matt
Murdock e seu elenco de suporte. Como um Game of Thrones, nenhuma decisão é
irrelevante. Tudo que um personagem faz tem consequências numa escala maior, e
nenhum representa isso melhor que o nosso protagonista.
Rumo
ao inferno
Um aspecto do Demolidor
que tem se mantido consistente desde a sua reformulação pelo Frank Miller,
foram as contradições do Matt Murdock. Ele é um homem dedicado a fazer justiça
e ajudar pessoas, mas ele continua sendo apenas um homem, tendo defeitos e tentações,
o que resulta nele tomando ações imprudentes que tem resultados desastrosos.
Na fase Bendis essa
atitude chega num nível bem mais crítico: Se o segredo de Matt for confirmado,
ele pode perder sua licença de advogado e ser preso. Portanto ele é colocando
diante uma escolha: Confessar e encarar as consequências ou continua mentindo e
negando a verdade.
Embora Matt considere a
confissão, ele opta por negar os fatos, marcando a primeira de várias decisões
questionáveis que ele tomaria durante a fase, desde insistir num processo
contra o jornal que expôs seu segredo a começar um romance e se casar com a cega Milla Donovan.
Todas essas escolhas
chegam no seu auge no arco “Barra Pesada”, quando um recuperado Rei do Crime
faz seu retorno, enviando assassinos para distrair Matt enquanto ele
reestabelece sua posição de poder no submundo. Quando Milla é ameaçada pelo
Mercenário, Matt a defende, levando a um duelo intenso entre ele e seu inimigo
mais odiado. O confronto é brutal, com o Homem sem Medo liberando toda sua
fúria contida pelos traumas que o Mercenário lhe causou.
Após derrotar o
assassino, Matt confronta o Rei do Crime, com os dois tendo uma luta épica (com
ilustrações de vários artistas que trabalharam no personagem como John Romita
Sr, Gene Colan, Klaus Janson e Joe Quesada) que termina com o protagonista
espancando Fisk na frente dos chefes do crime, se declarando o novo rei da
cozinha do inferno.
Ter Matt tomando uma ação tão drástica e sua brutalidade nas lutas ajuda a demonstrar como essa fase não é uma típica história de super herói superando dificuldades. Na realidade, é um conto trágico de um homem sofrendo uma depressão após anos de estresse e sofrimento. Tudo que Matt se envolve não são lutas para salvar sua cidade ou inocentes, mas sim preservar as únicas coisas que ele ainda tem... ou que ele julga que merece.
Isso foi uma direção
bem arriscada, visto que o protagonista poderia ser representado de forma bem
antipática e egoísta para os leitores se interessarem. Mas, o roteiro de Bendis
consegue tornar essa queda do Matt bem compressível, fazendo o público se
importar com ele, apesar de seu estado emocional.... E coisas apenas vão ficar
piores...
Um
homem vs um sistema
Uma temática trabalhada
nas histórias em super heróis, desde sua criação, foi a ideia de
individualidade vs status quo, com os heróis sendo figuras que surgem em
respostas aos problemas de seu ambiente. Isso era meios do roteiristas
expressar críticas a problemas políticos e sociais através de suas criações.
Mas, conforme roteiros
Hqs foram se tornando mais sofisticados e complexos, os conflitos dos heróis
tbm deixaram de ser simplistas, passando a refletir as dificuldades de querer
mudar um sistema vasto, composto por instituições e indivíduos da sociedade que
eles defendem. Demolidor perfeitamente personifica tal dificuldade, sendo um
vigilante que age contra a corrupção no sistema, mas, como um advogado, ele
trabalha para o mesmo sistema.
Com esse detalhe em
mente, o que Bendis faz em sua fase é expandir a visão do leitor em relação a
sociedade e os regimes que a controla, com personagens como Matt, Wilson Fisk e
até mesmo coadjuvantes como Ben Urich e até o vigilante Tigre
Branco tentando driblar as regras de um determinado sistema para atender suas
necessidades (ex: Controle do submundo, mídias, família, etc....).
Esse é outro detalhe
que contribui para a qualidade da fase de Bendis. O roteiro dele distorce a
linha entre bem e mal. É difícil considerar qualquer personagem 100% um herói
ou vilão, porque no final, não importa se as intenções deles foram pensando no
bem dos outros ou de si mesmo, eles são apenas indivíduos tentando agir num
sistema que contrária o que eles julgam ser certo.
No entanto, os arcos fazem esses personagens serem forçados a
confrontar como esse sistema que eles desejam mudar é maior do imaginam, pois é
a partir dessas leis que um grupo ou sociedade determina seus princípios
básicos. Quanto mais um indivíduo tenta mudar ou contrariar isso, mais
resistência será encontrada e o medo das consequências sempre estando sobre suas cabeças.
Quando
a arte vale mais que palavras....
Não dá para falar da
fase do Bendis sem citar a arte marcante do Alex Maleev.
As histórias já são bem
escritas, porém eles conseguem ser mais memoráveis graças ao estilo artístico
de Maleev, que faz uso desenhos bem sombreados (principalmente os backgrounds)
para criar uma atmosfera que transmite o clima urbano desse drama noir.
Quanto aos designs dos
personagens, eles tem uma proporção bem mais realista comparado com trabalhos
anteriores, mas não deixam bem expressivos. Tem alguns quadros nem é preciso de
balões, com a arte fazendo toda narrativa através dos visuais, expressões
faciais e ações dos personagens.
Falando em ação, as lutas são outro ponto alto, com cada uma dinâmica e intensa, de forma que o leitor consegue sentir o quão impactante são os golpes dos personagens.
Considerações
finais
Se estão à procura de
uma típica história de super herói, com muita ação e o protagonista triunfando
sobre o herói, Demolidor de Brian Michael Bendis pode não ser do seu
interessante. É uma fase bem melancólica, com o foco sendo dedicado aos
diálogos (o que não é surpresa, visto que isso foi escrito por Bendis) e o estudo
do estado mental do Homem sem Medo. Seu ritmo começa meio lento em algumas
edições, fazendo leitores ficarem ansiosos para que chegue nas lutas e
pancadaria.
Mas a espera vale a
pena, pois toda essa fase é bem escrita e os diálogos discutem coisas bem
interessantes quanto aos personagens que atrai atenção dos leitores e contribui
para que eles conheçam e se conectem com esses personagens. São esses
indivíduos envolvidos na trama que formam o núcleo dessa fase e o que a torna
tão interessante.
Portanto, embora Demolidor de Frank Miller ainda seja uma das melhores fases de hqs de todos os tempos (e a fase definitiva do Demolidor), Demolidor de Brian Michael Bendis, na minha opinião, é a segunda melhor fase do Demônio de Hell’s Kitchen e uma leitura recomendável para os fãs e os que desejem conhecer mais do herói.
Nota: 9/10