Há
alguns meses, tenho acreditado estar em um tipo diferente de depressão
daquela que me assolava quando atuava em sala de aula, que era seguida
de pequenos episódios de pânico, angústia profunda, dor no peito,
taquicardia, falta de ar.
Com
a mudança de ambiente de trabalho, todos esses flagelos desapareceram,
mas penso eu que só por vingança, por pirraça, levaram com eles os meus
prazeres pessoais que por tanto tempo amordaçaram e me impediram de
exercer e usufruir : uma boa e tranquila leitura, uma idílica caminhada,
uma madrugada passada a assistir filmes na TV, sair para beber com
velhos amigos.
Uma
vez banidos de mim, por pura vendeta, arrastaram com eles os reféns que
fizeram agrilhoados por longa data. Fiquei apenas com um grande vácuo,
com uma profunda tristeza. Não daquelas tristezas lancinantes, de
debulhar-se em mares salgados de Potugal. Uma tristeza mansa,
aconchegante, até. Feito pijama de flanela vestido em noites de frio e
neblina. Tristeza que chega a confortar e a fazer festinhas e bili-bilu
na minha autopiedade. Mas também que não me faz querer nada além que não
seja dormir, que ficar recolhido, em total apatia, sem ânimo ou energia
para nada : ler, andar, conversar, rir.
Foi-se o nó górdio do peito. Ficou a total anedonia.
Vez
ou outra, porém, advogando intimamente em causa própria - não que eu
seja um réu a quem deva ser dado os benefícios do álibi e dos
atenuantes, muito menos os da presunção de inocência e de um julgamento
justo -, ponho-me a racionalizar que talvez o problema não esteja ou
seja comigo, não de todo, pelo menos. Ponho-me a pensar que talvez não
tenha sido eu quem perdeu o total interesse pelas coisas, mas sim que
sejam elas que, nos últimos tempos, estejam de fato desinteressantes,
chatas, repetitivas, sem nenhuma originalidade, nada de novo sob o sol.
Em
geral, repilo essa racionalização, por fazer-me soar pretensioso e
pernóstico em afirmar que ninguém no planeta esteja a fazer algo novo e
bom.
Porém,
ontem, aconteceu uma coisa que veio meio que corroborar essa minha
racionalização talvez pretensiosa. Ontem, assisti ao filme A Substância, com a Demi Moore e dirigido pela francesa Coralie Fargeat.
E pãããããããããããããããããta que o pariuu!!!!!!!
O
filme é bom pra caralho!!!! Durante suas duas horas e pouco de duração,
as minhas veias e artérias voltaram a ser vias expressas de hemácias na
hora do rush. Durante suas duas horas e pouco de duração, em nenhum
momento, senti-me enfastiado ou desinteressado, sim o oposto, elétrico,
concentrado, absorto. Durante suas duas horas e pouco de duração, não me
senti embalsamado, como há meses venho me sentindo.
Repito : o filme é bom pra caralho!!!
Corajoso.
Sobretudo, corajoso. Corajoso, vocábulo tão em desuso, já a beirar o
arcaísmo, é o adjetivo que melhor define e abarca A Substância.
Corajoso. O mais deles talvez em décadas de uma Hollywood politicamente
correta, afrescalhada, feita refém pela mimizenta da porra agenda woke e pelo nazifascimo identitário dos tais "grupos minoritários".
Hollywood
na qual, hoje em dia, um filme só terá a vaga chance de abiscoitar uma
estatueta do tio Oscar caso atenda a uma canalha cartilha progressista,
caso conte com uma porcentagem obrigatória de pessoas pertencentes aos
"grupos minoritários", tanto no elenco quanto na produção e nos
bastidores. Caso contrário, nem mesmo indicado ao Prêmio da Academia,
ele será. Hoje, clássicos como Ben-Hur, O Poderoso Chefão, Casablanca, Um Estranho no Ninho etc sequer concorreriam ao prêmio. Nem mesmo o primeiro Star Wars
(1977), um tremendo divisor de águas no quesito efeitos especiais,
teria tido a mínima chance; a não ser que os alienígenas do boteco de
macho das antigas em que Han Solo entra pudessem ser considerados
representantes de "minorias galácticas".
Ocorre-me
que, talvez, nem sejam a criatividade e a originalidade os atributos
mais escassos atualmente. Talvez seja de fato a coragem. A coragem do
gênio criador em parir para o mundo o rebento de sua inventidade, seja
ele considerado, depois, belo ou deformado, aceito ou execrado. A
coragem de dar a cara a tapa, de correr o risco - e pouco se foder para
isso - de ser cancelado. Quantas obras talvez geniais e revolucionárias
não morreram nos últimos anos sem nem mesmo nascerem, restritas à cabeça
de seus criadores, abortadas pela patrulha ideológica, que acaba, ao
longo do tempo, por tornar-se em autocensura? Quantos escritores,
cineastas, músicos etc, nos últimos anos, não tenham talvez desistido de
grandes obras pela falta dessa coragem de darem a cara a tapa nessa
luta desigual com o politicamente correto?
Pois A Substância
- tanto a diretora Coralie Fargeat quanto Demi Moore, em um papel que
em nada lhe é convencional - dá a cara a tapa do primeiro ao último
minuto de película. Dá a cara a tapa e não recua um milímetro, mesmo que
uma saravaida deles lhe sobrevier.
Aliás, só fui saber que A Substância
foi dirigido por uma mulher depois que terminei de assisti-lo e fui em
busca da informação. Em vários momentos, lembrou-me do diretor David
Cronenberg em seus bons tempos - Scanners, Gêmeos : Mórbida Semelhança,
Naked Lunch. Nem tanto no roteiro, mas muito na estética agradavelmente
grotesca. Lembrou-me também dos desenhos do ilustrador de HQs,
principalmente de terror, Bernie Wrightson, um dos criadores do Monstro
do Pântano, da DC.
Não vou aqui antecipar revelações sobre o filme, ou, como dizem os viadinhos de plantão, dar spoilers. Nem spoiler nem outra coisa. Apenas o desenharei em linhas gerais. Mesmo porque me falta competência técnica para resenhas e sinopses.
A
história se desenrola em torno de Elisabeth Sparkle - a gostosíssima
sessentona Demi Moore -, outrora uma atriz ganhadora de um Oscar, com o
nome na Calçada da Fama e tudo, e que, ao início do filme, é uma decana
musa fitness da TV cujo contrato acabara de ser cancelado e está prestes
a ser substituída por uma gostosa mais novinha.
Por
vias anônimas e misteriosas que não anteciparei aqui, ela tem a chance
de que a novinha a lhe substituir seja ela mesma, ou uma versão mais
nova de si, um upload. Cai-lhe em mãos uma substância, que, uma
vez injetada, acelera à velocidade da luz suas mitoses, suas divisões
celulares, e gera uma outra dela dentro de seu corpo. Uma outra bem mais
jovem, vinte e poucos aninhos, bunda e peitos durinhos. Uma outra que
não é dada à luz através da vagina ou por cesariana, sim por um enorme
talho longitudinal fendido da nuca ao cóccix de Elisabeth Sparkle.
No
entanto, para que as existências das duas sejam mantidas e preservadas
integralmente é necessário seguir à risca o manual de instruções que
acompanhou a substância. Seguir religiosamente todo um processo
químico-ritualístico. Ditames que, logo, começam a ser desrespeitados
pela versão mais jovem de Elisabeth, mais irresponsável, inconsequente,
afoita, enfim, cheia de vida.
E
é aí que a coisa degringola. Ou antes : é aí que a coisa melhora, que o
filme começa a caminhar rumo ao seu esplendor. E só vou até aqui.
O
filme tem cenas que poderiam ser consideradas eróticas - há bastante
nudez de Demi Moore e de sua clone lolita, peitos apetitosos, bundinhas
apetecíveis, bucetinhas peludinhas. Mas não são. Não excitam
sexualmente. Estão ali porque, simplesmente, a nudez existe.
O
filme tem cenas - muitas e muitas - que poderiam ser classificadas como
nojentas, de mau gosto, escatológicas - há muito sangue, deformidades,
decomposição, vesículas purulentas, teratomas. Mas não são. Não provocam
(não me provocaram, ao menos) asco, repulsa, ânsias e engulhos. Estão
ali porque, simplesmente, o fenecimento e a perecibilidade existem.
Porque o viço e o frescor da carne e da vida são, se não ilusórios,
fugazes e fugidios. Não resistem por muito tempo à infantaria da idade,
dos fungos e das bactérias.
A Substância
tem tudo para chocar e escandalizar; não choca nem escandaliza (não me
escandalizou, ao menos). Pela força e beleza com que foi feito. Pela
pureza com que foi pensado. Pureza no sentido de naturalidade, pois tudo
que é puro no sentido de natural é sujo, é múltiplo, é impregnado de
imperfeições. Não confundir puro com refinado - açúcar, farinha, sal -,
que é o natural castrado. Não há refinamento em A Substância, só
pureza. E, digo de novo, pela coragem com que foi trazido a público.
Pela genialidade, em suma. À qual, tudo se perdoa e se celebra.
Em
uma das cenas finais - não a final -, vários filmes e diretores se
misturaram em minha cabeça. Estava ali o baile de formatura de Carrie, A Estranha (o original, não a desgraça do remake), de Brian de Palma; estava ali as cabeças trinitrotoluênicas de Scanners, de David Cronenberg; e estava ali o banho de sangue de Uma Thurman em Kill Bill, de Quentin Tarantino.
Magnífico.
E
o filme termina com o rosto de Demi Moore - apenas o rosto -, feito em
uma medusa disforme de carne e de sangue, a rastejar dolorosamente em
direção à estrela na Calçada da Fama com o nome de Elisabeth Sparkle.
Coloca-se e acomoda-se sobre ela, a estrela da fama. Experimenta um
último respiro e um derradeiro vislumbre de seus dias de glória. E
morre. Desmancha-se sobre o cimento estrelado. Dilui-se no pavimento.
Ao amanhecer, uma máquina de limpeza, uma espécie de enceradeira, remove seu chorume do firmamento.
Poético pra caralho!!!
Pra caralho!!!
Assistam! Não é para estômagos fracos. Mas assistam!
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