Neste mês, será comemorado (pelo menos, eu comemorarei) o centenário de nascimento de Charles Henry Bukowski. Em 16 de agosto de 1920, era expelido para o mundo a criança que viria a se tornar o Velho Safado.
Conheci Bukowski há exatos 20 anos, no ano de 2000. O ano mais atípico de minha vida e do qual guardo boas e saudosas recordações.
Aprovado em 1998 em um concurso de provas e títulos para professor da Rede Pública do Estado de São Paulo, tomei posse do meu cargo em inícios de 2000. Com apenas uma vaga da minha disciplina na cidade, preenchida por uma menina que ficou em 6º lugar na classificação geral do Estado (eu fiquei em 47º), escolhi minha vaga e fui de mala e cuia para a cidade de Mococa, a uns 100 km de Ribeirão.
Concomitante à minha conquista do cargo, e há três semanas já em novo endereço, levei um fragoroso pé na bunda da namorada. Pé na bunda não de todo inesperado; alguns ameaços, algumas simulações haviam ocorrido nos últimos meses. O que não impediu, no entanto, que tenha sido o fora mais doído que já levei.
Devo ter chorado e bebido um pouco além da conta por uns quatro ou cinco dias, mas não cheguei ao ponto de comprar um CD sertanejo. Depois disso, estranhamente, meio que do nada, ao invés de me sentir abandonado, peguei-me liberto. Eu era um forasteiro, agora. Em uma nova cidade, com uma nova vida sem nenhum vínculo com nada ou ninguém. Um perfeito anônimo. Talvez daí a sensação de libertação.
Fora
o tempo que eu gastava empolgado com a nova carreira, labutando na
crença imberbe de fazer alguma diferença ao mundo e outras pataquadas em
que acreditamos quando temos a juventude ao nosso lado, pouco havia o
que se fazer. Eu não tinha ninguém com quem me preocupar, nem mesmo um
gato magro ou um vaso de cactos para regar uma vez por semana.
Comprei
lá uma televisão de 20 polegadas, porém, tendo em vista os quatro ou
cinco canais que ela sintonizava, eu pouco a ligava; exceto para, ao
chegar em casa de minhas aulas noturnas, dar o meu boa-noite de todas as
noites à bela Ana Paula Padrão, então apresentadora insubstituível do
Jornal da Globo. Possuía também um rádio com tocador de CD e uma meia
dúzia de títulos; rádio que, quando eu dava sorte, conseguia sintonizar
uma boa rádio FM de Vargem Grande do Sul, especializada em MPB das
antigas, mas, no mais das vezes, interferências impediam a sua boa
audição. Telefone, nunca tive por lá. E não falo de celular, não; que
deste eu não tenho nem nunca tive. Digo de telefone fixo, mesmo. Passei
os três anos em que residi em Mococa sem telefone em casa. Trazia sempre
comigo um daqueles cartões de telefones públicos, cujos créditos
gastava para ligar uma ou duas vezes por semana para os meus pais, dizer
que eu estava vivo. Muitos na escola, no começo, estranhando eu não ter
algo "imprescindível", perguntavam como as pessoas iriam me achar. Eu
respondia que essa era mesmo a ideia, que elas não me achassem.
Com
todo esse tempo disponível e uma vida praticamente monástica, de monge
trapista, eu lia. Lia muito. Pra caralho. Como nunca em nenhum outro
período da minha vida. Uma média de dois livros por semana; três se eu
não fosse para a casa de meus pais no fim de semana. Morava a poucos
quarteirões da Biblioteca Municipal, instalada em um antigo casarão dos
tempos auriverdes do ciclo do café, um tanto quanto já desgastado e mal
conservado, mas com um charme dos mais peculiares. Feito eu.
E foi na Biblioteca Municipal de Mococa, em 2000, que dei de cara com o primeiro romance escrito por Bukowski, Cartas na Rua.
Confesso
que quase não o retirei para ler. Normalmente, nem o título - que
sugeria, talvez, um algum romance açucarado em torno de cartas de amor -
nem a composição da capa teriam atraído mais do que alguns segundos de
minha atenção, e logo o enfiaria de novo em seu nicho na estante.
Normalmente. Porém, uma sensação de familiaridade com aquela capa, um déjà vu,
fez com que eu o mantivesse por um tempo nas mãos - tentava lembrar de
onde eu o vira antes. Boa que era então, minha memória me socorreu de
pronto.
Eu
vira aquele livro há uns 15 ou mais anos, uma foto dele num catálogo do
Círculo do Livro, do qual minha mãe foi sócia por muito tempo - li
muitos Sidney Sheldon e Danielle Steel de minha mãe. Por uma taxa fixa,
os sócios recebiam o Livro do Mês e um catálogo de lançamentos, caso
quisessem encomendar outros títulos. Era de um desses catálogos que eu
me lembrava do livro. Tocado, talvez, pela lembrança, resolvi arriscar,
emprestei-o e o levei para casa. Dentro daquele envelope que fica colado
na terceira capa dos livros de biblioteca, a ficha de empréstimo me
informava que ele nunca fora retirado.
Ainda bem que eu o fiz. Sem exagero nenhum, a minha relação com a escrita pode ser dividida em a.B e d.B.
Antes e depois de Bukowski. Muito provavelmente, entre outras coisas,
este blog não existiria como tal se eu, naquele dia há 20 anos, não
tivesse levado o velho Buk para casa. Eu já escrevia poemas à época, mas
nunca me ocorrera a possibilidade de escrever narrativas um pouco mais
longas, crônicas e contos. Até a ocasião, havia para mim uma certa aura
de impenetrabilidade nesses gêneros. Crônicas, escreviam-nas o Fernando
Sabino, o Luís Fernando Veríssimo. Contos, o Machado de Assis, o Murilo
Rubião, o Otto Lara Rezende. Eu? Meter-me a tal? Pois Bukowski me
mostrou que era possível - ainda que se faça sem nenhum estilo, como eu.
Cheguei
com o livro em casa na hora do almoço, e, como não lecionava à tarde,
comecei a lê-lo por volta das treze horas. Tudo naquelas páginas era
novo; ao mesmo tempo, tudo se revelava como se fosse um velho conhecido
meu. Nem parecia uma leitura, parecia uma conversa mental entre mim e
aquele livro de cujo autor eu nem fazia ideia de como fosse a cara.
Capítulos curtos e concisos, feito jabs de um habilidoso
boxeador; diálogos que nem eram diálogos, sim conversas de mesa de
buteco, de intervalo no batente para o cafezinho e o cigarro. E Henry
Chinaski, então, que personagem era aquele? Um bêbado fodido e sempre na
merda, mas muito bem resolvido com sua condição de bebum. Nenhuma
culpa, nenhum arrependimento, nenhuma lamentação ou autocomiseração
naquele sujeito. Nenhuma vontade ou intenção de sair daquela vida, de se
"curar" da birita. "Qualquer um pode ser sóbrio, mas é preciso talento para ser bêbado", dizia Chinaski/Bukowski, "para ir trabalho de ressaca trezentas vezes no ano".
Os percalços e atropelos de Chinaski não eram narrados na tentativa de
granjear alguma simpatia piedosa por aquele funcionário dos Correios que
vivia de ressaca; pelo contrário, expunha toda a sua podridão e as suas
falhas de caráter, o tornava odiável, repugnante. Nunca vira antes
tamanha crueza e honestidade na composição de um personagem, ainda mais
que, fundamentalmente, de cunho autobiográfico. Tampouco as suas
histórias recheadas com elementos considerados pornográficos e
escatológicos eram feitas para chocar, mas sim porque assim eram as
coisas no mundo de Bukowski.
Eu
já estava abduzido pela leitura. Foi quando, então, durante uma
conversa com uma companheira de copo, que reclamava da misantropia
dele, Chinaski disparou : "não é que eu odeie as pessoas, mas me sinto melhor quando elas não estão por perto". Neste momento, ele acabara de me ganhar. Definitivamente.
Quando
dei por mim, o livro já ia pela sua terça parte e eram cinco e meia da
tarde. Precisava tomar banho, engolir alguma coisa e sair dentro de uma
hora para minhas aulas da noite, que começavam às 19 horas. No banho,
deu-me um puta vontade de beber. Cerveja, não havia nenhuma na
geladeira. Mesmo que tivesse, eu não a tomaria tão perto que estava do
meu horário de trabalho - eu ainda tinha certos pudores e pruridos.
Resolvi
- e até hoje não sei por quê - provar de uma droga para mim inédita : o
café. Com 32 para 33 anos de idade, nunca havia provado café na minha
vida. Gostava do cheiro e tudo, mas nunca me apetecera tomá-lo. Havia um
pacote de café no meu armário da cozinha, do qual poucas colheres
tinham sido subtraídas, comprado por ocasião da única visita da minha ex
em meu apartamento, ao fim da qual, recebi minha demissão sem justa
causa. Também uma caixa de papel de filtro e suporte. Não sabia nem a
medida a ser usada. Arrisquei lá uma colher de sopa bem cheia para uma
caneca de água, adocei e entornei. Gostei do gosto, mas não era nada do
outro mundo, nada de mais. O que as pessoas tanto viam no café, a ponto
de se viciarem nele? A resposta me veio poucos minutos depois. Quando eu
estava a terminar de me vestir e pegar meu material para sair, o efeito
bateu! Virgens de cafeína que eram, os meus neurônios, sempre tão pouco
afeitos a qualquer tipo de confraternização, deram uma festa na minha
cabeça, um baile de debutantes, de formatura, sapatearam pra valer no
meu crânio. Que sensação boa era aquela. Melhor que o meu primeiro
beijo. Que minha primeira trepada.
Pela
rua, a caminho da escola, segui naquele leve estado de leveza e
euforia, com o café e o Bukowski nas veias. Coquetel que me deu coragem
de chegar junto numa professora. Que, eu julgava, parecia se insinuar
para o meu lado há algum tempo, há uns 15 dias. Doida de pedra,
esquizofrênica diagnosticada, tarja preta 4º dan, garantiram-me
dois professores antigos da casa, quando lhes disse de minhas intenções -
informações que pude comprovar na prática.
Era
uma sexta-feira. No intervalo, dei uma calibrada com um copo do café
servido na sala dos professores, sentei-me ao lado dela, jogamos meia
dúzia de palavras e gracejos fora e fiz o convite. A noite acabou numa
bebedeira de vinho Canção - bom e barato, comprado à uma loja de
conveniência 24 h - no meu apartamento. De dentro do livro, deixado ao
pé do sofá da sala, o velho Buk me dava a sua bênção. E me imprimia a
sua maldição.
Eu estava de volta ao jogo.
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