Crítica: Michelangelo Infinito



Michelangelo Infinito
por Joba Tridente
publicada originalmente em Claque ou Claquete

As coisas que sempre me incomodaram (e ainda incomodam!) em matérias televisivas e impressas, bem como em documentários sobre arte, são o tempo e o espaço imensos ocupados pela figura do artista (como se ele fosse mais importante que o seu conceituado trabalho) e o curto tempo e o pequeno espaço dedicados ao que realmente interessa: as obras em exposição (plásticas, fotografia, teatro, dança, literatura etc). O mesmo acontece com documentários sobre a natureza, onde todo som natural (rios, cachoeiras, animais, vento etc) é substituído ou sobreposto (o que é ainda pior!) por insuportáveis trilhas musicais chorosas, não bastassem o texto e as narrativas feitas por gente de dicção comprometedora.

Desde criança gosto de documentários..., mas, a cada dia da maturidade, a impressão é a de que perdem o dinamismo em prol do oportunismo, do exaustivo (e indiscriminado) uso das famosas e também de duvidosas cabeças falantes, que ocultam falhas técnicas, falta de material, e resultam em filmes pouco ou nada envolventes. Há mais veracidade no registro fotográfico (por exemplo) de fatos, do que em depoimentos sobre fatos, já que sempre se corre o risco da traição da memória..., ou da parcialidade.


No ritual dos documentários há, entre outros, o estilo docudrama, onde o (a) protagonista-tema, interpretado(a) por ator e ou atriz, “relata” a própria saga..., como é o caso do italiano Michelangelo Infinito (2018), que, através de dois monólogos (que se entrelaçam) e um texto narrado, traça um panorama da vida e obra do grande arquiteto, escultor, pintor e poeta renascentista Michelangelo Buonarroti (1475-1564). Nele, acompanhamos Michelangelo (Enrico Lo Verso), como se estivesse sendo entrevistado, falando (diretamente para o espectador) da sua adolescência à vida adulta, da obsessão pela arte escultórica e da angústia religiosa, do relacionamento com o alto clero e (quase inexistente) com outros artistas...; o biógrafo  Giorgio Vasari (Ivano Marescotti) contando (diretamente para o espectador) da sua admiração por Michelangelo e fazendo observações pessoais sobre o artista...; e, alinhavando os dois monólogos, a voz/off do ator e dublador Simone D’Andrea complementando os relatos com informações outras (posteriores aos fatos).


Como não há crédito algum de referência, além da presença de Vasari, acredita-se que o documentário dirigido por Emanuele Imbucci, que colaborou no roteiro a três cabeças pensantes, seja inspirado na biografia de Michelangelo, escrita pelo pintor, arquiteto e historiador da arte Giorgio Vasari (1511-1574), publicada em “As vidas dos mais excelentes pintores, escultores e arquitetos” (Le vite de' più eccellenti pittori, scultori e architettori, 1550). Excetuando a dramatização teatral, com suas excelentes reconstituições episódicas, Michelangelo - Infinito é um filme que soa um tanto acadêmico-didático e um tanto galeria-tour, na exposição do riquíssimo conteúdo..., informando e ilustrando ao público qual teria sido a razão e como teria sido a realização das mais importantes obras do gênio renascentista, como Madonna da Escada; Centauromaquia; BacoPietáDaviTondo Doni; Batalha de Cascina; teto da Capela Sistina e mural O Juízo Final; Moisés/Túmulo de Júlio II; Pietá Rondanini; Túmulos de Lorenzo de Médici e Giuliano de Médici...


A belíssima fotografia de Maurizio Calvesi, que emoldura a narrativa, tanto enaltece as iluminadas pinturas quanto (contraditoriamente, já que Michelangelo preferia a escultura à pintura) obscurece as esculturas, que são mostradas com mais sombras que luz e, preferencialmente, em breves closes, ressaltando alguns detalhes em detrimento da beleza do todo. Se o espectador piscar, perdeu a magnitude “das almas libertas da pedra”. Já às pinturas do teto da Capela Sistina e do mural O Juízo Final e aos estudos para Batalha de Cascina e esboços na sala subterrânea da Basílica de San Lorenzo (descobertos em 1975) o tempo dedicado à apreciação é (aparentemente) muito maior e o detalhamento também faz mais sentido. Ou seja, tecnicamente, o filme te dá e te tira o prazer de apreciar algumas obras por completo. Como tem patrocínio do Museu e da Mídia do Vaticano, possivelmente a ideia seja a de dar ao público (e potencial turista) um bom aperitivo, a fim de despertar a fome de conhecer as obras in loco nos palácios-galerias católicos. A bonita trilha sonora de Matteo Curallo pontua bem o enredo, sem parecer invasiva e ou irritante.


Entre a “certeza” e a “incerteza” dos fatos sobre a vida pessoal e artística de Michelangelo, que nos chegaram e ainda causam controvérsia séculos depois, independente das características técnicas ficarem entre o televisivo e o cinematográfico e do toque ficcional (?) às vezes incômodo (ou inverossímil) nos monólogos, Michelangelo Infinito é um documentário limpo, redondo (enciclopédico?), rico em imagens e cuja cadência (melodramática ou não) é acessível a qualquer público iniciado ou leigo em obras do artista (algumas peças eu mesmo desconhecia). Pode até carecer de espaço (?) para aprofundar questões político-religiosas (se é que havia essa intenção!) e maiores considerações sobre Michelangelo e sua época, que abrigava outros gênios como Leonardo da Vinci (1452-1519), Rafael (1483-1520), Botticelli (1445-1510)..., porém, não me pareceu aborrecido e ou grandiloquente e, ainda que espelhe a imensa devoção do diretor pelo grande mestre de Florença e Roma, não se trata de uma hagiografia. 

Enfim, este é um documentário para se ver sem compromisso e com os olhos bem abertos para apreciar tanta beleza plástica. Quanto aos monólogos, se incomodarem, relegue-os. Sabe-se lá se o que ouvir eram realmente os pensamentos de Michelangelo em confronto ou conflito com o seu deus interior e ou exterior...


*Joba Tridente: O primeiro filme vi (no cinema) aos 5 anos de idade. Os primeiros vídeo-documentários fiz em 1990. O primeiro curta (Cortejo), em 35mm, realizei em 2008. Voltei a fazer crítica em 2009. Já fui protagonista e coadjuvante de curtas. Mas nada se compara à "traumatizante" e divertida experiência de cientista-figurante (de última hora) no “centro tecnológico” do norte-americano Power Play (Jogo de Poder, 2003), de Joseph Zito, rodado aqui em Curitiba.

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