Universo Ultimate - O Fim do Domínio de um Falso Deus?



É engraçado pensar que as melhores histórias chegam ao fim, é assim, que vemos a conclusão da grande narrativa do Universo Ultimate da Marvel. Soa poético pensar que tudo isso ganha novos contornos no última dia do ano, período esse que por natureza é acompanhado de uma série de reflexões, juntamente de novos começos e também de encerramento de ciclos. Curiosamente, esse fim caiu em uma quarta-feira — dia que, para leitores de quadrinhos, carrega um simbolismo especial, afinal, é quando chegam as novidades semanais.


A DC, que vinha há meses ganhando destaque com os títulos ligados à iniciativa All In e ao evento DC KO, hoje deu lugar a outro momento histórico: as peças que marcaram o fim do Universo Ultimate da Marvel.

Tivemos o lançamento da grande revolução dos Supremos, com títulos conduzidos sob a pena de Deniz Camp. Marcando a conclusão de uma era de grande sucesso, foi lançada a primeira edição de Ultimato, título que simboliza o retorno do Criador — vilão oriundo do antigo Universo Ultimate, uma variante maligna de Reed Richards. O Criador antagonizou personagens do universo regular após Guerras Secretas, de Jonathan Hickman, e teve seu retorno triunfal em Invasão Suprema, onde passou a modelar a realidade à sua própria imagem e semelhança.

SPOILERS A FRENTE DA EDIÇÃO 1 DE ULTIMATE END GAME!!!

Mas o que significa imagem e semelhança quando aquele que cria possui uma visão deturpada? Essa é a pergunta que deve nortear nossa reflexão, uma vez que o domínio e o controle exercidos por regimes totalitários que usurpam os direitos e a liberdade da população são um reflexo recorrente da história humana, independentemente de viés ideológico, algo que vemos claramente em nosso mundo real.

E como a arte imita a vida ao transpor os anseios da necessidade de redenção do mundo, tema que já comentei em outro texto meu: A Eucatástrofe da Históra: Deus, Cultura Pop e a busca por um final Feliz.

O que temos é a apresentação de um universo em que um vilão déspota assume o poder Supremo: altera a Terra, elimina heróis, molda destinos, usurpa poderes, escraviza raças, realiza experimentos com os menos favorecidos, explora recursos naturais ao extremo de causar impacto socioambienrais e domina tudo sob sua Cidade. Um domínio sustentado por um Conselho formado por variantes malignas de personagens clássicos da Marvel e pelo Tentáculo — organização mantenedora da “ordem”, liderada por Nick Fury (a versão clássica, branca… só talvez não tão humana). A ação do Criador se estabelece sob a ideologia de um mundo perfeito. No entanto, a ilusão rui diante do coração humano daquele que se chamava Homem de Ferro, não Tony Stark, mas ainda assim um Stark. Howard Stark ocupa a posição de liderança norte-americana ao lado de Obadiah Stane, comandando uma megacorporação que mantém a América sob o domínio do vilão.


O preço da liberdade é conquistado com o auxílio oriundo do futuro, com ação do Kang contra o Criador. A partir disso, podemos dizer que o tempo se recusa a ser dominado por aquele que se proclama como Deus e as peças do jogo divino começam a se reposicionar. Existe uma esperança para esse mundo, porém, foi a própria vida do herói o preço a ser pago para conseguir essa possibilidade. Seu sacrifício dá início ao legado do filho e concede ao mundo dois anos para organizar a mudança. Agora, o jovem Tony Stark, sob a alcunha de Rapaz de Ferro, portando o Motor Immortus é  quem encabeça o Projeto Supremos, nasce uma revolução heroica e popular que implica mudanças globais.


A esperança reacende por todo mundo, com o ressurgimento de heróis. Em Nova York, Peter Parker assume o manto do Homem-Aranha, lidando com o dilema familiar de conciliar sua vida heroica sendo pai e esposo, ao lado de seu grande amigo Harry Osborn, o que altera as relações convencionais que temos na dupla de antagonistas, aqui, amigos e parceiros de batalha sob a escrita do Jonathan Hickman, idealizador desse projeto do Universo Ultimate que originalmente iria para o Donny Cates, que teve que se afastar devido a um fatídico acidente.

Na África, as fronteiras de Wakanda são bombardeadas por uma guerra santa orquestrada por Khonshu e Rá contra Bast e seu povo, sendo defendidas pelo Pantera Negra e pela mutante Tempestade. O título é escrito por Bryan Hill.

No Japão, surge um dos títulos mais inusitados do universo: um grupo não convencional de mutantes, formado apenas por garotas, que enfrentam a Seita dos Filhos do Átomo — responsável por experimentos com crianças e adolescentes para fortalecer o Imperador Solaris. A história ganha as cores aquareladas da Peach Momoko, sendo um verdadeiro manga com uma dosagem de horror.

E temos ainda o Christopher Condon assumindo o título do clássico Logan sob uma nova estética: agora na Rússia, atuando como o Soldado Invernal da Dinastia Rasputin, tendo Colossus e Magia como principais antagonistas.

Durante esses dois anos de história, marcados por lançamentos em tempo real — em que cada edição se passa em um mês correspondente ao nosso próprio tempo — acontece algo inesperado: o final definitivo de uma narrativa de quadrinhos. No meio mainstream, testemunhamos uma trama com começo, meio e fim.

Agora, acompanhamos o fim do Universo Ultimate!

Quando a contagem regressiva dos últimos segundos começa, os heróis de cada título se reúnem sob a liderança do Rapaz de Ferro, Capitão Amérca e do Doutor Destino — esta versão sendo o Reed Richards desse universo — com a missão de enfrentar o Criador. Homem-Aranha e Miss América invadem a cúpula do vilão, enquanto She-Hulk, Homem-Formiga, Vespa, Luke Cage e os Vingadores Supremos (fruto de um projeto de reinserção carcerária) atuam em outras frentes.

Na Cidade do Amanhã, onde o tempo não segue padrões convencionais e está sempre avançando, como se o futuro fosse determinado pela vontade do Criador, somos confrontados com a decadência de um mundo perfeito. Situada no coração da Latveria, rompendo as barreiras de tempo e espaço, existem as ruínas de um futuro e lá os Filhos do Amanhã ainda atuam como marionetes higienistas do vilão, mas sua presença é quase inexistente — como se os milhares de anos de prisão após a batalha contra Kang, teorizado como uma versão futura de Tony Stark ou até mesmo de seu pai, tivessem apagado sua relevância.


Mas esse sumiço é justificado quando entra em cena o tema do transumanismo, ou da pós-humanidade. Porém, não são apenas criaturas que se transformam: o próprio Criador se anexa e se funde com sua criação. As raízes da maldade daquele que se autodenomina Deus, exterminando os imutáveis Eternos, se revelam quando ele se faz um com aquilo que criou, conforme a trama estabelece uma reflexão sobre o que pode estar além da humanidade como a conhecemos em contexto de super heróis e adota um tom forte de ficção científica e isso resulta no ápice quando o Falso deus e criatura se entrelaçam — não como o plano de uma Cidade Santa digna daquele que verdadeiramente molda a realidade, mas como o fruto da profanação, do domínio absoluto e do egocentrismo que um coração corrompido é capaz de gerar. 

O restante dessa história os próximos meses nos dirão. Mas já estamos diante do começo do fim de um grande evento cuidadosamente preparado ao longo de dois anos.


Recomendo a leitura de todo esse universo. Ele possui altos e baixos, como toda grande narrativa, mas abraça a criatividade que os quadrinhos ainda podem oferecer, sendo um respiro de novidade em meio à dura realidade que vivemos. Poucos quadrinhos recentes da Marvel podem ser apreciados com tanto louvor. Em meio a uma editora cada vez mais influenciada pelo MCU e por produtos como Marvel Rivals, muitas vezes perdendo sua essência, o Universo Ultimate se destaca.

Uma coisa é certa: a trama iniciada por Jonathan Hickman e tão brilhantemente continuada por Deniz Camp ficará para a história da editora.


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