Setor Final – Histórias de quadrinhos são forma de escapismo ou expressão?

 



O que é cultura pop?

Para fãs como nós esse termo se refere a franquias famosas que múltiplos gêneros e mídias. 



Porém essa é uma explicação feita com base numa visão superficial e isolada.  De forma mais precisa, cultura pop, como qualquer cultura, seria um conjuntos de manifestações artísticas que influenciam o interesse do grande público. Elas consistem em formas de artes visuais que expressam de forma criativa a visão de, um indivíduo ou grupo, em relação ao seu contexto histórico e o mundo a sua volta, seja uma crítica apoiando ou se opondo a ele.

Não importa o quão surreal pareça a obra em questão, é sempre possível identificar inspiração do autor ou artista por elementos e tópicos presentes no mundo real. Nenhum trabalho surge do nada, é tudo uma forma de expressão da realidade dos criadores.





Algumas pessoas discordam dessa interpretação, especialmente quando se refere a quadrinhos e suas adaptações em outras mídias. Eles julgam que esses projetos deveriam servir como formas de escapismo, métodos para fazer o público ignorar a realidade presente, apresentando um mundo mais fantasioso e livres de assuntos que deixam algumas pessoas desconfortáveis. Em alguns casos, esses indivíduos criticam a presença de tais tópicos nessas obras, dizendo que elas são arruinadas por terem mensagens, que se tornam propaganda política/social.

Mas será mesmo que eles estão corretos? Será que um quadrinho, filme ou qualquer outra obra tocar em questões políticas sociais impedem uma história de ser divertida e interessante?

Eu poderia apresentar exemplos como X-men ou Arqueiro Verde, mas, ao invés irei dedicar esse texto a ser uma review de um quadrinho que li recentemente: Setor Final (Far Sector).





 

Trama

Escrita por N.K. Jemisin, com a arte de Jamal Campbell, e publicada no selo Young Animal da DC Comics, essa história consiste numa minissérie, de 12 edições, protagonizada por uma nova Lanterna Verde, Sojourner “Jo” Mullein, que é escolhida pelos Guardiões para cumprir uma missão na Cidade Resistente, um planeta artificial, localizado numa esfera de Dyson, habitado por três raças distintas: Os seres digitais @At, os alados Nah e os Keh-Topli, um grupo de indivíduos planta.



Sendo seres com emoções reprimidas, os habitantes da Cidade Resistente viveram como uma sociedade em paz e estabilidade por um longo período. No entanto a tranquilidade foi perturbada quando, num distrito da cidade, aconteceu um assassinato, algo que não ocorria em 500 anos.


A partir daí a minissérie se torna um mistério noir de ficção científica, com Jo tentando solucionar esse caso, no processo testemunhando como esse incidente a revelação de vários problemas por trás da imagem utópica dessa cidade.

 

Escapismo vs realismo

Desde sua reinvenção em 1959, o Lanterna Verde foi um dos pilares da DC na Era de Prata. Suas histórias personificavam a imaginação e charme daquela época, focando em viagens pelo espaço, exploração de outros planetas, grandes batalhas cósmicas, e outros grandes conceitos sci-fy. 



Baseado nessa descrição é comum achar que o Lanterna Verde foi sempre um ponto de fuga da realidade para os leitores, com suas histórias cósmicas estando separadas dos tópicos complexos da realidade, certo?

Por mais que digam que a Era de Prata era boba e cheia de absurdos, quando analisa o contexto histórico em que foram criados, fica claro que foram baseado nas expectativas que o povo tinham com base nas descobertas e avanços científicos da Era Atômica, o que incluía a corrida espacial.



Um período histórico onde as histórias do Lanterna Verde iriam de representar os sonhos do público para refletir as críticas em relação aos problemas da sociedade seria nos anos 70, quando a revista passou por uma nova reinvenção pelas mãos de Dennis O’Neil e Neal Addams. Eles fizeram o Lanterna Verde forma dupla com o Arqueiro Verde e sair numa viagem pelos Estados Unidos, ajudando pessoas com problemas bem relacionáveis, como pobreza, racismo e vício em drogas.



Enquanto aquela fase de Dennis O’Neil e Neal Adams buscou destacar os problemas que humanos passam e o erro do Lanterna em ignorar seu próprio planeta, Setor Final realiza uma abordagem parecida porém inversa, mostrando os problemas de nossa sociedade como algo presente em qualquer lugar universo, seja a Terra ou outros mundos, e a futilidade em tentar escapar deles.





Ao contrário de Hal Jordan do Dennis O’Neil, que era um herói bem intencionado mas com uma visão ingênua dos problemas da sociedade, Jo Mullein é uma mulher que, embora tenha desejo de fazer a diferença no mundo, já passou por várias experiências difíceis, incluindo o divórcio de seus pais, racismo do senhorio da casa de sua família e corrupção em seu antigo trabalho como policial. 





Através desse background, N.K. Jemisin, de certa forma, torna Jo numa avatar dos leitores, sendo uma protagonista que passou por dificuldades identificáveis na nossa realidade e agora recebeu a chance de conhecer um “mundo novo”, de viagens no espaço, aliens, robôs, etc....

No entanto, o que parece ser uma fuga para os problemas que ela testemunhou é apenas uma estrada para reencontra-los. Quanto mais Jô vai aprofundando essa investigação e conhecendo a Cidade Resistente, ela vai se deparando com situações nada diferentes do que ela viu na Terra, incluindo violência policial em protestos, corrupção nos membros do conselho e casos de racismo e preconceito. Assim como nós leitores, Jo não consegue escapar dos problemas da realidade num mundo sci-fy. Eles apenas se manifestam de forma diferentes.

 


 


 

 

Expressão de emoções vs Repressão de emoções

De todos os assuntos trazidos nessa minissérie, o principal é sobre emoções e seu efeito numa sociedade.

Os habitantes da Cidade Resistente, apesar de serem de raças diferentes, são caracterizados sendo, em sua maioria, indivíduos com emoções reprimidas devido ao Emotion Exploit, um vírus que eles mesmo criaram como forma de conter suas emoções e evitar conflitos entre os eles. Embora esse sistema os impeça de decisões impulsivas e destrutivas, acaba sendo a custo de limitarem sua criatividade e capacidade de sentirem prazer e entretenimento.



Para contrapor o Emotion Exploit existe o Switchoff, uma droga que anula os efeitos do primeiro. Porém, isso cria instabilidade na coexistência entre os habitantes e deixa ainda mais divididos sobre a presença nas emoções.



Por meio de seu roteiro, Jemisin utiliza esse sub-trama envolvendo os usuários de Emotion Exploit e Switchoff para converte-la numa metáfora brilhante sobre a expressão da pessoa vs a os dogmas presente em grupos e instituições. Como indivíduos, todos temos personalidades e formas distintas de pensar e agir. Mas tem aqueles que agem de forma exigente consigo mesmo e outros, tentando faze-los replicar suas ações e pensamentos, sem considerar as qualidades próprias da pessoa,  tornando, em muitos casos, reprimidos, infelizes, e com inseguranças quanto as suas ações e inatividades.

Através do desenvolvimento do mistério e das interações de Jo com os habitantes da Cidade Resistente, Jemisin entrega uma mensagem profunda sobre as desvantagens e as vantagens presentes na liberação de emoções, destacando a importância do controle e expressão emocional, como ambos tem um papel não só na forma como pessoas não só apresentam suas ideias pessoais e criativas como também desenvolvem conexões com outros.




Considerações finais.

A princípio, quando ouvi falar de Setor Final, eu não tive um interesse na hq, pensando ser uma série desnecessária, que introduzia uma nova Lanterna Verde num elenco já lotado de Lanternas Verdes da Terra. Mas, após ter lido a série, consigo ver o motivo de sua popularidade.

Por causa do ritmo mais lento e o foco na investigação dos mistério e as interações dos personagens, Setor pode não ser algo que atraia muitos leitores, mas ele ainda é uma série bem relevante, que demonstra como quadrinhos são capazes de apresentar conceitos fantasiosos sci-fy e ainda assim abordar questões complexas e relacionáveis da realidade.

Por isso, ela funciona como um exemplo de que quadrinhos, e cultura pop em geral, não são uma forma de autores ignorarem o mundo, mas sim apresentarem sua visão dele  e seus problemas, através de um cenário criativo e distinto da realidade que vivemos.

Nota: 7/10





Então é isso! Qual a opinião de vocês quanto Setor Final? Sintam-se a vontade para colocar suas opiniões e ideias nos comentários abaixo