Quando se fala em Batman:
Legends of the Dark Knight, é sempre o mesmo bingo: alguém puxa “Gótico”,
“Veneno”, “Acossado”
e principalmente "Shaman". Tudo justo, são arcos bons pra
caramba. Mas esse título durou quase duzentas edições, foi e voltou no Brasil
em formatos diferentes, teve roteirista grande brincando, teve autor menor
tentando provar serviço. E, no meio dessa montanha de revista, ficou escondida
uma quantidade absurda de histórias que dizem muito sobre o Bruce sem precisar
se vender como “a versão definitiva do personagem”.
Eu sempre enxerguei Legends como um laboratório à parte. Não é exatamente cronologia principal, não é totalmente “universo alternativo”, é aquele canto da estante onde a DC deixava roteirista testar rumor de origem, vilão esquecido, época específica da carreira do Batman. Teve história publicada em mini “de luxo” pela Abril, algumas que ganharam capa dura pela Panini (com preços injustos, algumas vezes, principalmente pra quem não conseguiu pegar na banca) e até mesmo no mix do personagem em mensal elas saíram. Nem mesmo sei se todas foram publicadas no Brasil...
Essa lista é sobre esse tipo de
história. Não são “as melhores de todos os tempos”, não são as que vivem sendo
reencadernadas em papel cuchê com logo dourado. São as que eu li achando que ia
ser só mais um arco de meio de tabela e, anos depois, ainda lembro de cenas,
diálogos e sensações específicas. Histórias que grudaram não porque alguém fez
um vídeo de 40 minutos no YouTube contando, mas porque marcaram no personagem e
foram embora. E sem necessariamente serem lembradas na maioria dos top 10 sobre
as melhores HQs pra ser do morcego.
1) Blades (Legends of the Dark Knight
#32–34)
Blades é o tipo
de história que muita gente só esbarra porque alguém insiste para ler. Batman
divide a cena com um outro vigilante, o Cavaleiro, um espadachim mascarado que
combate o crime em Gotham usando capa colorida e pose de swashbuckler, enquanto
o morcego continua na sombra. O Cavaleiro é carismático, conquista a cidade,
conquista a polícia e conquista, principalmente, a atenção de um Bruce Wayne
que vê ali um eco do Zorro que o marcou na infância. Enquanto isso, Batman está
atolado num caso pesado envolvendo um assassino conhecido como Senhor Lime e
começa a pensar se não seria melhor deixar o show heroico nas mãos do outro.
O Xandão já destrinchou essa
história num texto inteiro, focando justamente na pergunta “por que o Batman não mata?” e em como Blades responde isso sem discurso
pronto, usando trama e consequência.
O Cavalier começa
como alguém com coração bom, mas ego grande e motivação meio torta, e vai se
perdendo aos poucos quando se apaixona por uma mulher atolada até o pescoço em
crime, chantagem e culpa. Para protegê-la, ele cruza linhas que o Batman não
cruza, e a queda dele vira um reflexo desconfortável. Blades é ótima
justamente por isso, por mostrar que o código do Batman não é frescura
moralista, é cerca de proteção para ele não virar só mais um monstro funcional
em Gotham.
2) Hothouse (Legends of the Dark Knight
#42–43)
Faith foi o primeiro arco que me veio a mente quando comecei esse post (deixei até a imagem principal dele). Mas, refletindo, vi que ele também ficou em muitas listas e acabei substituindo por esse arco curtinho com a Hera Venenosa que quase nunca aparece em lista nenhuma,
apesar de ser uma das leituras mais interessantes dela fora das histórias
“ambientalista vilã eco-terrorista básica”. Aqui, a trama é menos “planta
gigante engolindo Gotham” e mais um estudo de relacionamento tóxico e
manipulação emocional, com a ecologia funcionando como pano de fundo, não como
sermão.
O que pega em Hothouse é o
clima de cansaço que cerca o Batman. Ele não entra na história como o cara que
já sabe tudo e está dois passos à frente. Ele parece esgotado, se questionando
sobre o quanto ainda faz diferença prender e assistir os mesmos padrões se
repetirem. A Hera, por outro lado, é escrita como alguém que entende
perfeitamente onde cutucar, tanto no sistema quanto nas pessoas à volta, e a
relação entre os dois fica numa zona cinzenta desconfortável. Não chega a ser o
romance malsão que alguns autores forçam, mas também não é a vilã carimbada. É
aquela sensação de que, numa noite menos lúcida, ele poderia tranquilamente ter
ido junto com ela. Para quem só conhece a Hera de animação ou de participações
pontuais, Hothouse é uma boa lembrança de que ela funciona muito bem em
histórias pequenas, quase intimistas.
3) Mask (Legends of the Dark Knight
#39–40)
Mask virou
queridinha de vídeo de YouTube nos últimos anos, quase sempre vendida como “a
história em que o Batman descobre que é louco” ou “e se tudo fosse delírio do
Bruce”. É uma pena, porque essa leitura de thumbnail deixa a HQ parecer só mais
um “era tudo um sonho” esperto, quando na verdade o que ela faz é muito mais
incômodo: ela desamarra a imagem do Batman da ideia de realidade objetiva e
joga na nossa cara o quanto o mito depende de repetição e escolha.
Ao longo da história, Batman é
confrontado com a possibilidade de que toda a sua vida mascarada é uma
construção mental para fugir de traumas, e que o “Bruce saudável” estaria ali,
numa versão mais comum e funcional. Em vez de tratar isso como twist, Mask
usa a dúvida como ferramenta para desmontar certezas. Funciona porque o roteiro
não tenta dar resposta definitiva; ele deixa você preso entre dois mundos: o da
fantasia heroica que sempre aceitamos e o da possibilidade mais mundana em que
tudo não passa de coping mechanism. O motivo de ela ter viralizado em teoria de
fã é justamente esse: dá base para “explicar” o Batman como se fosse caso
clínico. Mas, se você lê sem essa ânsia de diagnóstico, vê outra coisa: uma HQ
sobre identidade, sobre o quanto alguém pode se redefinir a partir da narrativa
que escolhe seguir, e sobre o perigo de achar que existe uma versão “norma de
fábrica” pronta para ser recuperada.
4) Going Sane (Legends of the Dark Knight
#65–68)
Essa é a mais “famosa” da lista,
mas ainda assim menos citada que deveria. Going Sane, do DeMatteis, é o
experimento de colocar o Coringa num mundo em que ele realmente acredita que
matou o Batman. A partir do momento em que a obsessão dele perde o objeto, ele
entra numa espécie de colapso ao contrário: adota identidade civil, arruma emprego,
se envolve com alguém e tenta viver uma vida “normal”. É como se o cérebro, sem
o contraponto do morcego, resolvesse buscar um eixo diferente.
O legal é que Going Sane
não romantiza isso. O “cidadão comum” que surge dali não é exatamente saudável,
e o texto não força a barra do “no fundo ele só queria ser amado”. O que
aparece é o vazio: tirar o Batman da equação desmonta a identidade inteira do
sujeito. Quando o herói inevitavelmente reaparece, não tem grande virada
surpresa. Tem recaída. Tem um pêndulo entre o “eu poderia ter sido outra coisa”
e o “não sei existir sem esse conflito”. É uma HQ que dá pra ler tanto como
comentário sobre dependência entre herói e vilão quanto como estudo de vício.
Não é uma daquelas histórias que você recomenda pra quem nunca leu nada do
Batman, mas, para quem já está afundado nesse universo, é uma das que ficam na
cabeça.
5) The Demon Laughs – Legends of the Dark
Knight #142–145
Se você olha rápido o
encadernado, parece aquele típico “fanservice preguiçoso”: Coringa + Ra’s al
Ghul na mesma história, pronto, o marketing resolve. Lendo com calma, dá pra
ver que a proposta é outra. O arco parte de uma ideia simples: e se o Coringa resolvesse
sequestrar a própria arma do Ra’s? Não como parte de um plano genial, mas pela
pura vontade de transformar qualquer projeto de “equilíbrio global” em piada. O
que coloca o Batman no meio não é só “impedir o genocídio”, mas impedir que dois
tipos diferentes de arrogância decidam o destino de todo mundo por cima da
nossa cabeça.
O texto trabalha bem esse
contraste. O Ra’s é aquele eco-terrorista aristocrata, convicto de que a
humanidade precisa ser “podada” para o planeta sobreviver. Ele tem lógica,
planos de séculos, seguidores fanáticos. O Coringa, aqui, entra quase como
vírus ideológico: ele não quer dominar nada, só provar que todos os grandes
discursos são fáceis de corromper. O legal é que a HQ não tenta transformar
nenhum dos dois em anti-herói simpático. O Ra’s não vira “o vilão com um
ponto”, o Coringa não vira “o palhaço que secretamente admira o Batman”. Os
dois são perigosos por razões diferentes, e o Bruce passa o arco inteiro
basicamente apagando incêndio de ego alheio.
Pra mim, o que faz essa história
valer o lugar na lista é como ela usa o Batman como linha de corte moral,
e não como “o cara mais badass da sala”. Em vários momentos, ele é obrigado a
cooperar pontualmente com o Ra’s para neutralizar o Coringa, e isso nunca é
romantizado. Cada vez que ele aceita uma informação, um recurso, um atalho
oferecido pelo Demônio, você sente que ele está pisando em areia movediça. O
Coringa, por sua vez, não é tratado como “ex” tóxico do Batman, e sim como
consequência do próprio mundo do Ra’s: se você vive de grandes planos,
inevitavelmente vai surgir alguém que existe só pra ver esses planos pegando
fogo.
Visualmente, o arco abraça o lado
mais exagerado do personagem. Tem castelo, tecnologia absurda, cenário de filme
de aventura pulp, tropa do Ra’s saindo de todo canto, e no meio disso um
Coringa que parece deslocado de propósito, quase um erro de sistema invadindo
outro gênero. É o tipo de coisa que não caberia direito na mensal “séria”
tentando manter um pé no realismo, mas cai como uma luva em Legends
História Extra: Snow (Legends of the Dark Knight #192–196)
Snow é
vendida como uma releitura da origem do Sr. Frio, mas esqueça o Victor Fries
por um segundo. O verdadeiro vilão aqui é o Bruce Wayne como "gestor de
pessoas". No início da carreira, em um surto raro de bom senso, o
Batman tenta montar uma equipe de especialistas civis para ajudá-lo na
logística e na inteligência. É o embrião de uma Bat-família que não usa colante
nem codinome colorido; é a tentativa do Bruce de ser mais eficiente em vez de
ser apenas um mito.
O resultado é um desastre
absoluto, e não por causa apenas dos criminosos. A história disseca como a obsessão
por controle e a paranoia crônica do Batman congelam qualquer chance de
sucesso. Ele não sabe confiar. Ele não sabe delegar. Ele trata seres humanos
como engrenagens de um relógio que só ele pode dar corda. Diferente de Blades,
onde ele questiona se deve deixar o palco para outro, em Snow ele tenta
construir o próprio palco e acaba soterrando todo mundo embaixo dele.
A arte de J.H. Williams III faz
metade do trabalho, transformando Gotham em um pesadelo vitoriano e gélido.
Cada quadro parece uma vidraça prestes a estilhaçar. No final, o que sobra não
é uma vitória heroica, mas a constatação de que cada erro do Bruce custou uma
vida que ele não pode recuperar com um soco ou um gadget caro.
Agora eu quero saber o que vocês
colocariam nessa lista ou numa parte 2.
Que história de Legends of the
Dark Knight te pegou de jeito e hoje ninguém mais lembra? Vocês leram isso
na época que saiu ou foram atrás em scan?
Joguem nos comentários as suas
edições favoritas, discordem da ordem, indiquem outras fases “escondidas” do
Batman. Se esse tipo de mergulho render papo, a gente volta pra mais uma rodada.
