Quando o jogo acaba, mas a gente ainda fica lá...

 


Eu adiei o fim de Red Dead Redemption 2 por semanas. Eu sabia que o Arthur ia morrer, todo mundo sabia, mas eu não queria ver. Era uma época em que eu também estava tentando salvar algo que já estava morto — um relacionamento que tinha virado um duelo de silêncios, um faroeste emocional onde ninguém queria ser o primeiro a atirar. Então eu arrastava as missões, cavalgava sem destino, parava pra observar o pôr do sol nas colinas de New Hanover, como se aquilo pudesse me curar. E curava, um pouco. Cada vez que eu acampava e ouvia a fogueira crepitar, sentia que estava sendo compreendida de um jeito que ninguém fora daquela tela conseguia. Arthur era um homem em dívida com o próprio passado; eu era uma mulher tentando se convencer de que ainda dava pra recomeçar. Quando o jogo terminou, não foi só o personagem que morreu — foi um pedaço meu. Eu fiquei parada, olhando o nada, e tive a sensação de que o real era o mundo pixelado, e o resto era a simulação. A vida parecia mal otimizada, cheia de bugs sentimentais.

Acho que esse foi o ponto de virada: comecei a perceber que eu me conectava mais com histórias do que com pessoas. E não por arrogância ou isolamento, mas por cansaço. O mundo real tem um tipo de previsibilidade que me entedia. As pessoas repetem frases como quem repete diálogos de NPC, prometem o que não salvam, te chamam de “complicada” quando você só tá tentando ser honesta. Nos jogos, não há esse teatro — ou você vence, ou perde, mas o jogo não finge te entender. Quando joguei The Last of Us, pela primeira vez, eu senti algo parecido com fé. O Joel é o tipo de personagem que faz tudo errado pelas razões certas, e aquilo me parecia mais humano do que qualquer discurso sobre moralidade que eu já tinha ouvido. O segundo jogo me destruiu e me reconstruiu em partes. Eu entendi a Ellie — o ódio dela, a culpa, o impulso de buscar sentido na dor. E talvez eu tenha visto um reflexo meu ali: essa mania de querer entender demais o que seria mais fácil apenas sentir.

Com The Witcher 3 aconteceu o contrário. Eu não queria que acabasse, e por isso vivi tudo devagar, como se fosse uma relação que você sabe que vai terminar, mas tenta prolongar. Eu explorava as vilas, pescava, lia cada carta achada em ruínas, falava com desconhecidos como quem evita voltar pra casa. Geralt, no fundo, também é um tipo de exilado — alguém que vaga entre monstros e humanos sem pertencer a nenhum dos dois. Era assim que eu me sentia na época: deslocada demais pra ser comum, intensa demais pra ser leve. E quando conheci a Aloy em Horizon Zero Dawn, aquilo me deu uma estranha sensação de esperança. Eu me vi nela — essa mulher tentando decifrar o mundo com uma mistura de racionalidade e fúria. Ela me lembrava que sobreviver também é uma forma de beleza. Talvez por isso eu tenha me apaixonado por ela, e por tantas mulheres que pareciam impossíveis: porque elas existiam no exato espaço onde eu me sentia viva, mas a vida real nunca deixava existir.

Eu comecei a jogar na infância, quando videogame ainda era “coisa de menino”. Meu primo me apresentou Chrono Trigger num Super Nintendo emprestado, e eu lembro que aquilo me explodiu a cabeça. Era o primeiro mundo que eu podia atravessar sozinha, sem pedir permissão. Foi ali que aprendi que uma jornada podia ser mais que passatempo: podia ser refúgio. E talvez tenha sido esse o molde do que eu sou hoje — alguém que confunde solidão com liberdade e encontra conforto em personagens que nunca existiram. Os jogos me ensinaram a viver dentro do que não existe, e talvez por isso o mundo real me pareça sempre provisório, como se eu estivesse testando uma versão beta de mim mesma. Há noites em que eu ligo o console não pra me divertir, mas pra fugir do eco do real — das conversas que não avançam, dos amores que não salvam, das manhãs que começam todas iguais. E quando a tela escurece, eu fico lá, parada, com a mesma sensação de sempre: o jogo acabou, mas eu ainda estou presa dentro dele.

O que mais me assusta não é o vazio que vem depois de um fim — é o tempo que ele demora pra ir embora. Eu nunca fui boa em fechar capítulos. Demoro pra deletar conversas, deixo livros abertos na metade, não desinstalo jogos que já zerei. É como se eu tivesse medo de dar ponto final, de admitir que algo acabou. Acho que é porque cada vez que termino alguma coisa, percebo que vou ter que começar outra, e recomeçar é um ato que exige fé. E eu nem sempre tenho fé suficiente. Às vezes, passo dias olhando pra tela inicial de um jogo novo sem coragem de apertar “iniciar”. Não é preguiça — é medo de me envolver de novo, de criar outra história que vai me deixar vazia no final. Eu tenho um tipo de saudade preventiva: sinto falta do que ainda nem vivi porque já sei que vai doer quando acabar. E talvez seja por isso que, no fundo, eu prefira revisitar mundos antigos, mesmo sabendo que eles já não me causam o mesmo impacto. É o que escrevi uma vez: “há memórias que a gente preserva porque quer continuar acreditando que elas ainda são refúgio.”

Eu já passei períodos longos da vida evitando começar qualquer coisa nova — relacionamento, emprego, projeto, jogo. Ficava presa num ciclo de manutenção, tipo alguém cuidando de um jardim morto, só pra ter o que fazer com as mãos. E nessas épocas, os jogos sempre me resgatavam. Eu lembro de uma fase em que eu mal saía de casa e vivia à base de café, música e missões secundárias de Skyrim. Era o meu jeito de fingir controle: eu não conseguia mudar minha vida, mas podia decidir se ia ser ladina ou conjuradora, se enfrentava o dragão ou dormia na taverna. O jogo me dava a ilusão de escolha, e eu aceitava o contrato sem ler as letras miúdas. Às vezes, uma jornada virtual me dava mais sensação de propósito do que meses de convivência real com alguém. Isso é triste de admitir, mas é verdade: a previsibilidade das pessoas me cansa, e a imprevisibilidade das histórias me alimenta. Os personagens me decepcionam menos porque são honestos na ficção de ser o que são.

E é engraçado — eu sei que tem gente que lê meus textos e acha que eu seria uma boa companhia, alguém profunda, divertida, que fala bonito. Mas a verdade é que conviver comigo seria exaustivo. Eu falo pouco, e tenho uma mania irritante de transformar até o café da manhã em metáfora. Eu mesma não me aguento. Acho que por isso eu me refugio tanto nesses mundos: porque ali eu posso existir em pedaços sem precisar justificar nada. Ninguém cobra leveza de um jogador solitário. E no fundo é isso: o jogo é o único espaço onde a solidão é legitimada como experiência. Cada vez que o mundo real me exige sociabilidade, eu volto pra tela. E cada vez que alguém tenta se aproximar, eu me saboto, porque ainda tô presa no luto de finais antigos... É como se o controle que eu seguro na mão fosse o único que eu realmente tenho.

Às vezes eu me pergunto se a gente joga, lê ou assiste pra fugir do mundo ou pra lembrar como ele poderia ser. Se esse apego às narrativas é uma carência afetiva tão grande quanto se parece. Se quem se emociona demais com o que é fictício está se protegendo do real ou tentando reinventá-lo. Eu não tenho resposta — e talvez ninguém tenha. Me intriga pensar quantos de nós estão escondendo suas melhores versões dentro de universos que não existem. E você? Quando foi a última vez que uma história te deixou suspenso entre o fim e a saudade, te lembrando que, mesmo sem final feliz, ainda vale a pena?