Quando o Herói Vira Piada



A sensação que tenho é que o herói moderno deixou de lutar contra vilões para lutar contra o tédio da plateia — e invariavelmente, perde. O drama foi aposentado. A tragédia é só um acessório de roteiro, algo que precisa acontecer só para justificar o clímax e em seguida ser dissolvido em alguma piada de alívio cômico. Nenhum herói é permitido sentir por muito tempo. O público se incomoda? A indústria sente medo. E assim, a seriedade foi banida como se fosse uma forma de doença. Tudo que não é ironia parece carecer de alma, quando na verdade é o contrário: a ironia virou só um anestesiante.

Penso nisso toda vez que revejo o primeiro Homem de Ferro. Na época, o Tony Stark parecia o auge da sofisticação — um homem inteligente, ferido, autodepreciativo, mas ainda carismático o bastante para controlar a própria narrativa. Era o anti-herói ideal pra geração que estava aprendendo a rir do próprio fracasso antes que o mundo o fizesse. Só que o que parecia humano em 2008 virou fórmula na década seguinte. Todo herói que veio depois precisou ser engraçado, espirituoso e consciente do próprio roteiro (ou como as pessoas gostam de dizer: A Marvel tentou criar outro Tony Stark em cada franquia...). E quanto mais o cinema se tornava metalinguístico, mais o espectador se afastava da experiência emocional. O humor deixou de ser uma ferramenta pra se tornar o próprio sistema de defesa do gênero.



Tony Stark abriu a porta, Peter Quill arrancou as dobradiças e o Doutor Estranho selou o destino da seriedade nos blockbusters da Marvel. Todos seguem o mesmo arquétipo: o homem brilhante que mascara a fragilidade com ironia, o gênio que prefere brincar com a realidade a encarar as próprias consequências. E o público aprendeu a amar isso, porque rir é mais confortável do que sentir desconforto. O herói moderno precisa ser engraçado porque o público moderno tem vergonha de refletir nesse tipo de gênero.

Mas esse vício da autodepreciação vem de um medo mais profundo: o medo do ridículo. A cultura pop, como reflexo da nossa própria neurose social, tem pavor de parecer sincera demais. Um personagem que sente dor com convicção soa melodramático; um que reflete demais é acusado de ser “pretensioso”. E quando a vulnerabilidade se torna suspeita, o que resta é o sarcasmo. A indústria percebeu isso e capitalizou. Deadpool foi o ponto de inflexão. Não é um filme ruim — pelo contrário, é o ápice da autopercepção irônica. Mas foi o momento em que o cinismo se consolidou como modelo de segurança. Ele mostrou às produtoras que bastava rir de si mesmo pra escapar de qualquer crítica. Se o público apontasse incoerências, bastava responder com uma piscadela pra câmera ou uma piadinha sobre “roteirinho fraco”.

A partir dali, o herói virou um apresentador de stand-up armado. Roteiros inteiros passaram a ser construídos em torno da inteligência de uma piada, não da profundidade de um dilema. Até a tragédia precisou ser editada para não pesar demais. E o público, treinado por anos a evitar desconforto, começou a chamar de “lento” qualquer filme que pedisse mais de dois minutos de silêncio. Quando The Batman estreou, parte da plateia reclamou que o filme era “sombrio demais”, como se a escuridão fosse defeito e não essência do personagem. Mas o incômodo é revelador: o público quer a catarse sem a sujeira emocional que ela traz.



Eu mesma, confesso, já fui essa espectadora. Já senti tédio diante de um filme que não me entregava alívio rápido. Hoje entendo que não era tédio — era fuga. O silêncio me forçava a sentir o que eu não queria, e a ironia virou minha válvula de escape. O cinema aprendeu o mesmo truque. E quando tudo é feito pra não incomodar, o que sobra é ruído sem eco.

O caso do Homem-Aranha: Sem Volta Pra Casa é emblemático. Um filme inteiro movido pela nostalgia, mas que tem vergonha de ser nostálgico. Quando as versões antigas do herói aparecem, a emoção genuína é interrompida por piadas automáticas — como se o próprio roteiro pedisse desculpas por acreditar demais em algo (um heroísmo clássico, quem sabe?). O mesmo acontece com She-Hulk, que termina zombando do próprio final, como se isso fizesse uma piada de mal gosto disfarçada de série parecer inteligente. A metalinguagem, que poderia ser ferramenta de reflexão, virou ansiolítico. Ao rir de si, o cinema evita se comprometer. Ao quebrar a quarta parede, o herói quebra o vínculo emocional.

E o mais triste é que o público aplaude. O espectador pós-moderno não quer ser tocado, quer ser entretido. A dor virou conteúdo, e o drama, um risco financeiro. A Marvel e a DC, com seus calendários de lançamentos em série, transformaram o herói num funcionário do entretenimento, alguém que precisa entregar uma sensação imediata, não uma experiência duradoura. A narrativa trágica foi substituída pela narrativa de superação, que é a versão corporativa da dor: começa com trauma, termina com autoaceitação, e nada realmente muda.



A seriedade, nesse contexto, virou ato de resistência. É o que faz The Batman, Coringa e até o Logan se destacarem — todos filmes que lembram que o heroísmo nasce do conflito, não da autopromoção. Eles incomodam porque devolvem ao público o peso da empatia, algo que a cultura pop passou a tratar como fardo. O público quer identificação sem incômodo, emoção sem entrega, reflexão sem culpa.

No fundo, o herói que vira piada é o espelho de uma plateia que tem medo de sentir. Quando a seriedade é ridicularizada, o riso deixa de ser libertação e vira defesa. Rimos pra não nos expor, pra não admitir que ainda há feridas abertas. O herói moderno, portanto, não morreu — foi domesticado. Está ali, sorrindo, enquanto o mundo ao redor desaba, e o público agradece por ele não chorar.



A cultura pop não ficou mais leve; ficou covarde. Ela teme a profundidade porque sabe que, se descer demais, vai encontrar o vazio que nós mesmos deixamos quando trocamos emoção por entretenimento. Talvez o próximo herói que o cinema precise não seja o mais poderoso, nem o mais engraçado. Talvez ele só precise ser o primeiro a parar de fazer graça e olhar de volta pra nós, em silêncio, e que o público realmente volte a temer por ele...

E, claro, pode ser que eu esteja exagerando.

Pode ser que eu esteja só cansada demais dessa overdose de piscadinhas pra câmera e diálogos que parecem tweets ensaiados. Talvez eu seja mesmo a chata de plantão, aquela que insiste em levar “filmes de gibizinhos” a sério, enquanto o resto do mundo só quer desligar o cérebro por duas horas e se divertir. Mas será que é pedir demais querer sentir alguma coisa de verdade num filme que fala de heróis, perdas e humanidade? Será que o problema é o cinema… ou é a gente, que desaprendeu a se emocionar sem rir logo em seguida?