Ela Disse Adeus (ou : Tentou Partir sem DizĂȘ-lo)



SuicĂ­dio.
Sob o viĂ©s estritamente biolĂłgico, tenho cĂĄ pra mim que o suicida Ă© alguĂ©m que saiu com defeito de fĂĄbrica em seu chip de programação, em seu DNA. Todo e qualquer ser vivo - da menor bactĂ©ria Ă  mais gigantesca ĂĄrvore - sai da linha de montagem da MĂŁe Natureza com dois comandos pĂ©treos impressos em seu cĂłdigo genĂ©tico. Primeiro : sobreviver, a todo custo, agarrar-se com unhas, dentes, raĂ­zes etc Ă  vida. Segundo : reproduzir-se. O suicida, pois, deve ter algum tipo de bug nesse comando de inicialização bĂĄsico.

Sob o prisma do pensamento, "sĂł hĂĄ um problema filosĂłfico verdadeiramente sĂ©rio : o suicĂ­dio", como quer Albert Camus. Ou seja, o suicĂ­dio Ă© assunto para infinitas elocubraçÔes e punhetas mentais. A questĂŁo Ă© que essas consideraçÔes sĂŁo debatidas por quem nĂŁo tem o Ă­mpeto suicida e, portanto, com distanciamento do tema, sem nenhuma propriedade, o que as torna, ao meu ver, inĂșteis, papo de mesa de boteco, ocupação de ociosos.

NĂŁo obstante, elocubrador, punheteiro e, Ă s vezes, ocioso que sou, tambĂ©m jĂĄ pensei a respeito. Das minhas (in)conclusĂ”es sobre, a que mais me agrada Ă© a de que o autoextermĂ­nio Ă© uma maneira do suicida tomar o controle de sua vida. Uma, nĂŁo. A Ășnica maneira de se tomar o controle da vida. 

Crescemos ouvindo dizer de liberdade de escolhas, que podemos decidir sobre os rumos de nossa vida. Balela. Picaretagem. Conversa pra boi dormir de palestrante motivacional. No mĂĄximo, podemos optar entre duas ou mais possibilidades a que nos permitem, escolher um prato insatisfatĂłrio num cardĂĄpio restritĂ­ssimo. Acabamos por "escolher" nĂŁo pelo que gostarĂ­amos ou preferirĂ­amos, sim pelo que mais se aproxima dele, ou, como se diz por aĂ­, pelo "menos pior".

NĂŁo hĂĄ verdadeiro controle. NĂŁo hĂĄ certeza, tenha vocĂȘ planejado o que tenha sido para ela, dos rumos que a vida tomarĂĄ. A nĂŁo ser a de que ela chegarĂĄ ao fim. A de que estamos todos num corredor da morte cĂłsmico Ă  espera de sermos executados. SĂł nĂŁo sabemos o dia de nossa execução. O dia em que nos sentaremos Ă  cadeira elĂ©trica, ou em que o miocĂĄrdio infartarĂĄ, ou em que ocorrerĂĄ o escorregĂŁo idiota, num dia de sol, a cabeça no meio-fio. Por que, entĂŁo, jĂĄ que a vida cagou e andou para nossas pretensĂ”es e nossos esforços - ela, de fato, nĂŁo estĂĄ nem aĂ­ para ninguĂ©m -, esperarmos mansos e passivos pela data de nossas sentenças?

Determinam a hora em que vocĂȘ tem que trabalhar, a hora em que vocĂȘ tem que ter fome, a hora em que vocĂȘ tem que dormir, em que vocĂȘ tem que acordar, em que vocĂȘ tem que se apaixonar, casar-se, ter filhos, a hora em que vocĂȘ pode se aposentar.  Por que nĂŁo ter um Ășnico instante de controle sobre a vida, tomĂĄ-la pelo colarinho e acabar com ela. Por que nĂŁo, vocĂȘ mesmo, escolher a hora de sua morte?
Ter esse Ășltimo e Ășnico controle sobre ela?

Depressivo de nascença que sou, nunca pensei seriamente em me matar, mas cheguei a me preparar para isso, a me municiar. Quando tinha meus vinte e poucos anos de idade, obtive um pequeno frasco de vidro contendo dois cristais de cianeto de potĂĄssio (KCN) do tamanho de amendoins. Um exagero. Um apenas seria mais que o suficiente. Uma morte rĂĄpida, certa e, se nĂŁo indolor, dolorida por pouquĂ­ssimo tempo. Uma vez ingerido, o KCN reage com o ĂĄcido clorĂ­drico do estĂŽmago e libera ĂĄcido cianĂ­drico (HCN), que logo se dissocia e libera Ă­ons cianeto na circulação. Quando nossos glĂłbulos vermelhos, nossas hemĂĄcias, responsĂĄveis pelo transporte do gĂĄs oxigĂȘnio para todo nosso organismo detectam a presença dos Ă­ons cianeto, lançam-se imediata e vorazmente sobre eles, agarram-se a eles com grande vigor e sofreguidĂŁo, levando-os para as cĂ©lulas em lugar do oxigĂȘnio. Morte por asfixia quase que instantĂąnea. InfalĂ­vel. Sem tempo hĂĄbil para qualquer providĂȘncia ou antĂ­doto.

Nossas hemĂĄcias sĂŁo feito mulher de malandro. Na falta deles, amancebam-se com o bom moço oxigĂȘnio, mas elas querem mesmo Ă© vadiar. Basta que passe por suas vistas infĂ©is, por exemplo, o cafajeste do monĂłxido de carbono (CO), para elas o preferirem 200 vezes mais que ao gĂĄs oxigĂȘnio. Se, entĂŁo, o canalha do cianeto lhes aparece, assalta-lhes um tesĂŁo quase 500 vezes maior que aquele que tĂȘm pela sua alma gĂȘmea, o gĂĄs oxigĂȘnio.

Como eu disse, nunca tive a real intenção de me matar, mas guardei os cristais por anos e anos, muito bem escondidos, como uma espĂ©cie de carta na manga, um coringa, caso a coisa ficasse insuportĂĄvel. Cheguei a passar um deles na lĂ­ngua uma vez, comprovar-lhe o sabor de amĂȘndoas amargas. Botei a lĂ­ngua pra fora e risquei-a com o cristal. Deveras, amĂȘndoas amargas. Em seguida, sem recolhĂȘ-la Ă  boca, esfreguei-a e limpei-a com um guardanapo de papel. Sabia que nĂŁo corria risco algum. O pH praticamente neutro da saliva nunca levaria Ă  produção do gĂĄs cianĂ­drico.

Livrei-me dos cristais aos 42 anos. Ao me tornar pai, decidi que perdera o direito de sequer ter os meios para me matar. E quando meu filho for totalmente independente de mim, terei cerca de setenta anos. Matar-me depois de velho? NĂŁo compensa mais. A espera, Ă  essa altura da vida, serĂĄ breve.
Joguei os cristais em um rio que corta a cidade. Primeiro, abri o vidro e descartei seu conteĂșdo, depois lancei tambĂ©m o vidro vazio Ă s aguas barrentas e fĂ©tidas. NĂŁo quis correr o risco de jogar o vidro fechado e ele cair em inadvertidas mĂŁos. Como fiz, matei - se Ă© que matei -, no mĂĄximo, uma tilĂĄpia, um cĂĄgado.

Ontem, fico sabendo que uma velha e queridíssima amiga, cujas provocaçÔes levaram ao nascimento do A Marreta do Azarão, a madrinha do blog, portanto, tentara se matar. Tentara suicidar-se.
Como eu, ela sempre teve seus momentos de depressão, porém, nunca a imaginei chegando às vias de fato, ou tentando chegar. Fiquei sabendo pela boca da própria. Hå cerca de 15 anos que não nos vemos. Como disse Ritchie, a vida tem dessas coisas. A vida separa pessoas que se gostam muito mais que a morte.
O Ășnico contato mantido com ela Ă© atravĂ©s de comentĂĄrios que ela faz no Marreta e que, raramente, eu publico. ComentĂĄrios esporĂĄdicos, esparsos, rarefeitos; Ă s vezes, mais de ano se passa sem que ela apareça por aqui.

EntĂŁo, ontem, lĂĄ estava para ser moderado : "Tomei dois vidros de rivotril e mais uns comprimidos na quarta-feira passada. Mas a desgraça Ă© que sobrevivi. E agora vivo em cĂĄrcere privado".

NĂŁo fiquei chocado com a notĂ­cia. Talvez nem mesmo surpreso. Antes, curioso. 
VocĂȘ fez mesmo isso? Tinha real intenção de se matar? Recobrou sozinha a consciĂȘncia ou alguĂ©m lhe achou e lhe socorreu? Foi levada a um hospital? Por que cĂĄrcere privado? EstĂŁo a lhe vigiar agora?
Pergunto aqui Ă  espera de que vocĂȘ leia e, se quiser, responda.
NĂŁo hĂĄ nenhuma censura ou reprovação implĂ­citas nas minhas perguntas . Nada do gĂȘnero, ficou louca?, onde Ă© que tava com essa cabeça?, como teve coragem?, nĂŁo pensou nas pessoas que se importam com vocĂȘ?
Longe disso. Absolutamente nenhuma intenção de tomar para mim o controle de sua vida e demovĂȘ-la de uma nova tentativa, caso ainda pense nisso e conserve a intenção.

O que mais me assustou : vocĂȘ me contou de sua tentativa malfadada de suicĂ­dio - e ninguĂ©m mais poderia, pois tambĂ©m nĂŁo mantenho contato com ninguĂ©m de seus cĂ­rculos de convivĂȘncia. E se vocĂȘ houvesse logrado ĂȘxito? Quem me comunicaria de sua morte? Quando tempo eu levaria para saber dela? Se Ă© que eu ficaria sabendo. Quanto tempo eu passaria ainda a acreditar que vocĂȘ estava viva? Talvez, eu passasse o resto da minha vida a lhe crer viva. Talvez morresse achando que estava indo antes de vocĂȘ.

Como disse, nĂŁo quero demovĂȘ-la de nada. Quero, contudo, impor uma condição - que nĂŁo tenho direito nenhum, obviamente - caso pense numa nova tentativa, quando, talvez, a vigilĂąncia sobre vocĂȘ arrefecer.

Antes de tentar se matar de novo - vĂĄ lĂĄ que consiga numa prĂłxima vez -, primeiro descubra um modo de, depois de morta, avisar-me de que Ă© a mais nova moradora da Cidade dos PĂ©s Juntos, com informação do nome da rua, nĂșmero da casa e CEP do logradoura, para um cafĂ©, quando eu me mudar tambĂ©m para lĂĄ. E nĂŁo vale tentar me sacanear, nĂŁo vale deixar por escrito que outros me avisem. Tem que ser vocĂȘ.

Como? Sei lĂĄ. A aspirante a defunto Ă© vocĂȘ. Se vira. DĂȘ seus pulos. Ache um jeito. E sĂł se mate depois disso.


"A gente se vĂȘ por aĂ­"




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