Vanessa - Um conto Brasil



Meu nome é Henrique Roger, mas esta história não é sobre mim. Eu poderia contar para vocês todas as proezas que fiz na faculdade ou como sou eficiente no meu trabalho de pedagogo ou então lhes dizer como eu ajudei muitos jovens que estavam perdidos nas ruas de São Paulo, caídos em depressão e afundando em autodestruição e como a minha Fundação Vanessa tem ajudado crianças e adolescentes com dificuldades emocionais e sociais, nem mesmo como ela transcendeu preconceitos e limites, fazendo parte tanto do Brasil do Norte quanto do Brasil do Sul. Mas, não. Não é sobre isso que vou lhes falar, tampouco sobre os meus dias atuais. Na verdade, quando a história que vou narrar se passou, eu nem sonhava em ajudar as pessoas. Eu tinha apenas quinze anos e ainda estava no Ensino Médio, sem ter a menor noção do que fazer dali para frente. Mas, como eu disse, a história não é sobre mim.

Eu nunca vou me esquecer do dia em que conheci Vanessa. Na verdade, nós já éramos colegas antes desse dia, mas estar ciente da existência de outra pessoa não significa conhecê-la. Vanessa era uma garota que vivia querendo chamar a atenção. Sabia de tudo, gostava de abraçar, de beijar, de ser pegajosa e isso irritava muito as pessoas - afinal, carinho, inteligência e afeto são qualidades muito indesejáveis, não é? Certa vez, ela levou doces e salgados para toda a turma. Nesse dia, subitamente as pessoas passaram a respeitá-la e ouvi-la (um pouco) mais, revelando assim a imensa pureza e altruísmo de seus enormes corações. No que diz respeito a seu aspecto físico, não posso revelar muito, visto que eu não tenho olhos observadores o suficiente para me focar em coisas tão profundas e relevantes como a aparência das pessoas - perdoem-me minha superficialidade e incompetência neste respeito. Eu só consigo dizer que sua pele era dourada e seus cabelos eram escuros, com luzes em um tom claro, perto do loiro. Não sei dizer a cor de seus olhos ou a espessura de seus lábios. Tampouco se seu corpo era afinado ou mais cheio, se era reto ou repleto de curvas. Vou deixar que a sua imaginação faça o trabalho. Contudo, eu posso dizer que ela não era considerada uma pessoa bonita pela maioria. De fato, o seu apelido na escola era “Dragão”.

Era mês de maio e a turma já estava em plena atividade. Foi a primeira vez desde o sétimo ano em que não houve uma greve nos meses de março e abril para atrapalhar o ritmo dos estudos. Ainda estávamos no primeiro horário de aula – aprendendo química – quando a porta se abriu e Rita, a imponente coordenadora da escola apareceu com uma garota ao seu lado. Ambas entraram sem muita cerimônia e Rita cochichou com o nosso professor, Felipe. Ela foi embora e a garota continuou lá, parada na frente de todos. Foi aí que Felipe disse:

- Ok turma, quero que conheçam sua nova colega, ela veio de Santos e vai passar um tempo aqui com a gente. – virou-se então para a garota - que vestia um casaco xadrez laranja e verde, além de uma bota roxa - e pediu que ela se apresentasse, e ela o fez, com um sorriso tímido, porém sem demonstrar vergonha:

- Oi gente, eu sou Vanessa, mas meus amigos me chamam de Vava, Soneca, Florzinha, Nessa, Cachinhos... (enquanto ela ia alistando todos os seus apelidos, ia contando cada um nos dedos, ao passo que a turma, que havia mostrado interesse, começou a se desinteressar. Uns pegaram o celular para conversar, outros simplesmente se voltaram aos seus cadernos e outros começavam a sussurrar entre si sobre como essa garota era estranha. Admito que eu não fiz diferente. Eu comecei a mexer no anel que eu estava usando, algo que faço sempre em situações de tédio ou nervosismo). E ela prosseguiu dizendo:

- Eu tô muito feliz de estar aqui com vocês, que parecem ser muito legais. Eu gosto muito de fazer amigos. Quem sabe até eu faça até algum namorado – deu uma risada sem graça – né? Lá em Santos eu estudava na Escola Professor Rogério Couto e... – enquanto falava, o professor a interrompeu e agradeceu por sua apresentação, mas disse que era melhor se sentar. Numa ocasião normal, todos ririam disso ou, pelo menos, a “tirada”. Mas isso não aconteceu, visto que ninguém estava prestando atenção nela. Ela foi sorridente a uma carteira no meio da sala e começou a tentar se enturmar, ainda que sem sucesso (afinal, o visual dela não era muito convencional).

Contudo, não foi assim que conheci Vanessa. Esta foi apenas a maneira como ela me foi apresentada. Foi em uma aula de literatura, cinco meses depois, que tudo começou. 

— Hoje vamos estudar o gênero literário texto jornalístico — disse a nossa professora — Alguém pode me dizer qual é a primeira parte de um texto assim?

Vanessa respondeu sem demora e de maneira bem mecânica:

— Lide, professora, do inglês, 

. Geralmente fornece ao leitor informação básica sobre o conteúdo que ele verá na notícia, um resumo. A expressão inglesa lead tem o significado “primeiro”, “guia” ou “o que vem à frente”. 

— Isso, Vanessa. No lide, temos uma visão rápida da matéria apresentada pela notícia e ela deve responder algumas perguntas básicas sobre… — enquanto a professora falava para a turma, Vanessa se virou para trás e pela primeira vez desde que havia chegado, há três meses, falou diretamente comigo:

— 5W2H

— O que?

— O que, quem, quando, onde, por que, quanto e como. Essas são as perguntas que um lide deve responder. 

— No meu outro curso eu aprendi algo parecido - respondi naturalmente

— Esse conceito é muito legal, você consegue até… por que está me encarando desse jeito?

Ao olhar para trás, ela descobriu o porquê: a professora estava parada diante dela com um olhar de reprovação. Isso foi o suficiente para fazer com que Vanessa se sentisse envergonhada e passasse as próximas horas em taciturnidade. Com a aproximação do fim da aula dela, a professora disse:

- Agora eu quero que vocês façam duplas e criem uma breve notícia fictícia, contendo todos os aspectos de um texto jornalístico. Vocês têm dois dias e vale ponto.

Rapidamente, todos os alunos formaram as suas duplas. Não era muito difícil escolher as duplas, visto que toda a sala, de modo inconsciente, já estava organizada em grupos de afinidade: os emos atrás, os 

na parte da frente, os que eram inteligentes, mas ao mesmo tempo extrovertidos — onde eu me encaixava — ficavam logo atrás dos nerds e é claro, os esportistas ficavam um pouco adiante dos emos e as garotas riquinhas se sentavam próximas a porta. Vanessa não se encaixava em nenhum grupo. Meus companheiros intelectuais haviam faltado, então, por necessidade, me juntei a Vanessa neste trabalho, ainda que uma garota, cujo nome era Jéssica, houvesse piscado para mim, insinuando que queria a minha companhia. Por algum motivo, eu apenas pisquei de volta, sem incluí-la no trabalho.

Nós falamos, falamos, falamos e até chegamos a ter uma pequena discussão, visto que não chegávamos a um acordo sobre qual tema abordar. Ela queria dar uma notícia sobre um suicídio na Avenida Paulista. Eu achava esse tema delicado e forte demais para um simples trabalho. E, ademais, discordávamos quanto ao que colocar no lide. 

- A culpa da pessoa ter tirado a própria vida é das pessoas ao redor dela, que ferraram com tudo! - repetia ela, vez após vez e tentando argumentar, ao passo que eu dizia:

- A pessoa não pode culpar os outros pelos seus próprios problemas. Quem se suicida geralmente tem doença emocional. - dizia eu enquanto girava meu anel de um lado para o outro no meu dedo anelar. Meu anel era prateado com uma joia verde no meio. Lembrava uma aliança com uma pedra de jade. Contudo, eu mesmo pintei a parte prateada de preta. Vanessa, irritada, pegou a minha mão e disse:

- Pare de mexer nesse bendito anel, me irrita! 

- Tire a mão!

De qualquer forma, não chegávamos a um acordo. Para ser rigorosamente sincero, eu nem queria estar ali, trabalhando com Vanessa. Ela me parecia uma pessoa muito convicta de sua opinião e quase todas as opiniões dela eram diferentes das minhas. A discussão acabou quando ela cruzou os braços e ficou emburrada, concordando com tudo o que eu dizia apenas para dramatizar (Deus, como odeio esse tipo de atitude!). Como não estávamos nem perto de avançar na discussão, eu fiz o que qualquer HOMEM maduro, sensato e amoroso faria: disse que finalizaria o trabalho sozinho e que não precisava da ajuda dela. “Teria sido melhor fazê-lo com Jéssica”, pensei. Depois disso, tocou o sinal e fui embora para casa. 

No caminho para a casa, eu passava pela Rua da Praça 7 e lá eu vi que havia uma garota sentada e chorando profundamente. Para a minha surpresa, essa garota era Vanessa. Imediatamente, me sentei ao lado dela e coloquei minha mão sobre seu ombro e disse:

- Vanessa! O que você tá fazendo aqui?

Ela se virou para mim e disse: 

- Eu não tenho para onde ir!

Por um momento breve, mas que para mim durou muito tempo, eu parei e tentei discernir o que aquela declaração significava. Então, abraçando-a, mudei o meu tom de voz, para um mais calmo, e disse:

- Ei, me desculpa pelo jeito que eu falei com você, eu não sabia que te magoaria tanto assim.

- Não é isso, Henrique. Eu tô cansada, cansada de todo mundo me tratar assim!

- Mas as pessoas gostam muito de você, Vanessa! Você é possivelmente a garota mais inteligente da sala. - quando eu disse isso, ela saiu dos meus braços, virou-se para mim e sua tristeza transformou-se em raiva. Ela me fitou nos olhos e me disse:

- As pessoas gostam de mim? Sério isso? Que pessoas, Henrique? Me diz quem foi que quis fazer trabalho comigo hoje? Você tem noção de como é a sensação de saber que de uma turma com trinta pessoas, 

deseja a sua companhia? É por essas e outras que eu passo o intervalo sozinha, na salinha de manutenção.

- Eu quis! E você não deveria passar o intervalo lá, é esquisito.

- Você não quis, você só fez porque não tinha ninguém mais para fazer com você, porque seus amigos faltaram a aula hoje e porque você tá fazendo doce para a Jéssica!  E eu te pergunto: por que isso?!

Fiquei mudo. Eu não pude respondê-la, porque, no íntimo, eu sabia que ela tinha razão. Eu não queria fazer trabalho com ela.  Na verdade, eu procurava desculpas para não gostar dela, mas hoje vejo que eu simplesmente não admirava a sua companhia, sem nenhum motivo válido para isso, visto que o único motivo válido seria a hipótese de ela já ter me prejudicado seriamente em alguma situação e este não foi o caso. Com isso, eu baixei a cabeça e senti de repente um peso incomensurável em minha consciência. O que eu podia fazer? Então, depois de mexer no meu anel  - nervosismo - abracei-a novamente e disse:

- Ei, não fale assim. Como eu disse, todos te acham muito inteligente, inclusive eu. Sempre admirei essa qua-- antes que eu terminasse, ela me cortou e disse:

- Essa é a segunda vez que você me diz que sou inteligente e que as pessoas me acham inteligente. Quem liga? Quando as pessoas te evitam ou não te permitem cativá-las, pouco importa se elas te admiram ou não. De que adianta ser inteligente e ser sozinha? - eu percebi que essa era uma pergunta retórica e, por isso, não a respondi. Apenas refleti nas palavras dela e tudo o que pude fazer foi um pouco de carinho em seus cabelos. A fim de encerrar aquela situação desagradável, que realmente me estava comovendo, eu fiz algo que nunca pensei que faria:

- Então, você não está mais sozinha. Hoje, você vai ganhar um sorvete!

De início, ela relutou um pouco em aceitar o convite, mas eu consegui convencê-la. Embora isso não tenha melhorado, em plenitude, o seu astral. Mas pelo menos serviu de ajuda. Nós conversamos e vimos que tínhamos mais em comum do que eu havia imaginado. Finalmente começamos a nos entender! E foi tão bom passarmos esse tempo nos conhecendo. Aliás, parecia que éramos amigos de longa data. Naquele momento, acreditei que a minha missão social finalmente fora concluída e que eu havia resolvido o problema dela. Quão errado estava. Hoje vejo que os acontecimentos que se seguiram foram perfeitamente previsíveis, mas devido a minha inexperiência, não pude notar os claros sinais. Mas eu estava completamente despreparado para enfrentar o desafio com que subitamente me confrontei.

No dia seguinte, ela chegou na escola do mesmo jeito que todos os outro dias e ficou sentada, quieta em seu canto. Eu também cheguei e me sentei junto aos meus companheiros e não dei muita conversa para ela - lógico que não foi intencional, eu apenas estava entretido com os nossos assuntos. Ela se aproximou, devagar, e me perguntou quando nos veríamos de novo para continuarmos o trabalho - ou começarmos, visto que ainda não tínhamos nada. Eu a respondi de forma indiferente, com um aleatório “tanto faz”. A verdade é que, para mim os eventos da tarde anterior não haviam significado tanto quanto significaram para ela. Ela já me considerava seu amigo. E eu a considerava minha parceira de trabalho, que eu eventualmente ajudei. Na época, não entendia o impacto que um abraço e uma conversa podem ter em alguém com o emocional abalado. Ela disse “ok”, enquanto os meus companheiros começaram a rir de mim, perguntando se eu estava ficando com ela  e que Jéssica ficaria com ciúmes - coisas típicas de adolescentes. 

- É claro que não! A gente só tava fazendo um trabalho juntos.  Rezem por mim! - após dizer isso, todos riram. Eu não sabia, mas Vanessa havia escutado esse infeliz comentário, que talvez seja um dos comentários que mais me arrependa de ter feito em toda a minha vida.

Depois da aula, eu me encontrei com ela no pátio da escola, que era um pátio bem arborizado, com um ambiente agradável. Desta vez, ela estava com um comportamento diferente, estranho. Me tratava de maneira formal e com certo distanciamento. Eu entendi que ela não queria muito se aproximar de mim, e isso me chateou um pouco - embora eu não tenha percebido que, de fato, eu é quem a havia afastado de mim.

- Então - disse ela, - “Suicídio na Avenida Paulista”, essa pode ser a manchete.

- Perfeito. É bem sinistra e causa espanto. A mídia gosta de gerar essa sensação.

- Agora a gente precisa responder às perguntas: o que aconteceu, como aconteceu, por que aconteceu e quando aconteceu.

- Pode ter sido a noite, quando não havia ninguém na casa dela. 

- Ela poderia ser uma pessoa que se sentia cada vez mais sozinha, e se aproveitou de um momento onde estava literalmente só para mostrar as pessoas como se sentia por dentro.

Eu fiquei impressionado em como ela havia mudado de atitude, exercendo agora um papel de liderança e com muito mais confiança. Eu apenas achava a história dela um tanto quanto exacerbadamente triste. Então sugeri:

- No final do texto, podemos fazer uma mensagem mostrando que matar-se não é a solu-- ela nem me deixou terminar de falar e me cortou:

- Podemos publicar a carta dela!

- Que carta? 

- Quando as pessoas se matam, elas geralmente deixam uma carta, uma espécie de manifesto, onde explicam os seus sentimentos e o porquê de terem feito isso. Publicar essa carta com certeza chocaria o público e aumentaria as vendas - Vanessa e eu não nos apercebemos de que estávamos tratando uma redação escolar como se fosse um jornal de verdade e nos estávamos preocupando até mesmo em como deixar as vendas maiores.

- E quanto ao

?

- Eu ainda não sei, preciso de ideias.

- Dizem que a maneira mais eficiente e menos dolorosa de se morrer, é se atirando.

- Sério? Eu não sabia. E como ela subiria em algum edifício?

- Não é assim tão complexo. Ela poderia entrar normalmente em algum prédio comercial, como se fosse ao médico, no último andar.

- Sem que ninguém visse, ela iria ao acesso ao telhado.

- Deixaria sua carta lá

- E saltaria. Perfeito! No lide ficará escrito: “Jovem entra em prédio como se fosse fazer consulta médica e se atira do último andar”

Nossas frases se completavam. Parecia que nossos pensamentos estavam em perfeita sincronia. Mas era apenas uma ilusão. Pouco imaginava em quão pouca sintonia estávamos nós. Ela aproveitou o momento de conexão e me disse: 

— No conteúdo da carta poderia haver um manifesto, onde ela dizia como as pessoas falharam com ela e como isso a levou a se matar.

— Vanessa, a culpa de alguém se matar não é das pessoas ao redor dela. 

— Você vai começar de novo… — disse ela, fazendo um bico e franzindo a testa.

— É sério, poxa… é comprovado que quem chega ao ponto de tirar a própria vida geralmente possui algum distúrbio neurológico, como depressão.

— Quer parar de usar termos técnicos para me impressionar?

— Eu não tô tentando te impressionar! É que esse assunto é complicado, né… então é melhor falar difícil do que falar de forma que possa parecer ofensiva.

— Por que você é assim?

— Assim, como?

— Comigo você é todo certinho, fala bonito e é todo inteligente… mas com seus amigos você é todo 

, fala gírias e parece não estar nem aí para nada…

— Ué… eu preciso me adaptar a cada situação. Eles não estão prontos para lidarem com alguém com um vocabulário rico, com maior grau de maturidade e espontaneidade.

— "Espontaneidade", Henrique? Só eu falo desse jeito! — (nós dois rimos)

— Talvez as pessoas também falem. Talvez, no fundo, elas não seja assim tão diferentes de você, como você pensa. 

— Então por que elas me evitam?

— Porque você não deu o primeiro passo. Quem não é visto, não é notad--

E expressão dela mudou completamente. Ela mordeu os lábios, algo que era recorrente de quando ficava nervosa, e aproximou suas pálpebras uma da outra, a fim de focar seu olhar em mim. Eu também notei que sua perna começou a balançar e o seu tom de voz se elevou quase que imperceptivelmente. Ela prosseguiu dizendo:

— Henrique, não venha com essa de "quem não é visto, não é notado"! Tudo o que eu sempre fiz toda a minha vida foi tentar ser notada! Pelos meus pais, pelos meus irmãos, nas escolas que eu frequentei. Eu tenho quinze anos e nunca beijei ninguém, nenhum cara nunca quis nada comigo! Eu me pinto, apareço, me destaco e mesmo assim tudo o que eu consigo é ser ignorada! A Jéssica não faz nada disso e todo mundo gosta dela! Meu próprio pai me abandonou - e de novo, a garota irrompeu em prantos.

- Eu entendo… mas você não pode simplesmente desistir. - eu tirei meu anel e dei para que ela segurasse. Ela pegou, com certa curiosidade, o objeto cuja movimentação que eu fazia nele sempre a irritava. Ela nunca havia reparado direito nele, mas, pela primeira vez seus olhos cintilaram ao observar como que a pedra verde brilhava no meio da base negra do anel. Enquanto ela observava, eu disse:

- Da primeira vez que coloquei esse anel, prometi a mim mesmo que nunca desistiria. 

- Por que você pintou a base dele de preto? Ela era prateada antes…

- Porque, Vanessa, mesmo nos momentos mais escuros a esperança… aparece. A esperança é a luz que nos tira da escuridão. 

Os olhos dela novamente se encheram d’água, desta vez, de emoção e ela me deu um forte abraço, me agradecendo pelas palavras. Parece que esta pequena demonstração de afeto fez com que ela se esquecesse da minha atitude de falsidade há não muito tempo. Isso fez minha consciência pesar por um instante. O anel ainda estava em sua mão quando eu a toquei e fechei os dedos dela sobre o anel. Uma gotícula de lágrima caiu sobre a manga da blusa dela - de fato, ela sempre estava de manga comprida, tendo eu jamais a visto com uma blusa ou camisa de manga curta ou mesmo sem mangas. Mas estes são pequenos detalhes que você só nota depois que o desastre se consuma. Eu me levantei, sem jeito e disse:

- Fique com o anel para você. Preciso ir. Pode escrever a carta do seu jeito.

Eu não sabia, mas este ato esperançoso se tornou o estopim de uma crise cujo resultado jamais foi desfeito. No dia seguinte, entregamos o trabalho para a professora. O texto estava exatamente como o fizemos, mas notei que não havia a carta de suicídio publicada pela nossa personagem. De pé diante da mesa da professora, cochichei para Vanessa:

- Cadê a carta?

- Achei melhor não escrever uma carta.

- Simples assim?

- Você não entenderia.

Eu, de fato, não entendi o porquê. Na verdade, fiquei com raiva por ela haver alterado o trabalho sem me consultar e ainda por cima, de última hora. Ela também havia mudado um pouco o design que havíamos feito para o jornal, deixando-o menos cinza e mais floreado isso me irritou profundamente, afinal, esse é um motivo realmente válido e perfeitamente plausível para desferir golpes a uma pessoa carente e emocionalmente abalada. Eu senti vontade de fazer isso, mas decidi simplesmente perguntar, cochichando, é claro:

- Por que você mudou o design?

- As pessoas não gostam de temas sombrios ou gente que fala de coisas negativas, então tive que deixar o trabalho um pouco menos intenso. Mudei o texto e só mantive o título e o lide. Agora quer calar a boca e deixar a professora avaliar a tarefa?

- É claro que não! As pessoas se comovem com temas assim! E temos que falar a verdade! -fiquei estupefado. Nunca havia visto tamanha demonstração de autoconfiança vinda de de Vanessa. Ao mesmo tempo, isso fez com que eu achasse difícil de acreditar que ela era a garota pobre e indefesa que ela aparentava. A professora, que estava lendo o nosso texto, virou sua face em direção a nós dois e esboçou um sorriso. Ela puxou sua cadeira para trás, pôs-se de pé e disse:

- Meus parabéns, o texto de vocês ficou perfeito. As pessoas não gostam de temas sombrios ou gente que fala de coisas negativas, então vocês foram sensacionais por terem amenizado a intensidade da história. Nota dez!

Vanessa imediatamente virou-se para mim e, com um sorriso desajuizado, piscou seu olho direito, me deu o trabalho e me deu as costas, atirando seu cabelo comprido contra o meu rosto, ao passo que eu fazia um olhar de descrença por não conceber o que estava acontecendo. Assim Vanessa voltou para o seu lugar e eu para o meu, apenas para ouvir brincadeiras dos meus amigos, coisas juvenis, insinuando que ela e eu possuíssemos uma relação além da estudantil.

Jéssica era uma garota esbelta, bonita e divertida. Seu cabelo era preto, liso, contudo havia luzes nele, causando a impressão de que era loira. Quanto ao seu corpo, ele era a própria escultura de uma deusa grega, atendendo a todos os hodiernos padrões de beleza imagináveis. Na verdade, seus olhos eram tão brilhantes como a mais cintilante estrela que brilha no espaço. Embora alguns rapazes a considerassem um tanto quanto arrogante, era consenso que ela era simpática e amigável. Note, portanto, que eu disse que isso era um consenso 

, não opinião minha. As pessoas tendem a gostar e a acreditar que mulheres e homens bonitos são automaticamente bondosos e amigáveis. Embora eu não possa fazer uma descrição precisa da aparência de Vanessa, apenas de sua personalidade, eu me sinto perfeitamente capaz de descrever como era o aspecto de Jéssica, visto que isso era tudo o que se podia notar nela. Não havia uma personalidade marcante e suas possíveis qualidades não eram assim tão visíveis. De fato, esta é a maldição de pessoas abundantemente belas. A cada dia que passava, ficava mais evidente o gosto dela por mim. Ela se sentou ao meu lado, na mesma cadeira que eu e pediu para ver meu trabalho, para o prazer dos meus colegas, que agora tinham dois motivos para me zombar. Ela, curiosa para ver meu trabalho, simplesmente o agarrou e começou a ler. Mas ela virou a folha para o lado oposto ao texto e lá encontrou algo que me havia passado despercebido: uma inscrição com um coração, dizendo: “A esperança é a luz que nos tira da escuridão. Obrigada por me tirar da escuridão”. Jéssica imediatamente gritou para a turma:

- Ainnnn que bonitinho! A Vanessa gosta do Henrique, gente!

Em vista desta situação, todos começaram a rir dela e diziam coisas como: “É, Henrique, boa sorte!”, “Virou São Jorge para pegar dragão?” e claro, o comentário mais humano, razoável e amoroso de todos: “A Vanessa 

achando que é gente!”. Eu admito que fiquei muito envergonhado com o que Jéssica fizera. Não pela atitude dela em si, mas por insinuar que poderia haver algo entre Vanessa e eu. Isso soava tão absurdo, tão impossível. Vanessa era apenas alguém com quem fiz um trabalho, pensei eu, e nós temos sim uma amizade, mas minha mente nunca concebeu, nunca sequer cogitou, nunca nem passou por ela a ideia de que eu pudesse ser algo mais. 

No intervalo, chamei Jéssica na salinha de manutenção, que era bem apertada e lhe  contei tudo aquilo que eu pensara e falei que ela deveria se retratar. Ela me deu um malicioso sorriso, passando seu lábio inferior por entre os dentes. Ela disse, um tanto quanto ofegante:

- Sabe por que você nunca viu a Vanessa como uma namorada em potencial? Porque você está ocupado demais olhando para mim! - com isso ela fechou a porta da sala, me puxou pelas mãos e me beijou. Um beijo acalorado, voraz. Meu interior dizia para afastá-la, visto que não  nutria nenhum tipo de sentimento por ela e sabia que o contrário também era verdadeiro. Mas cada vez que eu sentia um beijo dela nos meus lábios, eu lutava para manter o meu disfarce de homem civilizado e sábio, meu teatro tornava-se difícil de se manter. Em vista disso, meu corpo não obedecia à minha mente e eu a abracei ainda mais forte. Este é, deveras, um dos meus maiores arrependimentos. Naquele exato momento, Vanessa abriu a porta e se deparou com nós dois, para o seu espanto e infelicidade. Jéssica fez uma cara de riso e disse, em um tom irônico:

- Constrangedor!

Vanessa não aguentou. Esse foi o ápice. Devemos sempre nos lembrar que para uma pessoa que foi quebrada e despedaçada pelos ardis da vida, as pequenas coisas são como inimigos monstruosos que podem obliterar os poucos pedaços que ainda faltavam para a completa destruição. Isso foi o que aconteceu com ela. Eu estava tão ocupado em salvar a minha reputação que nem notei que havia um hematoma em seu olho esquerdo. Enfim, Vanessa atirou o anel que eu lhe dei na direção do meu rosto e tentou fugir. 

Imediatamente, abandonei Jéssica, que seguia rindo da situação e fui atrás de Vanessa. Segurei-a pelo braço e perguntei:

- Ei, o que aconteceu?

- Nada, Henrique, nada! Me larga!

- Não, não largo! É verdade o que a Jéssica disse?

- Não, Henrique!

- Então, por que está assim?

- Porque essa situação me lembra que sou estranha, que nenhum garoto já gostou ou vai gostar de mim. Sua “esperança” é um grande lixo!

- Ei, não fale assim. Você é maravilhosa. Não seja tão insegura, é claro que tem e sempre terá alguém interessado em você. Qualquer homem te namoraria!

- Você namoraria?

Era impressionante a capacidade que Vanessa tinha de me deixar taciturno com apenas poucas palavras! Hoje eu vejo o grande erro ao pressupor que outro homem faria o que eu mesmo não estava disposto a fazer. Novamente, as reflexões que eu fiz mais cedo voltaram a minha mente: “Nós temos uma amizade, mas nunca sequer cogitei, nunca nem passou por minha cabeça a ideia de que eu pudesse ser algo mais do que um amigo. Por que? O que todas as outras garotas têm de tão especial que Vanessa não tinha? Infelizmente, até hoje me questiono tais coisas e admito que fui completamente injusto com ela. Diante do meu silêncio, ela elevou um pouco a sua voz e disse:

- Por que o silêncio, Henrique? Dizer para eu ter esperança e que encontrarei alguém foi cruel. Porque já encontrei, mas este alguém, pelo visto, joga suas responsabilidades para os outros! Quer saber, vou procurar outro lugar para passar o intervalo. - e se foi. 

No dia seguinte, ninguém sentiu ou notou a ausência dela na escola, somente eu. E tal situação se repetiu nos próximos dois dias. Preocupado, decidi investigar por mim mesmo o seu sumiço. Como eu não a encontrava nas redes sociais, busquei o endereço dela pessoalmente nos arquivos da secretaria - sem que ninguém me notasse. Ao encontrá-lo, fui imediatamente até lá e bati à porta, com uma barra de chocolates. Quem abriu a porta foi uma dona de baixa estatura, que estava com os olhos negros, uma olheira muito grande, como se chorasse por dias sem parar. Me senti assustado. Pensei em um bilhão de coisas que poderiam ter acontecido. Então sorri, estendi minha mão e disse, num tom otimista:

- Meu nome é Henrique Roger. A Vanessa está?

Como que se eu falasse algum nome proibido, o olhar triste da senhora se transformou num olhar de ódio. Ela disse:

- Vanessa não mora mais aqui. E se você quer algo com ela… ela tem outro cara.

- É… perdão? A senhora é a mãe dela?

- Eu era, até aquela miserável se engraçar para o meu marido

Eu arregalei meus olhos de tal maneira que nunca fizera antes. Eu me recusava a crer que Vanessa pudesse fazer algo assim. Perto de mim, havia uma vizinha, que me sinalizou com as mãos para eu não ouvir a senhora, que ela era louca. Crendo nela, agradeci a senhora e fui embora. A vizinha me chamou e disse:

- Você é o Henrique! Vanessa me disse que você apareceria. Antes de se mudar, ela deixou essa carta fechada a você. 

- Obrigado… o que houve com ela?

A garota me puxou mais para longe da outrora casa de Vanessa e me sussurrou:

- O pai de Vanessa abandonou a família quando ela tinha cinco. Seus irmãos também se foram. Isso se deu porque ela o havia visto com outra e, inocentemente, contou à sua mãe, que passou a culpá-la pelo abandono, durante muitos anos. Há cinco anos, ela passou a ter um padrasto. Mas infelizmente ele tem problemas com bebida.

-E?

- Daí que esse padrasto, enquanto alcoolizado, tentava agarrá-la quando estavam a sós, sempre sem sucesso, o que resultava em sérios acessos de ira e agressão. - por um momento meu mundo caiu. Agora tudo fazia sentido: os hematomas, a sensação de que ela não valia nada e de que não era amada por ninguém, sua carência e sensibilidade! Entnedi também porque, na Rua da Praça 7 ela havia dito que não havia para onde ir após a escola. A garota prosseguiu dizendo:

 - Mais adiante eu descobri que incidentes semelhantes a este ocorriam pelo menos duas vezes ao mês, nos últimos três anos. Evidentemente, sua mãe é possessiva no que diz respeito ao padrasto. Há três dias, ela o flagrou. Mas em vez de proteger a filha, ela, por pura dependência mental doentia, culpou Vanessa por tudo isso, e a expulsou de casa. Ela foi a escola, veio a minha casa pior do que antes e me deixou a carta que te entreguei. 

Eu já estava espantado com tudo aquilo. Meu coração estava acelerado, suei frio e fiquei trêmulo. Mas quando abri a carta e a li, eu literalmente caí ao chão, em desespero. A garota, que mais tarde descobri que se chama Ana, me disse:

- O que foi, levante-se!

- Eu, eu, eu… preciso ir a Avenida Paulista!

Eu peguei um táxi o mais rápido que pude, correndo para a referida avenida. O engarrafamento de São Paulo me irritou como nunca. Eu disse ao taxista:

- Ande! Mais rápido!

Como ele não podia andar mais rápido, paguei a corrida até ali e fui correndo. Enquanto eu corria, todos os momentos que passei com Vanessa me vieram à cabeça. O dia de sua primeira aparição na escola, onde ela se referiu como Soneca, nós dois na sorveteria, comendo até nos satisfazer-nos e rindo feito condenados. Eu me lembrei do sorriso que ela deu nessa ocasião, eu nunca a vi tão radiante, embora ela não estivesse em todo o seu estado de alegria. Depois eu imaginei um beijo que nunca aconteceu. Na verdade, havia acontecido. O beijo de Jéssica. Porém, nos meus pensamentos eles foram com Vanessa. Eu cheguei tarde, para o meu desespero. E este dia foi, sem dúvida, o mais angustiante de toda a minha vida. Ao ver, no chão, aquilo que um dia fora Vanessa, não pude senão me agachar em posição fetal e chorar amargamente.

No dia seguinte, havia a seguinte manchete no jornal: “Suicídio na Avenida Paulista”. No lide, estava estampado: “Jovem entra em prédio como se fosse fazer consulta médica e se atira do último andar”. Em casa, em profunda escuridão e laços sempiternos das profundezas do desespero, reli a carta que Vanessa havia mandado Ana me entregar, sim, as palavras que me marcaram para sempre. A carta dizia:


“Achei melhor não escrever uma carta.”





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