A Sustentável (porém, chata pra cacete) Sobriedade do Ser


 
Em criança, quando tentávamos resistir às suas administrações, ou reclamávamos do amargo do xarope para tosse (na nossa infância raiz não tinha xaropinho gosto de laranja, cereja, baunilha ou outras viadagens saborizadas) ou do antisséptico que, passado-nos nos ralados dos joelhos, ardia-nos até as nossas inocentes almas sem pecados, a mãe, não sem um quê de terno sadismo, enunciava-nos o axioma-mor da alopatia : remédio ruim é que cura, ou ainda, se tá ardendo é porque tá fazendo efeito. Era um combater de fogo com fogo. Para um mal, um mal que o sobrepujasse.

Mesmo a homeopatia, a prima afrescalhada, politicamente correta, autossustentável e "o amor venceu" da alopatia, tenta se passar de mais amiga, de mais cortês, mas tem o mesmo princípio como lema, do latim : similia similibus curanter - semelhante pelo semelhante se cura. E nos impinge lá umas gotinhas e umas bolinhas de açúcar que, admito, não tem nenhum gosto ruim. O mal nisso? É que não cura porra nenhuma.

Todo esse prolegômeno porque há cerca de dois meses, eu procurei uma psiquiatra e fui diagnosticado com um quadro profundo de tristeza, anedonia, ansiedade crônica e depressão com episódios de pré-pânico. Até aí, nada que eu não soubesse de longa data. O diagnóstico "surpreendeu-me" tanto quanto ao sujeito que dá uma bela duma marretada no dedão e recebe do médico a notícia de que está com uma fratura óssea no polegar. Mas os sintomas pioraram para além do normal e resolvi procurar uma psiquiatra para ela atestar, oficializar o que eu sempre soube.
 

 

E por dois motivos. Primeiro para conseguir as drogas paliativas para a minha condição, a qual também sempre soube sem cura, uns remedinhos que me deem (quase) alegria. Segundo e, não obstante, o principal : ganhar um tempo de afastamento do "serviço", um período longe da turba, longe do ambiente que agrava a ponto do insuportável a minha doença.
Darwinista que sou, sei que toda doença da qual padecemos, ou venhamos a padecer um dia, seja ela física ou mental (aliás, não sei por que é feita essa distinção; a mente, cuja sede é o cérebro, também não é um órgão físico?), vem de uma predisposição genética. Sou ansioso e depressivo desde que me lembro por gente. Mas sei também que o ambiente é capaz de acender o estopim para tais predisposições, que ele, muitas vezes, é o gatilho para acioná-las.

Poderei tomar antidepressivos pelo resto da vida (espero que não), que continuarei depressivo; assim como o alérgico a poeira pode tomar Celestamine até morrer, mas continuará alérgico ao pó. Porém, em ambiente livre de partículas em suspensão e ácaros, embora sua doença permaneça, seus sintomas não se manifestam.

É o meu caso. Descerei depressivo ao túmulo, e nenhum tarja preta mudará isso, mas longe da choldra ignóbil, da plebe ignara, da geração nascida e amamentada pelo ECA e por uma LDB paulofreirista esquerdista de merda, leniente e permissiva que só, verdadeiras cartilhas de criar delinquentes, meus sintomas se amenizam. E muito.
 

 
Receitou-me um antidepressivo tarja vermelha, a ser tomado pela manhã e à noitinha, e um ansiolítico tarja preta, a ser tomado à noite. E 30 dias e depois mais 15 de afastamento laborial - a terapêutica que se mostrou mais eficaz.

Mas, a seguir o inescapável paradigma da alopatia, um mal se cura com outro mal; um desconforto com outro desconforto. Nesse caso, os remédios, ambos comprimidos, não são amargos nem intragáveis. Nesse caso, no meu caso, podemos dizer que o tratamento para o desconforto da minha depressão trouxe um desconforto colateral  : nada de álcool. Abstinência total. Por um tempo (indeterminado), dizer adeus à sacrossanta cervejinha de (quase) todos os dias.

Mais uma vez, nenhuma surpresa. Sabia disso antes dela me falar. Preocupou-me se eu conseguiria manter o quarésmico jejum? Se a abstinência do álcool traria-me sofrimento maior que o da ansiedade aguda? Não. Em nenhum momento.

Gosto de bebidas alcoólicas. E muito. Mas apesar de consumi-las regularmente há umas duas décadas, sei-me não dependente do álcool, da substância etanol per si. Já tive que me abster algumas outras poucas vezes, por 15, 20 dias, e nenhuma síndrome de bebum me atacou.

A contraexemplo, por exemplo, a cafeína me cobra muito mais como substância que o álcool. Testei-me algumas vezes : posso muito bem passar um dia inteiro sem café, talvez, com muita sorte, quase dois. Porém, ao fim do segundo dia, acomete-me uma dor de cabeça que nada é capaz de mitigar. Dipirona, aspirina, ibuprofeno, paracetamol, morfina... nada. Basta, no entanto, um golinho de café para que ela suma imediatamente.
Tanto que estou há quase dois meses sem ingerir nada alcoólico e nenhum reflexo físico da abstinência me atingiu. Não tive tremores nas mãos nem vi elefantes cor-de-rosa voando pelo teto da sala - infelizmente, pois seria bem legal.




Paradoxalmente, embora a ausência de álcool em minhas veias nenhuma aflição orgânica me traga, sinto imensa falta da outrora cotidiana cerveja. Pelo hábito. Pela companhia que ela me fazia. Pelo auxílio nas tarefas e afazeres do dia a dia e nos raros momentos de ócio.

Eu ia lavar o banheiro, punha lá uma musiquinha e levava uma latinha (ou um latão) comigo. Enquanto eu limpava os azulejos, a pia, os espelhos, ela, a cerveja, ia esfregando o chão e desinfetando a privada.

Fim de semana : eu ia pra cozinha preparar o almoço ou uns tira-gostos, punha lá a musiquinha e enquanto eu lavava o arroz, colocava o feijão de molho, limpava a carne, ela, a cerveja, descascava o alho, picava a cebola e o cheiro verde, ajudava-me com as panelas, depois.

Faxina na casa : ela, a cerveja, é quem tirava o pó dos móveis e punha as cadeiras para cima para eu limpar o chão.
Madrugadas de sexta e sábado : a casa já a dormir, eu e a gata Cleonice no escuro da sacada a escutarmos canções antigas no toca-CD; ela, a cerveja, é quem fazia a seleção das músicas, quem era a disc-jóquei, quem me fazia arrepiar frente a uma letra mais pungente do Chico.

Era ela, a cerveja, que nessas horas, se estendia feito tapete vermelho para Calíope se me achegar e me soprar inspirações e poemas ao pé do ouvido com seu hálito de livros amarelados. Era ela, a cerveja, que durante a escrita de um texto, consultava pra mim o dicionário de sinônimos, as regras da nova ortografia, conferia pra mim alguma conjugação verbal numa gramática, algum uso da vírgula ou da crase.

A cerveja nunca me foi um amo, um senhor feudal, de quem eu fosse escravo ou vassalo. Sempre uma amiga íntima. Uma confidente. Uma amante autorizada pela esposa - querem coisa melhor?

Hoje, infelizmente, tornou-se uma daquelas velhas amigas cujos tropeços e atropelos da vida tornaram impeditivos nossos reencontros e convívio. Não é sofrido ficar sem cerveja, só é chato pra caralho. Não estou em crise de abstinência, mas de saudade.

Na minha próxima consulta com a psiquiatra, na semana que vem, vou ver se ela não troca meu tarja preta pelo tarja preta abaixo.

 
 



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