Pacificador - James Gunn reimagina personagem desconhecido da DC a seu estilo

 


A série de “super-herói” mais comentada da atualidade sem dúvida é Pacificador na HBO Max. Já a assisti e, no geral, foi uma série que me agradou, até mesmo porque não tinha grandes expectativas. Para entendê-la, é necessário ter visto O Esquadrão Suicida, pois é uma sequência direta. James Gunn também escreve e dirige a série.

Tenho de tirar o chapéu para ele. Há uns anos atrás, Gunn estava com a carreira arruinada por causa daqueles tweets ofensivos. Mas claro que um cara que consegue render dinheiro como ele iria conseguir reverter o cancelamento, o que é uma coisa rara. Gunn também é um left wing, e por isso acabaram pegando leve com ele.



O Pacificador é um personagem de quinta categoria da DC, que antes era da Charlton Comics. Sua criação remonta ao longínquo ano de 1966, por Joe Gill e Pat Boyette. Em sua versão original, Christopher Smith era um embaixador dos EUA que também adotava a identidade de seu alter ego, o herói Pacificador, que inclusive não fazia uso de armas letais. Ao contrário de Capitão Átomo, Besouro Azul e Questão, que são personagens que se adaptaram bem ao universo DC, o Pacificador sempre teve menor importância. No entanto, graças à visão de Gunn e ao carisma de John Cena, o Pacificador tornou-se protagonista de improvável sucesso. Ele foi a base para o Comediante da Watchman, que ironicamente é bem mais conhecido entre os fãs de quadrinhos que o próprio Pacificador. Eu mesmo só me lembro do personagem no DC Especial no 6 da Abril, publicado há mais de trinta anos atrás.



No enredo da série, depois de ter sobrevivido à missão do Esquadrão Suicida em Corto Maltese, o Pacificador é mais uma vez obrigado a trabalhar para o governo, em uma equipe que se reporta diretamente a Amanda Waller. John Cena é um canastrão, mas fica bem no papel, sendo um brucutu carismático. Os personagens da série são realmente bem desenvolvidos, apesar de não fugirem de clichês. Emilia Harcourt, por exemplo, interpretada por Jennifer Holland, é a típica agente durona e fodona, que já vimos em vários filmes, séries e HQs, a lá Kate Mahoney; Economos (Steve Agee) é o típico hacker nerd; Murn (Chukwudi Iwuji) é o característico líder de equipe; a única que talvez se destoe é mesmo a Adebayo (Danielle Brooks), filha de Amanda Waller. O Vigilante é que está bem diferente dos quadrinhos, parecendo um genérico do Deadpool. E não posso deixar de fora Eagy, a águia de estimação do Pacificador, feita em CG.

Apesar de ter gostado da série, a achei bem sintomática dos nossos tempos, pois vivemos tempos de muita “nutellagem”, de muito politicamente correto, e esses personagens mais violentos são trabalhados sob a forma de comédia escrachada, de galhofa, para não ficar tão pesado. Adrien Chase, o Vigilante, na série é um palhaço, e o personagem nos quadrinhos era bem sério, tendo até um arco dramático em que ele se suicida. O Pacificador das HQs é um maluco filho um comandante de campo de concentração nazista, que acha que tem uma missão de redimir o passado nazista de sua família, mas se fosse retratado de maneira mais sóbria na série, provavelmente enfrentaria protestos da turma do mi mi mi e do "direito dos manos". Basta ver que o Justiceiro da Marvel está na berlinda já há algum tempo. Claro que também há a razão de os personagens estarem sendo retratados de forma galhofa, porque no live action talvez ficassem ridículos se fossem mais sérios, mas há uma conjuntura atual para isso. Há também a questão subjacente da desconstrução da masculidade, principalmente desses heróis mais brucutus, coisa que já vem acontecendo há um bom tempo; é só lembrar que Os Mercenários é paródia de cinema brucutu. Hoje, os brucutus foram assimilados em filmes e séries de super-heróis, como é o caso do próprio John Cena, Jason Momoa, entre outros.

A bem da verdade, John Cena é um brucutu esforçado. Dá para notar que ele pelo menos faz algum curso de artes dramáticas, que é o mínimo para quem pretender ser ator, até mesmo do gênero de ação. O brucutu moderno não poder ser mais como nos anos 80, em que só precisava fazer cara de marrento. Se bem que o Vin Diesel só faz isso e é bem-sucedido.

E qual a grande ameaça da série? A principal é a presença dos “borboletas”, uma raça alienígena insectoide que está dominando a raça humana com o propósito de controlar a Terra. Os borboletas na realidade têm um discurso meio no estilo “os fins justificam os meios”. Para eles, ao controlarem os governos da Terra, estarão salvando a raça humana, que estava indo em uma direção autodestrutiva e negacionista. O discurso que a detetive de polícia Sophie Song, interpretada por Annie Chang, é uma referência escancarada a Donald Trump, coisa que esperaríamos que James Gunn aproveitasse para alfinetar.


O vilão humano da série Auggie Smith, o pai do Pacificador, cujo papel é realizado por Robert Patrick, o eterno T-1000 de Exterminador do Futuro 2, que não é nada mais nada menos que um nazista desgraçado, supremacista branco. Tornou-se comum dizer que o personagem era um vilão impossível de gostar, porque era muito odioso e é impossível simpatizar com um vilão nazista, o que na realidade não é bem assim. Existem vários vilões nazistas que são favoritos dos fãs, como Caveira Vermelha, Barão Zemo e Barão Von Strucker, vilões do Capitão América, Capitão Nazista, vilão do Capitão Marvel original (Shazam), ou Barão Blitzkrieg, vilão da Mulher-Maravilha. A diferença é que Auggie é um racista mais ordinário, no sentido de comum mesmo, mais próximo à realidade. Os outros vilões nazistas citados são maus em um nível grandioso, de grande ameaça. Auggie é mau no sentido mais mesquinho. Na maior parte da série, ele aparenta ser um velho redneck, que, apesar de ser um péssimo ser humano, ainda é o fornecedor dos capacetes que o Pacificador usa na série. Só no penúltimo episódio é que Auggie veste a armadura de Dragão Branco e se torna o Homem de Ferro supremacista branco, basicamente.

É importante destacar que Pacificador é intrinsecamente uma série galhofa, de paródia com o universo de super-heróis da DC. Só a abertura, com a dancinha do Pacificador, à base da música Do Ya Wanna Taste It da banda Wig Wam, já entrega isso. Na realidade, não há “super-heróis” na série, Pacificador e Vigilante são anti-heróis, e o Judô-Master é um antagonista, que foi reduzido a um anão cômico e marrento. No último episódio, é que a Liga da Justiça tem uma participação só para fazer fanservice, e os únicos atores sem dublês são Jason Momoa e Erza Miller, como Aquaman e Flash, respectivamente.

Apesar de ter como fundo questões sérias, como o drama familiar do Pacificador, uma vez que ele se culpa pela morte do irmão e ainda quer a aprovação do pai, a crítica à política e ao negacionismo, bem como a referência a grupos racistas, nada disso deixa a galhofa em segundo plano. Pacificador é basicamente uma série de comédia; tem sim sua cota de ação e drama, mas não é para ser levada a sério. E Gunn aproveita que agora tem menos freio para inserir elementos como violência, gore, mortes, escatologia, sexo, nudez, putaria e palavrões. Na verdade, quem assistiu a filmes como Super, sabe muito bem do que Gunn é capaz quando tem maior liberdade criativa. E, sim, ele faz tudo para chocar, obviamente, mas também creio que Gunn não deixe de ser um indivíduo um tanto doente em seu âmago, pois até para saber chocar é necessário certa mentalidade distorcida e patológica. Depois que vi alguns dos tweets antigos de Gunn, creio que dá para compará-lo até com Garth Ennis em termos de demência, ou quase.


E existe alguma relação com o DCEU? Na realidade, a única que há é que é preciso assistir a O Esquadrão Suicida. De resto, sinceramente, você nunca tiver assistido a nenhum filme do DCEU na vida, está suave, porque Pacificador é bem independente desse universo, o que a bem da verdade é até bom. O DCEU está moribundo; só há algumas ramificações dele que foram bem-sucedidas, como os filmes de Mulher-Maravilha e Aquaman.


Caso alguém se pergunte: e lacração? Também tem? Devo dizer que atualmente, para apreciar um filme, série ou HQ que não tenha lacração, não tem jeito, só assistindo ou lendo coisas de pelo menos uns dez anos atrás ou mais, ou então consumir animes e mangás. Particularmente, achei que Gunn exagerou no tom militante político no último episódio, mas ok. A personagem Adebayo tem praticamente um combo de características de inclusão ou diversidade, é mulher, gorda e lésbica, mas não fica levantando bandeira LGBT, ao contrário de outras personagens por aí. E como se personagens lésbicas fossem novidade; nos anos 80, já havia a capitã Maggie Sawyer da Unidade de Crimes Especiais das histórias do Superman, que era abertamente lésbica. A diferença é que antigamente havia poucos personagens declaradamente gays e eram coadjuvantes e mais pontuais; hoje em dia, em todo elenco de série e filme, ou em toda HQ, tem de ter pelo menos um personagem LGBT.

O próprio Pacificador é bissexual, segundo informaram na mídia, o que é estranho, pois na série só vi o personagem indo atrás de mulher. O pai dele é que menciona alguma coisa sobre ele ser bi em uma cena. Não que o Pacificador seja bi nos quadrinhos, mas nestes tempos isso não quer dizer nada. O que mais tem é personagem hetero que virou bi ou gay nos quadrinhos atualmente. E, que eu me lembre, o Pacificador nas HQs também não era fã de metal farofa nem era um cara que corria atrás de mulher, ao contrário do de John Cena. O personagem da série é muito diferente da versão das HQs. Aliás, o Pacificador da DC é muito diferente do da Charlton Comics. E não só ele, praticamente todos os personagens que eram da Charlton tiveram diferenças de caracterização quando foram inseridos no universo DC. O Besouro Azul era um personagem sério, por exemplo, mas na DC tornou-se um personagem galhofa na Liga da Justiça Internacional de Keith Giffen. O Questão de Steve Ditko era objetivista; o do Denny o’Neil na DC, zen-budista; o do desenho da Liga da Justiça Sem Limites, um paranoico. São três versões bem diferentes do personagem. Acho que, dos personagens da Charlton, o que menos mudou quando passou para a DC foi o Capitão Átomo.

A despeito de a série estar fazendo sucesso, não tenho visto muitas pessoas fora da bolha nerd comentarem sobre ela, pelo menos no Brasil. Não é uma série como Lúcifer, Round 6 e La Casa de Papel, que todo mundo assistiu. Está certo que a HBO Max tem bem menos assinantes que a Netflix no Brasil e que a maioria das pessoas não costuma comentar muito sobre as séries que assiste, só assiste mesmo. Mas não tenho sentido muita ressonância dessa série fora do meio fanboy. No entanto, por mais que a série seja boa, não é melhor que Família Soprano, Breaking Bad etc. O povo também exagera demais. E a série tem seus problemas também, mas consegue entreter bem, e isso é o mais importante. Dou à primeira temporada de Pacificador uma nota 8 de 10, pelo resultado geral.

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