O MITO DE JAN VOJIK - Capítulos 1 e 2

 


SOBRE A ORIGEM DESTE CONTO

Em minhas pesquisas na internet em busca de material para o meu acervo de boxe, me deparei com uma situação inusitada. Na Wikipédia em português, a página referente à biografia de Mike Tyson informa que antes de se tornar profissional, Mike deixou de ser treinado por Cus D’amato (seu tutor e mentor) e foi buscar a orientação de um treinador chamado Jan Vojik. Achei aquilo estranho, pois não me recordava disso. Mike foi treinado por Cus e sua equipe (Teddy Atlas e depois Kevin Rooney), nem em sua autobiografia Tyson não menciona nada a respeito. Quem seria esse tal de Jan Vojik?

O texto da Wikipédia fala o seguinte: “Aos treze anos foi descoberto pelo treinador Cus D'Amato que passou a ser o responsável pela sua carreira. No entanto, no ano seguinte, Mike Tyson passou a ser orientado por Jan Vojik, ele foi campeão mundial olímpico dos pesos médios aos 14 anos de idade.

Em 1981, com 15 anos, tornou-se campeão juvenil de boxe dos Estados Unidos da América para, no ano seguinte alcançar o título mundial do mesmo escalão etário. Em 1983 zangou-se com Atlas e voltou a trabalhar com Cus D'Amato e foi sob a orientação deste, que em 1985, deu-se a sua passagem para o boxe profissional.”

Fui pesquisar mais a respeito, e em nenhum site em inglês ou em qualquer outra língua fazia menção a esse personagem.  Encontrei outras páginas em português que falavam de Jan, mas eram cópias integrais do texto da Wikipédia. Percebi então que se tratava de uma “Fake News”. A propósito, a única coisa que achei sobre o nome Jan Vojik na internet foi que houve um atleta de vôlei com esse nome, já falecido, que jogou em Portugal.

Fiquei intrigado com aquilo. Quem faria isso e porquê? Mas ao mesmo tempo, comecei a imaginar que isso talvez poderia render uma boa história fictícia, envolvendo pessoas reais, o próprio Mike, seu mentor Cus e óbvio: o misterioso Jan Vojik. Assim comecei a escrever um pequeno conto, dando vida a Vojik, transformando-o em alguém que teria uma participação essencial na etapa final de treinamento de Mike, em sua preparação para estrear como profissional.

No conto Jan atua como se fosse uma “arma secreta” de Cus, já que nem as pessoas mais próximas a ele sabiam de sua existência, foi uma forma também de assim poder justificar porque esse nome não era conhecido no meio do boxe, além de criar aquele componente de mistério essencial para uma boa história.

Dessa forma, a narrativa é ambientada semanas antes da estreia de Mike como profissional, especificamente se passando logo após a sua derrota nas eliminatórias para os Jogos Olímpicos. Mike perdeu por pontos numa decisão bem polêmica para Henry Tillman. Arrasado com a derrota e a consequente destruição do sonho olímpico, Tyson se encontra bem desanimado, e temendo que ele possa desenvolver uma depressão, Cus acha por bem solicitar a ajuda de Jan para finalizar a educação pugilística do jovem Tyson.

Resolvi que seria melhor que Jan aparecesse mais tarde na vida de Mike, aos 18 anos e não aos 14 como cita a página da Wiki.

Te desejo uma ótima leitura!

 

CAPÍTULO 1

Catskill, Nova York. 1984.
A decisão dos jurados ainda ecoa em seus ouvidos. Se passaram poucas horas desde que ele sentiu aquela pontada no coração quando ouviu o nome do vencedor da luta: Henry Tillman. *(1)
Tillman era seu adversário. E aquela luta era uma eliminatória que definiria uma vaga para a equipe olímpica de boxe norte-americana.
Como amador, que iniciou sua carreira aos 15 anos, Mike Gerard Tyson havia experimentado pouquíssimas derrotas em sua promissora trajetória. Mas essa com certeza foi a mais doída, a mais amarga. Significava uma abrupta interrupção dos planos que ele e seu técnico e tutor Constantine (Cus) D'amato haviam traçado anos atrás.
Ele iria para as olimpíadas, conquistaria o sonhado ouro olímpico e na volta teria condições de assinar um vantajoso contrato publicitário para iniciar sua carreira profissional, como rezava a cartilha de todos os outros medalhistas olímpicos que o antecederam.
Mas o destino quis que fosse diferente. Agora, sem chão, Tyson se encarregava de guardar em seu armário a roupa que utilizou na luta contra Tillman, a camiseta azul e o calção decorado com a bandeira americana. Olhar para esse calção causava muito dor ao jovem Mike, já que essa peça de roupa remetia a tudo aquilo que as Olimpíadas proporcionavam: o sonho de representar os Estados Unidos da América. Sonho que foi vivenciado por lendas como: Floyd Patterson, Muhammad Ali, Joe Frazier e George Foreman. Escolhera aquela vestimenta como um bom presságio para que pudesse subir ao ringue carregado por toda essa energia que todos aqueles grandes pugilistas haviam sentido quando se preparam também para conquistar a tão almejada vaga olímpica. Entretanto, naquele momento em que dobrava o calção para guardá-lo o sentimento era exatamente o oposto. Por isso, resolveu logo se livrar da roupa escondendo-a no canto mais obscuro do seu armário, bem longe da sua vista. Esperava com isso, começar a exorcizar logo os demônios que atormentam todo o boxeador nos momentos que se seguem após uma derrota tão dolorosa.
Mas era óbvio que isso não aconteceria tão facilmente.
A cada 5 minutos Tyson relembrava não só o anúncio fatal do vencedor, como revivia todo aquele sentimento de frustração. A decepção estampada no rosto, e a vontade de sair o mais rápido possível daquele ringue, vontade que infelizmente não pode se concretizar, já que Tillman vendo o semblante destruído de Tyson, procurava consolá-lo, o abraçando e falando palavras de encorajamento para ele. O que o deixava ainda mais deprimido, pois para o boxeador, nada pode ser mais indigno do que receber o conforto do rival após uma derrota, pelo menos era isso que Mike acreditava, ou melhor era isso que seu tutor Cus D'amato incutiu em sua mente. Assim, a cada vez que esse filme passava em sua mente, ele ia ficando mais e mais insuportável, intolerável, a ponto de Mike desejar ir dormir e se possível acordar só depois das Olimpíadas.
Naquela noite, ele não quis conversar com ninguém, ficou trancado em seu quarto, mas não estava sozinho, seus demônios o fizeram companhia à noite toda. Até dormir lhe foi negado.

 

NOTAS:

1-            Na realidade Tyson teve duas oportunidades de conquistar uma vaga para os jogos olímpicos, ambas contra o mesmo adversário, Henry Tillman. Ele foi derrotado por pontos nas duas ocasiões, o que acabou gerando uma certa polêmica, já que nos dois confrontos ele foi mais agressivo e buscou o combate durante todo o tempo. 

 

 


CAPÍTULO 2


Os dias se passaram, e Tyson não dava mostras de melhora, já haviam se passando 9 dias desde a derrota para Tillman, e durante esse período ele não havia realizado nenhum exercício físico sequer, muito menos ido à academia. Antes disso, sua rotina de exercícios era muito rigorosa, começava às 4 da manhã, com a pausa obrigatória para a escola, sendo retomada de tarde e indo até a noite.
Agora Tyson só passava o dia com seus pombos ou trancado no quarto comendo.
A princípio Cus achou normal o desânimo do seu jovem pupilo. Achava que isso era até salutar, experimentar a dor da derrota, e daí poder extrair o máximo de lições possíveis que serviriam de amadurecimento na sua preparação para se tornar profissional. Cus contava que Tyson se entregaria a esse estado de espírito por uns 3 ou 4 dias, e que em seguida já estaria de volta à sua rotina de atleta. Quando viu que Mike não dava sinais de melhora, pelo contrário, a cada dia se tornava mais recluso, começou a se preocupar.
Primeiro pela questão da comida, já que Tyson tinha um distúrbio alimentar que o acompanhava durante toda sua adolescência. Quando tinha crises ele se entupia de doce e gordura, os inimigos de todo atleta de alto rendimento. Além disso, Tyson engordava com muita facilidade, e Cus sempre o vigiou com relação a isso. Bastava ele ver Tyson comendo sorvete, normalmente aos finais de semana, quando reduziam o ritmo dos treinos que Cus começava a infernizá-lo dizendo:
- Você está engordando. Olha pra você, já está ficando bundudo. Não vai conseguir nem se movimentar no ringue com esse peso.
Mas a principal preocupação de Cus era com o estado psicológico de Mike. O fato dele não saber lidar com a derrota, começou a acender um sinal amarelo em D'amato.
Ele já havia presenciado algo parecido no passado, e agora estava receoso que seu mais promissor pupilo sofresse com um mal semelhante. Cus temia que Tyson acabasse como Floyd Patterson.*(1)
Patterson foi pupilo de D'amato. E assim como Tyson, guardavam algumas semelhanças interessantes.
Ambos vieram do gueto. De famílias extremamente pobres. Desde cedo começaram a realizar pequenos roubos e entravam e saíam de instituições de reabilitação infantil como quem frequenta um clube. Passaram a maior parte da infância e da puberdade ouvindo das pessoas ao redor que por mais que se esforçassem, nunca conseguiriam nada digno nesse mundo. Provavelmente Cus foi a primeira pessoa em suas vidas a lhes proferir palavras sinceras de encorajamento e esperança.
Sob a tutela de D'amato, Patterson teve uma excelente carreira no amadorismo. Representou o país nas Olimpíadas e obteve a glória da medalha de ouro.
Como profissional se tornou o primeiro medalhista de ouro a se tornar campeão dos pesados. E o mais jovem campeão da história.
Tudo parecia ir bem na carreira de Patterson, até que em sua defesa de cinturão, contra o sueco Ingemar Johansson, ele sofreu uma humilhante derrota, sendo derrubado  7 vezes até o árbitro decidir encerrar o combate, ainda que Floyd tenha se levantado todas as vezes.
Foi ali que as coisas saíram do controle.
Floyd lidou com a derrota da pior maneira possível.
Ficou depressivo, não saia de casa. Passava os dias isolado em seu quarto, no escuro. Falava com a esposa o mínimo possível. Nos seus devaneios, passava horas imaginando que todos, família, amigos e imprensa estavam o ridicularizando.
Foi com muito custo que D'amato conseguiu convencer Floyd a retornar aos treinos, e um ano depois, numa exibição de gala, Patterson devolveu a derrota com um belíssimo nocaute, com seu famoso soco apelidado de "Gazelle Punch", um golpe em que Floyd se agachava rapidamente e usava o impulso das pernas para desferir um potente cruzado, que quando acertava o oponente era letal, mas que sempre deixava Cus em desespero, já que era um golpe de alto risco, pois quando não acertava, Patterson ficava numa posição altamente desfavorável, uma vez que ficava totalmente desprotegido.
Mas para o alívio de Cus, naquela noite, o golpe foi extremamente eficiente.

Por um momento D'amato pensou que Floyd havia sobrepujado esse obstáculo. Ledo engano. Anos depois, ao enfrentar Sonny Liston, um dos boxeadores mais temidos de toda a história, Patterson já prevendo que uma nova derrota seria algo tão devastador para ele, se preparou com um plano de fuga para não ter que encarar ninguém no caso de sair do ringue como perdedor, havia providenciado um chapéu, óculos escuros e uma barba postiça para deixar o ginásio sem ser reconhecido.
É óbvio que quando alguém se prepara com tanto zelo para a derrota, o mais provável é que isso venha a se concretizar. Floyd foi nocauteado por Liston em pouco mais de 2 minutos de luta. E uma nova onda de depressão tomou conta dele.
Mas há de reconhecer que Floyd tem seus méritos. No ano seguinte, Liston concordou em ceder uma revanche. Floyd treinou bastante. Mas também se preparou para a derrota com o mesmo esmero. Nova derrota, também no primeiro round. E dessa vez Floyd acabou fugindo para a Europa, sem se dar ao trabalho de avisar à família e a equipe. Chegando lá, se hospedou com um nome falso e saía nas ruas disfarçado. 

Testemunhar todas essas experiências e agora ver Mike agindo dessa forma começou a perturbar o coração já cansado daquele velho treinador. Esse era um filme que ele não gostaria de reprisar.

Cus então resolveu agir. Tinha um coringa na manga, e achou que aquele seria o momento certo para agir.

Pegou seu surrado caderninho de telefones, buscou a letra J e começou a discar o número ali registrado. Depois te um tempo esperando, uma voz masculina atendeu do outro lado:

- Olá, sou eu Cus. Como vai Jan? Então, parece que chegou o momento que tanto esperamos.
      

 

 NOTAS:

 

1-    Floyd Patterson: boxeador que competiu de 1952 a 1972 e reinou                                                           como campeão mundial dos pesos pe-sados entre 1956 e 1962. Aos 21 anos, tornou-se o boxeador mais jovem da história a ganhar o título (recorde que seria quebrado justamente por Mike Tyson), e também foi o primeiro peso pesado a recuperar o título depois de perdê-lo. Como amador, ele ganhou uma medalha de ouro na divisão dos médios nos Jogos Olímpicos de 1952. Em 1956 e 1960, Patterson foi eleito Lutador do Ano pela revista The Ring e pela Boxing Writers Association of America. Ele foi introduzido no Hall da Fama do Boxe Internacional em 1991. Em seu livro “o rei do mundo”, David Remnick fala sobre a maneira como Patterson lidava com a derrota, principalmente a vergonha que ele sentia quando saia do ringue vencido, chegando ao ponto de se preparar com um kit de disfarce para deixar o local da luta sem ser reconhecido.


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