É POSSÍVEL ESTUDAR O MEIO-JOGO?



[Texto da tag “Escritor Convidado”, escrito pelo MN Gérson Peres, o texto é um dos vários que chegam dele semanalmente no e-mail, que podem ser assinados gratuitamente em seu site https://lojacxol.com.br/]

É dúvida recorrente no meio enxadrístico se é possível ou não estudar o meio-jogo? 

Essa questão é levantada em função do gigantesco número de possibilidades que encontramos ao nos deparar com as posições logo depois da abertura.

Afinal, dá para estudar meio-jogo? Se sim, como fazemos isso?!


Numa partida entre jogadores fortes, o vitorioso no embate comumente tem que vencer três vezes seu rival:

⬛ Na abertura, adquirindo uma pequena vantagem;

⬛ No meio-jogo, ampliando esta vantagem conquistada na fase anterior;

⬛ E no final, com a conversão destas vantagens acumuladas nas duas fases anteriores.

O xadrez exige boa coordenação entre suas fases, semelhante ao revezamento no atletismo, onde o primeiro atleta passa o bastão redondinho para o companheiro seguinte da equipe (de preferência com um bom tempo conquistado na volta anterior) e assim sucessivamente até o último colega do grupo pisar na linha de chegada. É exigida muita preparação individual, mas sobretudo entrosamento para o conjunto funcionar e obter a sonhada vitória.

Passada então a fase de liberar as peças, ou seja, a abertura, entramos no MEIO-JOGO. E, tudo precisa estar sincronizado, onde herdamos o que fizemos na abertura e trabalharemos agora o meio-jogo com vistas a chegar em boas condições no final, se possível com alguma vantagem palpável.

Vamos pontuar alguns tópicos importantes, para termos os elementos e assim poder responder à delicada questão proposta no título deste artigo com embasamento:

POSSIBILIDADES QUASE INIFINITAS:



A versão de 1997 do supercomputador Deep Blue, da IBM, calculava 200 milhões de lances por segundo. Em seu confronto com o ex-campeão mundial russo Garry Kasparov, onde cada partida durava horas, imagine quantos bilhões ou mesmo trilhões de possibilidades no meio-jogo a máquina fez ao analisar alguns minutos uma dada posição? Mesmo assim, o computador não conseguia encontrar o lance vencedor baseado nesta capacidade gigantesca de calcular.

Isso porque no xadrez não há um elemento apenas - ilustrado aqui pela força bruta do cálculo - para se ganhar as partidas. E é aí que nós humanos ainda nos destacamos das máquinas, ou seja, pelo processo de pensamento seletivo, em que ao invés de termos de calcular tudo nós conceituamos previamente e calculamos só em cima do que é relevante.

FALTA DE MATERIAL EM PROFUSÃO:



Diferentemente de outros pilares do xadrez, o meio-jogo não tem tanto conteúdo específico em livros, programas, sites ou vídeos. Tente lembrar rapidamente aí de um bom livro de meio-jogo? Observe que você terá dificuldade para se lembrar. Há, sim, material sobre o tema, mas em pouca quantidade comparativamente. Isso porque o estudo do meio-jogo habitual é feito por "tabela", onde o enxadrista estuda a tática do meio-jogo, a estratégia do meio-jogo, o cálculo do meio-jogo...

Tática, estratégia e cálculo também são levados em conta na abertura e no final, porém é no meio-jogo que eles são mais intensos pelo confronto acirrado das forças. Afinal, já preparamos cavalaria, infantaria, artilharia... agora é hora de fazer uso deste arsenal que está pronto para o combate!

FASE MAIS LONGA DA PARTIDA:


Se a abertura termina, a grosso modo, entre os lances 10 e 15 (a depender a abertura/defesa escolhida, se clássica ou hipermoderna), e o final algumas partidas sequer chegam (estatisticamente fala-se em cerca de 40% delas apenas que vão a esta fase), conclui-se que é no meio-jogo que por mais tempo lutamos com nossos adversários. 

Bom, tendo então exposto a problemática do meio-jogo, vamos agora para a "solucionática"!

Para o correto estudo do meio-jogo devemos focar em quatro fatores:

1. BOM RELACIONAMENTO COM A ABERTURA:


Uma abertura bem estudada leva em consideração a colocação das peças na estrutura de peões escolhida, temas táticos típicos, manobras estratégicas recorrentes e a conexão com o meio-jogo. Isto se faz, em grande parte, estudando partidas de modelo conduzidas por jogadores especialistas na abertura ou defesa que optarmos para integrar o nosso repertório.

Um estudo desta forma já entrega as peças redondinhas no meio-jogo e sabemos de antemão os planos para elas nesta fase. Tente observar que tipo de posições suas aberturas o têm levado, assim poderá se aprofundar diretamente nos temas mais comuns, ganhando tempo de estudo e conseguindo assim resultados práticos mais rapidamente.

2. PERSPECTIVA DO FINAL:


O meio-jogo tem um facilitador curioso: o final!
Isso mesmo. Ao estudarmos livros como Lecciones Elementales de Ajedrez e Fundamentos del Ajedrez, ambos do Capablanca, que por sinal era exímio finalista, ele mostra em seus livros com absoluta clareza a leitura adequada do meio-jogo, onde devemos manter no tabuleiro as peças que geram desequilíbrio a nosso favor (bispo melhor que cavalo, bispo bom x bispo mau, estrutura superior de peões, etc.), enfim, é um raio x que fazemos no meio-jogo que já projeta um final superior.

E, para isto, é necessário que conheçamos os princípios que regem a última fase da partida - os "Finais Teóricos"! Assim, nas posições do meio-jogo você terá mais facilidade para tomar a decisão se deve ou não passar ao final.

3. PERSONALIDADE DO JOGADOR:


O extra-tabuleiro é um fator extremamente relevante para o sucesso numa partida, num torneio ou mesmo na carreira de um jogador. A personalidade do jogador, as suas características pessoais, portanto, influenciam sobremaneira nesta fase da partida.

Ao ter suas peças em jogo um enxadrista mais empreendedor, mais aguerrido, já busca a iniciativa, aumentando a pressão sobre o adversário. Pode se aventurar num ataque na ala da dama, numa incursão pelo centro ou mesmo em uma investida direta sobre o monarca inimigo, que na maioria das vezes se protege através do roque pequeno, aquele feito na ala do rei.  Características estas ligadas ao xadrez tático-combinatório.

Já um jogador de temperamento mais calmo, mais elaborado, organizará suas forças de maneira cadenciada, lutando para assegurar uma estrutura salutar de peões, dominar casas-chaves, lutar pelo domínio de uma coluna... Enfim, características do xadrez posicional, onde o jogador tem uma concepção estratégica da luta nas 64 casas, buscando pequenas vantagens e através da soma delas derrubar a posição contrária no momento exato.

Há também uma terceira via de personalidade enxadrística, essa mais rara e muito eficiente: o jogador universal. Este tem a habilidade de jogar tudo, parece um camaleão.

Os traços então psicológicos do jogador têm impacto direto nas ações dele pelo tabuleiro como retratam os livros de psicologia aplicada ao xadrez dos autores Lapertosa, Fine e Krogius.

O meio-jogo, sendo a fase mais densa da partida, é onde essa forma de agir do jogador mais se sobressai.

4. ELEMENTOS QUE GOVERNAM AS POSIÇÕES:


Wilhelm Steinitz, primeiro campeão mundial oficial e pai da Escola Moderna, preconizava que toda posição se caracteriza por certos indícios. São estes "indícios" que nos guiam. Primeiro analisamos, onde o tabuleiro passa preliminarmente por um filtro de identificação dos temas, e só então é que recorremos ao cálculo para concretizar o que visualizamos no abstrato, no mundo das ideias.

Sendo o meio-jogo um "casamento" da tática e da estratégia, em razão de ser o ambiente em que estes dois pilares são mais fortes, que se chocam e se complementam o tempo todo, é possível elaborar uma lista de elementos recorrentes que governam as posições e focarmos nestes elementos no momento de analisar o melhor caminho. 

Julgar uma posição corretamente e reconhecer suas peculiaridades é um pré-requisito essencial. Devemos, portanto, indagar quais os fatores que determinam o caráter de uma posição, e qual o plano a ser conduzido.

A questão é ampla e carece de muito estudo. No entanto, colocaremos alguns temas a serem pesados durante o meio-jogo:

► Maioria de peões numa das alas;

► Peão central isolado (é comum ser o peão de “d” o isolado, o famoso PDI);

► Par de bispos x bispo e cavalo ou dois cavalos;

► Cadeia de peões;

► Bispo x cavalo;

► Bispo bom x bispo mau;

► Duas torres x dama;

► Centralização da dama;

► Troca das damas;

► Rei ativo no meio-jogo;

► Sacrifício posicional de qualidade;

► Casas críticas;

► Casas conjugadas;

► Tipos de centro: fixo, fechado, aberto e indefinido.

Além dos quatro fatores abordados acima que impactam diretamente o meio-jogo, deve-se naturalmente jogar muitas partidas para apurar a técnica nesta fase da partida, ajudando também nosso jogo a fluir melhor.

Finalmente, concluindo sobre se podemos ou não estudar o meio-jogo: Yes, we can!



FONTES DE PESQUISA:

- Lições Sobre Meio-jogo: Valtercides Freitas

- Psicologia e Xadrez: Julio Lapertosa

- La Psicologia en Ajedrez: Nikolai Krogius

- Psicologia del Jugador de Ajedrez: Reuben Fine

- Lecciones Elementales de Ajedrez: José Raul Capablanca

- Fundamentos del Ajedrez: José Raul Capablanca

- Juegue como un Gran Maestro: Alexander Kotov

- Winning Chess Middlegames: Ivan Sokolov

- Understanding Chess Middlegames: John Nunn


Vamos em frente rumo à maestria no xadrez!

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