Esta crítica analítica poderia terminar no começo e neste ponto: Jeannie, a esposa gestante do comediante, não foi morta pelos mafiosos do Capuz Vermelho, Barbara Gordon não foi estuprada, Batman não estrangula Coringa no final; estes, os três pontos considerados dúbios em Piada Mortal (1988), de Alan Moore e Brian Bolland[1], não são abertos a interpretações, porquanto o que digo é o que consta no roteiro original datilografado pelo Mago de Northampton, como se pode conferir aqui. Posso ir ainda um pouco mais. No mesmo mês da graphic novel, a DC a estabeleceu como um evento canônico[2] – abandonando assim a proposta de ser elseworld –, integrando a cronologia oficial do batverso. De 1988 para frente nos quadrinhos, seguindo a cronologia, Barbara Gordon surgiu como abstinente do manto de Batgirl, aleijada, e Coringa apareceu vivo ininterruptamente. Além disso, até 2013, aquelas dubiedades jamais foram cogitadas no conto. Foi o sensacionalismo de Grant Morrison que incutiu a ideia numa entrevista com Kevin Smith[3]; Brian Bolland, no entusiasmo marqueteiro da reimpressão da graphic novel, depois do aniversário de 20 anos da publicação, endossou-a quando de sua recolorização e, mais recente, Rich Johnston, do site Bleeding Cool, sugeriu que, ao final da história, “o Batman e o Coringa morreram envenenados”[4], enquanto Devin Grayson com Scott Beatty inferiram que, segundo relato do Charada, a esposa do Coringa foi sequestrada e assassinada pela quadrilha do Capuz Vermelho a fim de forçar o comediante a cumprir o plano de roubo à indústria Ace[5]. Notemos, se largarmos a obra às múltiplas recepções interpretativas dos leitores incorreremos, de inevitável, numa espiral quase infinita de interpretações, e ela se dissipará na perda de sua verdade artística objetiva que toda peça de arte contém. Como crítico literário, defendo, em consonância com as escolas teóricas de corrente textualista, que toda obra de arte possui uma sólida e pura significação imanente, possível de ser apreendida objetivamente por meio da análise de sua estrutura. Para confirmar a integridade conteudística do trabalho de Alan Moore bastariam as três coisas de que falei: o roteiro original nada diz a respeito, Coringa continuou vivo na cronologia do Batman, aquelas ambiguidades só vieram aparecer 25 anos depois. E minha crítica encerraria aqui. Entretanto, isso não seria uma crítica. Uma análise requer a sondagem da obra, o que ela nos mostra, o que tem a dizer, e não o que é externo a ela é o que vem dar o ponto final. Deixarei que a obra fale por si e demonstre, através da sua composição, sua própria verdade.
1) o
olhar onisciente pelo qual nós acompanhamos as cenas à garante
a objetividade/imparcialidade dos fatos;
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2) o
Coringa com seus flashbacks da sua vida pré-crime à perspectiva
unilateral, subjetiva, parcial da história.
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No detalhe, o estranho objeto com tampa aberta posto em cena pelo desenhista Brian Bolland. Somente com o cruzamento das cenas é possível ver nele o aquecedor da mamadeira que eletrocutou Jeannie. |
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À esquerda a capa de Rafael Albuquerque para Batgirl criticada pelos fãs. No centro, uma fanarte mais radical como crítica ao boicote. À direita, cosplayers em apoio a Rafael Albuquerque. |
Argumentos
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O
que a estrutura demonstra
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“Coringa
não se contentou com um voyeurismo. Ele estuprou Barbara aleijada”
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O plano do Coringa é o tempo todo reiterado pela
ideia de “despir o sujeito da dignidade humana” como vingança por ter sido
ele, um dia, despido dela também. É por isso que, à pergunta “por que você
está fazendo isso?”, de Barbara, ele diz: “Pra provar uma coisa”. Ele quer
provar que uma pessoa, quando despida de sua dignidade e submetida à pressão
psicológica, enlouquece como ele:
– Fisicamente ridículo, ele [o homem comum, representado pelo
Comissário Gordon] possui, por outro
lado, uma deturpada visão de valores; observem o seu repugnante senso de
humanidade, a disforme consciência social e o asqueroso otimismo. [...] O
mais repulsivo de tudo são suas frágeis e inúteis noções de ordem e sanidade.
Se for submetido a muita pressão... Ele quebra! (– Coringa, p.36, 3ª e 4ª
quadrículas).
– É tudo uma piada! Tudo pelo que as
pessoas lutam e dão valor não passa de uma monstruosa e insensata anedota! (– Coringa, p.42, 6ª quadrícula).
A ideia de “despir o sujeito da dignidade
humana” é ilustrada na nudez fotografada de Barbara Gordon e na nudez
adestrada do seu pai, o Comissário Jim Gordon, ambas expostas ao público. A
roupa de “turista” que o Coringa usa na invasão à casa dos Gordon é uma
paródia da imagem tipológica de um turista genérico que gosta de fotografar
sua viagem, indicando com isso que o objetivo do serial killer era somente tirar fotos do corpo nu e imobilizado
da heroína, para mais tarde uni-las à nudez do pai, humilhando os dois. Só o
fato de ele alvejar à queima-roupa (e sem chance de defesa), despir e
fotografar Barbara imobilizada, já constitui, por si só, uma hedionda
violência sexual até ali jamais vista em HQs de super-heróis.
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“O
Comissário Gordon sofreu um tratamento sádico-fetichista no parque de
diversões como extensão do estupro da filha”
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O
tratamento que Gordon sofreu não foi de caráter sexual, e sim animal. Ele é
posto sob uma nova condição: a de um animal-atração de circo, uma bizarrice
do show de horrores que precisa ser amestrada. A. Moore inverte as posições
sociais aí; os atores bizarros do freak
show que fustigam Gordon passam a ser os “seres normais”, a plateia;
Gordon, o homem comum, passa a ser o “bicho esquisito”, a aberração a ser
vista. A coleira que o prende é uma coleira de adestramento de animais
selvagens, e não de filmes snuff. As
quadrículas não mostram os anões com lingeries; 2 usam uma fantasia sumária,
“a de anjinhos do mal”; dos 3, apenas 1 usa uma cinta-liga com meia 7/8; o
terceiro é uma anã vestida de colombina. O trio é careca, mas com uns fios de
cabelo em rabo-de-cavalo ao fim da cabeça, presos num laço. 2 deles usam ligaduras
de couro e ferro. São apenas o figurino estereotipado dos anões bizarros que
possuem fisionomia distorcida, típico do show de horrores, e não uma prática
de crossdressing. Quem considera
Barbara ter sido estuprada devido à nudez exposta, teria de aceitar que, por
motivos próximos, Jim Gordon também foi estuprado ou abusado sexualmente, já
que foi posto a nu; afinal, por que a lógica que induz a interpretar o
estupro de Barbara não induz ao estupro de Jim? Será que é porque Barbara é
mulher e Jim homem? Sustentar essa incoerência é ter um preconceito velado.
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“A invasão do Coringa à casa dos
Gordon emula a cena de estupro em Laranja
Mecânica”
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1) Tal
interpretação é externa à graphic novel, arbitrária. Alan Moore jamais disse
isso, Brian Bolland e a DC também não – é pois uma mera especulação.
2) O
roteiro de A. Moore propunha nu frontal e B. Bolland chegou a desenhá-lo, mas
os editores-chefes, Len Wein e depois Dennis O'Neil, vetaram . Se a DC barrou
um mero nu frontal, o que dizer da ideia implícita de estupro? Na cena da enfermaria, com diálogo entre Batman
e Barbara, a menção a um possível estupro sequer é dita por Barbara; o
discurso dela gira em torno do sequestro do pai. O médico com o investigador
Harvey Bullock também não mencionam estupro, o que poderia ser plausível no
laudo médico de Babs. Não se vê repercussão alguma do suposto estupro no desenrolar
do conto.
3) Na
cena do resgate no parque, com diálogo entre Batman e Comissário Gordon, este
menciona apenas as fotos nuas, sem abrir margem à possibilidade de estupro –
o que naturalmente poderia ser transcrito. Sua fala ao Batman denota postura
de um homem sensato, não atingido pela inevitável cólera por eventual estupro
de uma filha:
– Quero
que o prenda... Quero que o prenda pela lei! Pela lei, você ouviu? Precisamos
mostrar a ele! Temos de mostrar que o nosso jeito funciona!
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TRAGÉDIAS
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VINGANÇAS
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● Fracasso
profissional como humorista
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● Compra do circo/parque de
diversões
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● Pobreza
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● Roubo de somas de dinheiro
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● Luto
paternal/conjugal
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● Aleijamento de Barbara
Gordon (filha de Jim)/sequestro de Jim Gordon (pai de Barbara)
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● Incidente
no tanque ácido
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● Confronto com Batman
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Ciclo dos Episódios em Anel de
Ferro
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(Todos
os flashbacks) → noite e/ou chuva perpassam
as angústias do comediante
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(Todo o conto) → noite e/ou chuva perpassam a
trama como estados presentes nas tragédias que moldaram o herói (Batman) e
seu inimigo (Coringa), funcionando como um “fluir, um desaguar” de uma nova
tragédia, dessa vez envolvendo, ao mesmo tempo, os dois personagens
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1º
episódio (ida de Batman ao Asilo Arkham) → quadrículas ágrafas (sem balões e sem caixa de texto) no
início
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20º episódio (três últimas
quadrículas) → quadrículas ágrafas no final
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1º
episódio (ida de Batman ao Asilo
Arkham) → Batman,
Coringa-sósia e a polícia de Gotham juntos
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20º episódio (chegada da viatura) → Batman, Coringa autêntico e a polícia de Gotham juntos
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1º
episódio (conversa de Batman ao Coringa-sósia) → frase do narrador-1, “tinha dois caras no hospício...”
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19º episódio (recitação da piada) → frase do Coringa,
“tinha dois caras no hospício...”
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1º
episódio (conversa de Batman ao Coringa-sósia) → frase do Batman, “olá. Eu
vim conversar”
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16º episódio (resgate do
Comissário Gordon)
→ frase do narrador-1,
“olá. Eu vim conversar”
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13º
episódio (flashback) → noite de chuva que precede
a tragédia do comediante na fábrica de baralho
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16º episódio (resgate do Comissário Gordon) → noite de chuva que
precede o confronto entre Batman e Coringa
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13º
episódio (flashback) → recordações do Coringa em
um espelho d’água na poça da chuva
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20º episódio (chegada da
viatura) → poça d’água da chuva noturna
sob um facho de luz do farol da viatura de polícia
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1º
episódio (abertura) → chuvas em poças
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20º episódio (desfecho) → chuvas em poças
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