PROJETO XEQUE-MATE #03




Transcrição da pág. 14 – 18:

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A VIDA IMITA O XADREZ


O xadrez vai a Hollywood


É difícil pensar em um conjunto de imagens mais paradoxal do que a reputação do jogo de xadrez em contraste com o jogador de xadrez. O jogo de xadrez é aceito como símbolo universal do intelecto e complexidade, sofisticação e astúcia. E ainda persiste a imagem do devotado jogador de xadrez como excêntrico, talvez até mesmo psicótico.
Em muitos países ocidentais, o estereótipo do jogador de xadrez geralmente é sinônimo de franzino subnutrido ou nerd superinteligente, mas anti-social. Essas percepções sobre enxadristas mesmo quando imagens positivas e associações ao xadrez são regularmente utilizadas por Hollywood e pelas agências de publicidade. 


Quem consegue esquecer a sequencia de abertura do filme de James Bond Moscou contra 007, no qual o vilão Kronsteen sai direto de uma vitória de um torneio de xadrez para tramar a destruição global? O autor de Bond, Ian Fleming, e o diretor dedicaram muita atenção ao jogo entre Kronsteen e seu adversário “McAdams”, baseando-se em um jogo real entre dois grandes enxadrísticas soviéticos, o décimo campeão mundial Boris Spassky, e David Bronstein, em sua única disputa pelo título de campeão. A história utiliza o xadrez como metáfora de maneira transparente, como quando um dos aliados de Bond o previne, “Esses russos são grandes jogadores de xadrez. Quando querem executar um plano, eles executam brilhantemente. O jogo é planejado a cada minuto, e as artimanhas do inimigo já estão previstas.”
Dezenas de outros filmes utilizaram o xadrez de modo semelhante para demonstrar inteligência e pensamento estratégico por parte do protagonista. O filme Assassinos, de 1995, apresenta Silvester Stallone e Antonio Bandeiras como matadores profissionais, que tentam assassinar um ao outro durante o dia, enquanto se enfrentam no xadrez pela internet durante a noite. No filme 2001, de Stanley Kubrick, de 1968, o computador HAL 9000 derrota com facilidade o personagem Frank Pole em uma partida de xadrez, prenunciando o fato de que a máquina o acabará matando.


O estereótipo do jogador de xadrez também exige que sejamos criaturas introvertidas, beirando a obsessão e a alienação. Vladimir Nabokov era um entusiasta de xadrez, mas não favoreceu o jogo em seu romance A Defesa, de 1930 (posteriormente recebeu o título A Defesa Luzhin), no qual o personagem principal é um sábio desengonçado e Grande Mestre do jogo, que, tirando sua habilidade para jogar xadrez, era muito pouco apto a conviver em sociedade. A versão de 2000 em filme tentou retratar uma imagem mais agradável, transformando-o em uma espécie de romance.

O austríaco Stefan Zweig também povoou o mundo do xadrez com personagens excêntricos e problemáticos. O romance A Partida de Xadrez, publicado após a sua morte, é um comentário político e psicológico sobre o nazismo, centrado em duas partidas entre um quase analfabeto campeão mundial de xadrez e um médico ensandecido por jogar xadrez conta si próprio, enquanto foi mantido preso pela Gestapo. No livro, Zweig apresenta essa fascinante descrição do jogo em si:

Mas não fazemos já uma restrição ofensiva classificando de jogo o xadrez? Não é ele também uma ciência, uma técnica, uma arte, que paira entre essas categorias, como o esquife de Maomé entre o céu e a terra, não é uma união sem igual de todos os conceitos contraditórios? Antiquíssimo e sempre novo, mecânico no plano eficiente só mediante a fantasia, limitado no espaço geométrico e, ao mesmo tempo, ilimitado em suas combinações... Como demonstrado pelas evidências, o xadrez é mais duradouro em sua existência do que todos os livros e as obras, o único jogo que é de todos os povos e de todas as épocas. Ninguém sabe que Deus trouxe ao mundo a fim de matar o tempo, aguçar a mente e exercitar o espírito... Qualquer criança pode aprender as suas primeiras regras, qualquer desajeitado pode experimentar jogá-lo, e apesar disso, esse jogo consegue gerar dentro desse quadrado imutável uma espécie particular de mestres, que não se pode comparar com qualquer outra, pessoas com inteligência exclusiva para ele, gênios específicos, nos quais a visão, a paciência e a técnica atuam com uma distribuição tão exatamente determinada como no matemático, no poeta, no músico, mas com outra estratificação e união.

Personagens de xadrez da vida real


Muitos jogadores proeminentes do passado realmente tiveram problemas psiquiátricos durante ou depois de suas carreiras. O mestre alemão Curt Von Bardeleben suicidou-se em 1924 da mesma maneira que Luzhin no livro de Nabokov, atirando-se de uma janela. O primeiro campeão mundial de xadrez oficial, Wilhelm Steinitz, sofreu de problemas mentais nos últimos anos de sua vida. Um dos jogadores mais bem-sucedidos do primeiro quarto do século XX, Akiba Rubinstein, tornou-se vítima, gradativamente, de uma timidez patológica. Depois de dar um lance, ele se escondia no canto da sala de jogos, aguardando a réplica do adversário.
Os dois maiores jogadores de xadrez já produzidos pelos Estados Unidos abandonaram o jogo na flor da juventude e sofreram episódios de instabilidade mental. Paul Morphy, de Nova Orleans, eliminou os melhores jogadores do mundo na turnê europeia de 1858-59, abandonando o esporte alguns anos mais tarde para se dedicar a advocacia. Ele nunca mais jogou xadrez sério e, no fim da vida, o primeiro herói de xadrez americano sofria períodos de delírio, que parte da imprensa atribuía a suas prodigiosas façanhas mentais.
Em 1972, Robert (Bobby) Fischer arrebatou o título de campeão mundial de Boris Spassky e da União Soviética, em um jogo lendário realizado em Reykjavik, na Islândia. Na sequencia, abandonou o jogo por vinte anos, recusando-se a defender o titulo em 1975 e desaparecendo, literalmente, por mais de uma década. Quando Fischer foi chamado para jogar com Spassky o chamado match revanche do campeonato, em 1992, na Iugoslávia – na época sob a sanção das Nações Unidas -, seu xadrez previsivelmente enferrujado foi acompanhado por uma vociferante paranoia anti-semítica.
Mas casos excepcionais como esses, tanto na vida real como fora dela, tornam mais fácil ignorar a grande quantidade de jogadores de xadrez que, além da capacidade de jogar xadrez bem, não têm nada demais.

A linhagem do jogo real

Se o único xadrez que você já viu é o diagrama no jornal da manhã, pode ser uma surpresa saber que ele conta com uma extensa literatura, que remonta a centenas, talvez milhares de anos, se incluirmos as variantes míticas do jogo, o qual, de acordo com a maioria dos relatos populares, é originário da Índia. Um dos primeiros livros impressos na gráfica de William Caxton, no século XV, foi The Game and Playee of the Cheese. Quinhentos anos mais tarde, algumas das primeiras comunicações por meio do que viria a ser a internet continham os lances de um jogo de xadrez entre cientistas em laboratório de testes.
A técnica de registrar as partidas com símbolos (“notação de xadrez”) confere ao jogo um histórico detalhado, permitindo que milhões de enxadristas, ao longo de gerações, deleitem-se e aprendam com as partidas de jogadores famosos do passado.
Observando o desenrolar da história do xadrez de maneira resumida, podemos notar a evolução constante do jogo. Não estou aqui me referindo a regras, que foram amplamente padronizadas no final do século XVIII. Enquanto as regras permanecem as mesmas, o estilo e as ideias centrais do jogo mudaram radicalmente nos últimos 150 anos, embora em etapas suaves e evolutivas.
Depois que escrevi uma série de pequenos artigos de jornal sobre os campeões mundiais que me antecederam, tornei-me obcecado pela ideia de analisar em profundidade a mudança do jogo ao longo das décadas, e como sua evolução foi impulsionada por jovens praticantes. Eu tinha em mente uma biografia do xadrez, contada por meio de uma análise cuidadosa dos jogos maiores e mais importantes. Esse projeto, que absorveu grande parte da minha vida nos últimos três anos, materializou-se em uma série de livros chamada Meus Grandes Predecessores.
Enquanto escrevemos esse livro, já estamos quase completando o volume 6. No processo, aprendi uma enormidade sobre os grandes jogadores do passado. Cada campeão tinha talentos individuais e contribuiu imensamente para a evolução do jogo. Estudar os 12 campeões mundiais que precederam, e seus grandes rivais, me fez pensar o que possibilitou o sucesso dos “12 grandes”? O que tinham os campeões que faltava nos desafiantes?
É natural que os enxadristas digam que a aptidão para o xadrez pode ser traduzida em grande inteligência, até genialidade. Infelizmente, há poucos elementos para apoiar essa teoria. Nem há muita verdade na habitual percepção do público de que os jogadores de xadrez são computadores humanos, capazes de memorizar megabytes de dados e calcular dezenas de lances à frente.
Na realidade, como observei, há pouca evidência de que os mestres do jogo possuam talentos além do obvio de jogar xadrez. Isso levou gerações de pesquisadores a tentar descobrir exatamente por que algumas pessoas jogam xadrez bem e outras não. Não há gene do xadrez, nenhum padrão comum na infância e, ainda assim, como na música, e na matemática, há verdadeiros prodígios de xadrez. Crianças de apenas quatro anos tornam-se estrelas, vencendo adultos poucos meses depois de aprender o jogo, simplesmente observando o jogo dos mais velhos.
Portanto, sabemos que existe essa coisa de talento para o xadrez, mas ela em si não é de muita valia. Mesmo que você seja abençoado com o talento, ele pode nunca se revelar sem a presença de muitos outros fatores, e vale mais a pena nos concentrar nos fatores que podemos observar melhor e influenciar.

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