Todo fim de ano é uma assembleia
de ilusões.
A cidade entra em um acordo silencioso de que basta virar a página do calendário e tudo fica novo. Meia-noite, fogos, promessas, abraços otimistas: e lá estamos nós acreditando que acordaremos disciplinados, calmos, produtivos, quase iluminados.
Comprei essa fantasia por anos.
Fazia listas impecáveis, coloridas, com metas em tópicos que soavam
inteligentes, mas que nunca tinham nada a ver com a minha rotina real. Eu dizia
que ia acordar às cinco, meditar, ler mais, escrever todos os dias. Em março
desse ano eu estava com olheiras, atrasando prazos e me sentindo culpada por
falhar em metas que nunca tiveram chance. Chamar isso de “recomeço” é
confortável. Mais verdade seria chamar de adiamento com glitter: eu não queria
mudar, queria acordar mudada, sem esforço, sem o incômodo de encarar o que
realmente estava fora do lugar.
O melhor golpe só pega quando a
nossa guarda está bem baixa e com confiança nas alturas. Um bom emprego, nada
excepcional, mas prazeroso de ser feito, uma rotina previsível e um
relacionamento de seis anos que, por dentro, tinha virado silêncio polido. A
gente não brigava; a gente evitava. A famosa “conversa séria” era sempre
empurrada para depois: aniversário, viagem, virada do ano qualquer data servia
de desculpa para não admitir que já não estávamos ali. Passei o réveillon
sorrindo nas fotos, brindando “a nós”, e em fevereiro eu já dormia na beirada
da cama, com medo de encostar.
Medo. Medo de desmontar uma vida
aparentemente estável. Enquanto isso, meus arquivos de escrita viravam
cemitério de rascunhos. Eu abria um projeto, ficava insegura, fechava, prometia
terminar “no começo daquele ano”. Passava o começo, o meio, o fim e eu seguia
igual, só que mais exausta e sem me explicar mais.
Essas mesmas mentiras apareciam
em outras áreas. Eu jurava que voltaria a falar com meu pai “depois das
festas”, porque dezembro parecia um mês neutro demais para conflitos. O
resultado: mais um ano sem conversar de verdade, só cumprindo protocolo familiar.
Também comprei uma esteira usada que virou cabide em duas semanas, mas eu
contava para os outros que “estava me organizando”. É impressionante como a
gente inventa narrativas sofisticadas para justificar a própria paralisia.
Quando o relacionamento acabou de verdade, não foi em um grande momento
dramático. Foi numa terça, com a pia cheia de louça e uma frase curta.
Dói dizer que um vínculo não
morreu por culpa do destino, mas por inércia diária.
Mais tarde, quando tentei retomar
minhas demais atividades, percebi que eu tinha cultivado o mesmo hábito:
esperar que a inspiração salvasse aquilo que só disciplina resolve.
Hoje, quando vejo essa enxurrada
de metas e promessas das em dezembro, só consigo rir. De verdade. Mas existe
outra parte que entende o impulso. Prometer coisas grandiosas é mais
confortável do que assumir as pequenas mudanças chatas e diárias que realmente
transformam alguma coisa. Se eu tivesse sido honesta comigo, teria terminado o
que já estava morto antes da ceia, teria publicado textos imperfeitos só para
voltar a esquentar o motor, teria feito a ligação difícil que eu empurrei por
meses. Teria dito “não” a trabalhos que me deixavam vazia, em vez de acumular
frustração e fingir que era “fase”. A verdade é que o ano novo não reboota
nada. O que limpa são os gestos minúsculos, feitos sem plateia, quando ninguém
está batendo palma. É o que a gente faz quando não promete nada para ninguém,
inclusive para nós mesmos.
Aprendi isso aos tropeços. Em janeiro
desse ano eu não fiz lista nenhuma. Eu só decidi responder emails no mesmo dia,
caminhar vinte minutos mesmo quando chovia, e revisar um parágrafo a mais do
que o necessário. Pequenas decisões que não dariam algo clicável nas redes. E,
aos poucos, as coisas começaram a se mover. Reatei uma conversa difícil com meu
pai. Não num almoço especial, mas sentado na calçada enquanto esperávamos um
Uber. Publiquei um texto que achei mediano e recebi mensagens de gente dizendo
que precisava ler exatamente aquilo. Não houve fogos. Só houve o incômodo
persistente de agir quando era mais fácil adiar. É isso que me faz olhar para o
fim do ano com menos ilusão e mais respeito: não pelo espetáculo, mas pelo que
a gente faz quando as luzes apagam.
Se esse fosse o último texto meu
que você leu, esse aqui não trás promessas épicas, nem listas brilhantes. Esse
texto é só um lembrete para mim mesma: parar de terceirizar a coragem para
janeiro. A vida não espera o calendário virar, e os pedaços que realmente mudam
quase sempre doem. Dor e aprendizados são o oposto da fantasia. E, se existe
uma esperança honesta na virada, do tipo que eu não rio, talvez seja só esta:
escolher um gesto concreto hoje, pequeno, que ninguém veja, e repetir amanhã.
Esqueça os dias e meses e se lembre apenas do que deve ser feito.
O “ano novo” não precisa ser
mágico.
