Leia antes que sumam de novo: 5 HQs que merecem ser redescobertas — Parte II

 


Eu quase nunca faço “parte 2”. Costumo implicar com sequências que só repetem fórmula. Mas a conversa no post anterior foi boa o bastante para eu abrir a mesma gaveta e puxar mais cinco títulos que ficaram no escuro. Continuo no terreno dos quadrinhos adultos, muitas vezes lançados por editoras grandes, mas que o tempo empurrou para fora da conversa. São obras fechadas, que ganham quando relidas.

Caso queira ler a parte I: 

https://ozymandiasrealista.blogspot.com/2025/10/leia-antes-que-sumam-de-novo-5-hqs-que.html



1) Shade, the Changing Man (Peter Milligan e Chris Bachalo, 1990–1996)


Rac Shade é um agente do planeta Meta que cruza para a Terra vestindo a M-Vest, um dispositivo que distorce percepção, memória e identidade. Ele não chega “limpo”: cai no nosso mundo dentro de uma situação moralmente impossível e esbarra em Kathy George, que carrega luto e raiva suficientes para atravessar um país. O primeiro arco, American Scream, é um road movie psicológico. Antagonista não é “um vilão”, é a própria Loucura vazando de Meta e tomando formas específicas da cultura americana: televangelismo histérico, celebridades descartáveis, violência espetacularizada, culpa nacional que nunca se resolve. A cada parada, Shade e Kathy enfrentam uma manifestação concreta desse delírio e a M-Vest amplifica tudo, inclusive o que eles escondem de si. É aqui que Milligan define o eixo da série: não é sobre “salvar o mundo”, é sobre o preço de manter um vínculo quando a realidade muda de forma a cada esquina.

Os antagonistas continuam sendo “encarnações” de ideias, mas sempre atreladas a pessoas com motivações legíveis, o que impede a série de virar sermão. O desfecho não é pirotécnico nem “arruma tudo”. Milligan fecha ciclos, cobra a conta emocional do trio e dá uma última escolha que é coerente com o que lemos: ninguém volta a ser quem era, ninguém “vence” no sentido quadrinístico clássico, mas existe conclusão. Chris Bachalo cresce visivelmente: composições quebradas quando a M-Vest bagunça tudo, anatomias e leituras de página que se ajustam ao humor da cena, e um senso de design que virou escola. Até onde sei, a publicação não saiu completa no Brasil, o que ajuda a explicar por que Shade segue tratado como peça “underground” dentro da própria Vertigo. É irônico, porque pouca série dos anos 90 foi tão honesta ao perguntar quem você é quando o mundo exige que você mude de personagem a cada capítulo.



2) Signal to Noise (Neil Gaiman e Dave McKean, 1992)


Um diretor que recebe um diagnóstico terminal antes de filmar seu próximo longa. Ele decide “rodá-lo” de outro jeito: escreve planos, imagina sons, monta cortes na cabeça enquanto atende telefonemas, vai a consultas e tenta manter a compostura com quem ainda espera prazos. Em paralelo, acompanhamos o ano 999 em uma aldeia europeia que aguarda o fim do mundo. O conflito não é médico, é de tempo e autoria. O antagonista real é a pressa que engole processo criativo. McKean alterna fotografia, pintura e tipografia para separar os planos de realidade e projeto, então a página vira ilha de edição. Há uma passagem em que o diretor descreve a luz de uma cena ao mesmo tempo em que a enfermeira lê um resultado clínico. O livro trava as duas trilhas no mesmo compasso e você entende que ele não está desistindo do filme, só trocando o suporte de cinema para imaginação disciplinada. Li tarde, depois de perdas, e me pegou por tratar criação como ferramenta de sobrevivência, não como discurso edificante. Gaiman e McKean, já consagrados por Sandman, escolhem um registro quase íntimo. Envelheceu bem porque não vende solução, só mostra alguém tentando entregar o que dá enquanto o relógio corre...



3) A Small Killing (Alan Moore e Oscar Zárate, 1991)


Um publicitário que volta à cidade natal para destravar uma campanha e passa a ser seguido por um menino que aparece onde não devia. Parece alegoria simples, mas Moore escolhe cotidiano e Zárate constrói uma paleta que desbota conforme memórias mal resolvidas voltam. Não tem monólogo de culpa, tem situações banais que viram acusação. Um jantar com conhecidos escancara quem ele decidiu esquecer. Uma visita à antiga escola irrita porque os detalhes não batem com a narrativa que ele montou sobre si. O garoto que surge nas esquinas força o protagonista a voltar para lugares que viraram peça de marketing da própria vida. O final não depende de reviravolta, depende de postura. Quando reli numa mudança de emprego, doeu perceber como a linguagem de campanha contamina decisões pessoais. Moore está em modo contido, sem fogos de artifício, e Zárate segura tensão com enquadramentos simples e mudanças de temperatura de cor.



4) The Mystery Play (Grant Morrison e Jon J Muth, 1993)


Uma cidade galesa encena um mistério medieval e o ator que interpreta Jesus aparece morto. Chega um detetive e parece que vamos ler um “quem matou”, mas Morrison mira outra coisa. Cada depoimento abre rachaduras de uma comunidade pequena. Culpa antiga, acordos silenciosos, preconceitos que todo mundo finge não ver. O antagonista muda conforme a investigação avança, porque o caso depende de como cada morador precisa ser visto. Muth pinta em aquarela e deixa a página respirar como tarde nublada de cidade do interior. Lembro de uma procissão interrompida por um detalhe do caso que muda a expressão de quem carrega as tochas. É menos sobre puzzle e mais sobre o que a solução exige de quem vai conviver com ela. O final entrega resposta sem discurso explicativo. O que fica é a decisão ética do investigador diante do que descobriu. Morrison após estrelato pop de Asilo Arkham e cia., com mais liberdade pra brincar com seus conceitos provocativos, um Morrison que ainda não havia publicado "Os Invisíveis", que valeria um post à parte.

 


5) Stray Toasters (Bill Sienkiewicz, 1988)


Um profiler que sai de uma clínica e volta a um caso de assassinatos de crianças. A polícia quer culpado rápido, a TV quer vilão didático, e Sienkiewicz recusa a simplificação. O elenco é um mosaico de pessoas quebradas que não cabem em manchete. Uma mãe exausta que fala duro para não desmontar. Um terapeuta com agenda própria. Um executivo que terceiriza a consciência. Uma mulher que pode estar certa dizendo tudo do pior jeito. As colagens, a tipografia agressiva, as páginas pintadas e os quadros minimalistas tornam essa obra bem diferente das outras da lista. A torradeira aparece como objeto banal que solda lembrança, violência doméstica e publicidade. Na primeira leitura eu parei na superfície do impacto visual. Na releitura vi rigor de romance policial: pistas plantadas cedo, vozes que se contradizem com propósito, padrões que retornam. Se trata menos “da criatura” e mais de um conjunto de mecanismos sociais que autorizam monstros a passarem por comum. É Sienkiewicz autor completo, não só “o artista da Elektra”. Funciona como história fechada, sem conforto de explicação final mastigada. Se você só conhece o traço dele na Marvel, vale encarar aqui para ver o que acontece quando o estilo manda no tema e o tema aguenta o tranco. Teve uma edição discreta da Conrad uns anos atrás.



Fecho aqui e deixo a bola com vocês. Muita coisa ficou de fora de propósito, não por falta de amor, mas para o post não virar catálogo. Pensei em Mister X, Cages e Violent Cases, respirei fundo e guardei para depois. Se esse texto render conversa, faço uma Parte III e prometo tentar quebrar a maldição das terceiras partes.

Agora quero ler vocês: quais dessas cinco vocês já leram, quais passaram batido, e que outros “perdidos” merecem voltar à roda? Vale história única, minissérie fechada ou run curto que envelheceu melhor do que lembramos. Se aparecer indicação boa, eu leio, trago anotações e a gente monta uma lista coletiva. Vamos ver até onde dá para cavar antes que sumam de novo...