Essa ideia ficou martelando na minha cabeça desde a conversa nos comentários do último texto, aquele sobre o heroísmo ter virado uma piada. No meio do debate, o Xandão e o Gambit trouxeram The Batman, o novo Quarteto Fantástico e o Superman do James Gunn como possíveis sinais de que o gênero pode estar reencontrando o rumo. Não vou me aprofundar muito sobre esse “clube da luta” imaginário em que eles parecem combinar gostos e argumentos, mas o fato é que os três filmes têm um ponto em comum: todos tentam devolver aos super-heróis uma certa dignidade perdida, uma seriedade que o MCU e suas cópias pasteurizadas fizeram questão de diluir. A questão é: será que esses filmes são realmente bons, ou parecem bons porque o resto ficou tão genérico que qualquer lampejo de identidade já parece um resgate? E mais — será que daqui a 15 ou 20 anos eles vão ser lembrados com o mesmo peso de Homem-Aranha 2 ou O Cavaleiro das Trevas?
The Batman
The Batman é, sem
dúvida, o mais autoral dos três. Matt Reeves constrói uma Gotham que fede a
ferrugem, chuva e solidão. O filme não tem medo de ser metódico, de seguir um
ritmo quase investigativo, e isso o torna uma raridade. O Bruce Wayne de Robert
Pattinson não é um bilionário carismático — é um sujeito emocionalmente
atrofiado, ainda preso na caverna de sua própria obsessão. O acerto está
justamente aí: o filme não tenta fazer o público gostar dele, tenta fazê-lo
entender. A trilha sonora do Michael Giacchino e o uso de Something in the
Way, do Nirvana, são a alma silenciosa dessa melancolia. Não é só uma
escolha estética — é uma confissão: Reeves realmente enxerga seu Bruce Wayne
como um Kurt Cobain enclausurado em sua própria dor, um homem que traduz o luto
em ruído. E funciona. A música não é um adorno, é um espelho — ela traduz o
mesmo niilismo contido no olhar do personagem, que se arrasta pela cidade como
quem ainda não decidiu se quer salvá-la ou desaparecer junto dela.
As mudanças de etnia, no geral,
funcionam dentro dessa visão. O Gordon de Jeffrey Wright, por exemplo, é um dos
pilares mais sólidos do filme. Há uma naturalidade nele que falta em outros
personagens; ele parece realmente viver em Gotham, não apenas atuar dentro
dela. Já o caso do prefeito e da Mulher-Gato é mais ambíguo. Zoe Kravitz
entrega presença, sensualidade e humanidade — mas às vezes o roteiro a prende
num ciclo de frases curtas e olhares de impacto, quando ela poderia ser o
contraponto emocional mais forte de Bruce. Já o Alfred de Andy Serkis é quase
um espectro. Falta a ele o peso emocional que Michael Caine dava em Batman
Begins e O Cavaleiro das Trevas — aquele senso de figura paterna que
justificava, em parte, o próprio código moral do herói. Reeves parece ter
preferido apagar os pais e seus ecos para deixar Bruce completamente órfão —
não apenas na carne, mas no espírito. Só que isso cobra um preço: sem a sombra
moral dos Waynes, o Batman perde parte do “porquê” de existir. E é exatamente
isso que Batman Begins fazia com maestria — explicava, de forma quase
sociológica, por que um homem assim surgiria num mundo real.
O Charada de Paul Dano é, talvez,
o personagem mais subestimado do filme. Ele não é um vilão “maior que a vida”,
como o Coringa de Ledger — é um produto da mesma podridão que o Batman tenta
corrigir. O que ele representa é a falência completa da ideia de controle: o
espelho que o obriga a encarar o fato de que inspirou monstros, não apenas
esperança. A escolha de Reeves de apresentar um Coringa deformado no final é
ousada, mas questionável. O personagem surge quase como um teaser da indústria:
a promessa de um caos que talvez o filme não precise. A verdade é que The
Batman já é o suficiente em seu próprio caos.
O ritmo do filme é outra questão
que divide público e crítica. Muita gente acha cansativo — especialmente a
primeira hora, em que parece que “nada acontece”. Eu discordo. O que existe ali
é construção: é o equivalente a caminhar numa Gotham viva, absorver o peso das
paredes, o som da chuva, a respiração de um mundo que ainda está sendo
definido. Mesmo assim, o argumento tem mérito. Quando comparado a O
Cavaleiro das Trevas Ressurge, que tem duração parecida, o filme de Nolan
parece “andar mais” em menos tempo. Só que há uma diferença estrutural enorme:
o filme de Nolan é o fim de uma trilogia consolidada; o de Reeves é o primeiro
tijolo de um novo edifício. Um está destruindo mitos, o outro está tentando
criá-los do zero. Então, se The Batman caminha devagar, é porque precisa
reaprender a andar — e, nesse sentido, ele anda com propósito.
Quarteto Fantástico
O novo Quarteto Fantástico
é um caso curioso de vitória visual e derrota estrutural. A direção acerta no
tom cósmico, nas cores, na sensação de exploração — o filme tem textura, tem
ambição, mas tropeça justamente no que mais define o grupo nos quadrinhos: os
personagens. O Reed Richards não convence como o gênio que ele é. É curioso
porque o próprio John Krasinski, que apareceu como Reed em Doutor Estranho
no Multiverso da Loucura, tinha uma presença mais próxima do personagem
clássico, mas era igualmente burro nas decisões. Parece que o cinema ainda não
sabe lidar com personagens realmente inteligentes. Eles escrevem cientistas
como adolescentes ansiosos com um computador, nunca como mentes que enxergam à
frente do tempo. Nesse sentido, um dos raros acertos recentes foi o Lex Luthor
do Superman do Gunn — mas eu chego nele depois.
A troca do Surfista Prateado por
uma nova figura simbólica me incomodou. Não por purismo, mas porque o Surfista
sempre foi o coração filosófico do mito do Galactus. Ele não é só um
mensageiro, é a culpa personificada. No filme dos anos 2000, por mais criticado
que tenha sido, o Surfista (feito pelo Doug Jones e dublado pelo Laurence
Fishburne) era o elo entre o humano e o divino, o sacrifício e a redenção.
Aqui, tudo se dilui. A nova abordagem evita o risco de “ofender” e acaba
ofendendo a própria história. E o pior é ver como muita gente tem medo de dizer
isso, porque qualquer crítica mais firme é interpretada como birra ou “ismo” —
quando, na verdade, é só uma defesa de coerência narrativa. Eu, pessoalmente,
me sentiria mais representada por aquele Surfista original do que pela
abstração confusa que colocaram no lugar. Ele tinha alma, propósito e
consequência.
Há também um dilema moral no
enredo envolvendo o filho do Reed e da Sue, mas o filme não se esforça para
torná-lo compreensível a quem não conhece os quadrinhos. Um amigo meu, que foi
ver o filme sem conhecer nada da mitologia, saiu do cinema me perguntando por
que aquela criança era “tão especial”. E ele tinha razão — o roteiro trata a
questão como um segredo mal contado. Esse é o tipo de falha que separa uma boa
adaptação de um filme preguiçoso: contar uma história sem depender do manual de
instruções do fã.
A Sue Storm é outro ponto
divisivo. Eu sei que muita gente diz preferir essa versão, mais assertiva e
moderna, mas honestamente eu ainda gosto mais da Mulher Invisível da Jessica
Alba. Por mais que o roteiro da época fosse limitado, havia algo de genuíno
nela — um equilíbrio entre vulnerabilidade e força que não soa ensaiado. E é
irônico ver o discurso atual de que a Sue “só era uma dona de casa” nos
quadrinhos clássicos, como se isso diminuísse uma mulher. Escolher cuidar da
própria família nunca foi sinônimo de fraqueza. E mesmo nos filmes antigos, ela
era a mais poderosa da equipe — o filme fazia questão de mostrar isso, mesmo
quando o destaque maior era dado ao Tocha Humana. Essa versão nova tenta
reafirmar a força da personagem por meio de discursos, não de ações. E quando o
cinema precisa dizer que uma personagem é forte, é porque ele falhou em
mostrar.
O Galactus, por sua vez, é o
ponto mais alto do filme — visualmente impressionante, com uma presença que
beira o sublime. O problema é que ele aparece pouco, quase como um conceito em
vez de uma ameaça. Fica a sensação de que o filme teme o próprio tamanho. E o
ritmo, apesar de constante, sofre com isso. Diferente de The Batman, que
é um filme de investigação e tem justificativa para seu andamento lento, o Quarteto
Fantástico pede outra dinâmica. A essência do grupo é a descoberta, a
exploração, a aventura em escala cósmica. É um time que precisa de movimento,
de reações, de maravilhamento. Faltou isso.
E aí vem o Coisa. O Ben Grimm
sempre foi, pra mim, o verdadeiro coração do quarteto. Um monstro por fora, mas
um cavaleiro por dentro — o tipo de homem que parece extinto na vida real. O
carisma, o humor amargo, o senso de lealdade — tudo isso fazia dele o elo
humano da equipe. No novo filme, ele parece sem propósito. Não brilha nas cenas
de ação, não tem a alma que tinha nos quadrinhos. É como se tivessem esquecido
que ele era a personificação do próprio Jack Kirby: bruto, sensível e indignado
com o mundo. Tirando ele do filme, quase nada muda. E talvez essa tenha sido
minha maior decepção: o Quarteto Fantástico que eu conhecia era uma
família — disfuncional, barulhenta, mas família. Aqui, são apenas quatro
estranhos em CGI compartilhando um mesmo plano.
Talvez as coisas melhorem quando
o Reed tiver o contraponto do Dr. Destino interpretado pelo Robert Downey Jr.
Mas até isso é uma incerteza — ninguém sabe se ele será realmente o Victor Von
Doom ou só uma variante do Tony Stark com outro nome. Se for esse o caso, será
um chute no estômago de qualquer fã. E aí, sinceramente, não vai restar muito
do que ainda podemos chamar de “caminho de volta”.
Superman
O Superman de James Gunn
foi, pra mim, o mais difícil de definir. Eu não quero entrar em questão de
bilheteria, porque isso é ruído — o que me interessa é o filme em si. Ainda
assim, dá pra reconhecer que ele não foi o sucesso que a Warner esperava. E,
honestamente, não me surpreende. O Superman é um personagem quase impossível de
acertar. Desde Christopher Reeve, qualquer tentativa de reinterpretá-lo parece
condenada à comparação. É como no xadrez americano: nenhum jogador, por mais
brilhante que seja, escapa da sombra do Bobby Fischer. Da mesma forma, nenhum
ator escapa do fantasma do Reeve — ele virou o molde do impossível.
Quando vi o filme no cinema, saí
com a sensação de que era o melhor Superman em muito tempo. A experiência
coletiva, o som, o impacto visual — tudo funcionava. Revendo depois, em casa,
ele ainda é um bom filme, mas o fator replay some rápido. O Gunn é bom em
ritmo, em colocar cor e humor sem perder o foco, mas parece que o filme gasta
toda a magia na primeira vez. O Esquadrão Suicida dele continua
divertido a cada revisão; Superman, não tanto. A cena que ainda me
arrepia é a das bandeiras no campo, com as crianças chamando o Superman.
Aquilo, pra mim, é uma das melhores representações do mito em décadas. É o tipo
de momento que explica porque esse personagem sobrevive a todas as crises: o
Superman é o reflexo da fé que a gente gostaria de ainda ter — a de que alguém
vai aparecer quando o mundo estiver prestes a desabar.
Essa ideia sempre me remeteu a
uma fase criticada dos quadrinhos, a do J. Michael Straczynski. Nela, o
Superman ouve o pedido de uma criança que apanha do pai e decide ir até lá,
ajudar. Muita gente achou melodramático, mas pra mim aquilo é o Superman em
essência: o redentor que não prega, só age. Há algo de quase cristão nessa
figura — o deus que desce pra lembrar que humanidade não é fraqueza, é escolha.
É o oposto do discurso cínico de Kill Bill, que dizia que o Superman
despreza os humanos. O verdadeiro Superman é o contrário: ele se sente humano
demais.
O elenco secundário do filme é
irregular. O Senhor Incrível é um achado — carismático, engraçado e humano na
medida certa. O Guy Gardner ficou apagado, como se o Gunn não soubesse o que
fazer com ele. Já a Mulher-Gavião me decepcionou mais. Eu cresci adorando a
versão da série Liga da Justiça, e era ela, não a Mulher-Maravilha, a
personagem que mais me fascinava. Ela tinha uma fúria bonita, um senso de honra
misturado com culpa. Aqui, ela parece só mais uma peça de tabuleiro. Falta o
tempero, o conflito, a alma.
Mas o Lex Luthor… esse sim é o
grande acerto. O melhor que já vi desde o das animações da Liga da Justiça.
Ele é o vilão como vilão deve ser: inteligente, manipulador, cruel e, o mais
importante, carismático. O Gunn entendeu que um vilão não precisa de trauma pra
ser fascinante. O Lex não quer empatia — quer poder. E ver um filme ter coragem
de apresentar um antagonista assim, sem medo de ser “moralmente incorreto”, já
é um respiro no meio da pasteurização atual. O único deslize é o final, quando
o Superman o humilha fisicamente. É catártico, mas fácil demais. Um vilão como
o Lex não deve ser esmagado — deve continuar assombrando. Ele é a sombra eterna
do herói, o lembrete de que o poder sempre será tentado pela vaidade.
No fim, fico dividida. O Superman
do Gunn tem coração, mas não tem o peso do Superman anterior. O Cavill
carregava o fardo do personagem — o Gunn tenta aliviar esse fardo com esperança
e cor. São visões diferentes de uma mesma ideia, e talvez eu ainda prefira o
conflito. O público, como sempre, divide-se entre os que rejeitam o novo e os
que fingem que o antigo nunca prestou. Mas pra mim, nenhum dos dois está
errado: o Superman é o espelho da sociedade que o observa. E em qualquer época,
um homem com tanto poder jamais será realmente compreendido. Ele sempre será
visto como deus ou ameaça, nunca como homem.
Até o Krypto é encantador, mas
previsível. Ele é o toque de humor e ternura que o Gunn sabe entregar de olhos
fechados — bonito, mas calculado. Esse é o problema maior do filme: antes de
ser um filme do Superman, ele é um filme do James Gunn. Divertido, colorido,
bem-intencionado, mas previsível como um jogo de mundo aberto. Você sabe
exatamente onde pode ir e o que vai encontrar. Ainda assim, entre os três
filmes que comentei, esse talvez seja o que mais aponta para um caminho de
volta. Não porque ele acerta tudo, mas porque, pela primeira vez em anos, o
Superman pareceu acreditar de novo. E isso, em tempos tão cínicos, já é um
pequeno milagre.
No fim das contas, talvez o que esses três filmes mostrem — The Batman, Quarteto Fantástico e Superman — é que o gênero ainda está tentando se reencontrar. São obras com acertos e tropeços, mas que, ao menos, tentam algo diferente dentro de um terreno já saturado. Eu realmente gostei de Deadpool & Wolverine, mas ele brilha justamente por ser exceção. Se virar regra, perde o encanto.
Watchmen só é Watchmen porque desconstrói algo que havia sido bem construído; quando tudo tenta ser desconstrução, nada mais se sustenta. O mesmo vale para Reino do Amanhã, que brilhou nos anos 90 por resgatar o sagrado dentro do que já estava banalizado.
Então eu deixo a pergunta pra vocês: desses filmes, qual vocês acham que mais aponta um caminho de volta? Ou há outro que ficou de fora e, pra vocês, representa o verdadeiro renascimento do cinema de heróis? Quero ler o que cada um de vocês tem a dizer — porque talvez o retorno não esteja nos filmes em si, mas na forma como a gente ainda se importa em discutir o que eles significam.




