Pendurando o Apagador



Cinquenta anos de sala de aula. Vinte e oito e meio como professor, vinte e cinco só de escola pública.

Ninguém que exerça uma mesma profissão durante tanto tempo chega a essa altura da vida com grandes esperanças ou animações para com seu ofício - senão frustrações. Mesmo que seja um ofício respeitado, um serviço buscado e requisitado por quem dele prescinde.

Um médico não consulta e trata quem não quer ser curado, ninguém é obrigado a ir a um médico, quando o fazem, querem estar lá, serão todos ouvidos e gratidão a ele, mesmo que o desgraçado atrase umas duas horas, como é de praxe, pelo menos no Brasil, entre os integrantes dessa máfia branca. O mesmo vale para quem busca os préstimos de um advogado, de um engenheiro, de um decorador, de um pedreiro, de um eletricista, de um farmacêutico, de um pintor de paredes, de uma costureira.
Mesmo a esses, depois de anos e anos em suas ocupações laborais, duvido que não os acometam o fastio e o marasmo profissional.

O que dizer, então, de uma profissão que, praticamente, ninguém buscaria, pelo menos no Brasil, se lhe fosse dada tal opção? O que dizer, então, de uma profissão que se impõe por lei, um profissional cujo serviço você tenha que receber sem que ele corresponda minimamente às suas necessidades, ou ao que você julga ser as suas necessidades, o que, na prática, dá na mesma?




Seria o médico querer lhe remover o apêndice sem que o seu vestigial órgão esteja infeccionado. Querer meter-lhe o dedo no cu sem que você esteja com problemas na próstata, querer operar sua fimose mesmo você sendo mulher (se bem que hoje em dia...).

Atualmente, e já há umas quase duas décadas, essa profissão de que falo, menos útil e requisitada que a de um cara que desentope privadas, é a de professor, sobretudo o de escola pública.

Essa atual geração - e também as duas que a precederam - desinteressou-se por completo dos serviços que a escola pública tem para lhe ofertar. O porquê disso? Já pensei muito sobre e, hoje, sinceramente, pouco me importa, pouco se me dá, uma vez que é um quadro irreversível, terminal.

Noventa por cento do alunado não vê sentido em se sentar diariamente, por sete aulas, nos bancos escolares. Sinceramente? Nem eu mais vejo. Estão ali por interesses governamentais de propaganda política, para servirem de estatísticas, por força de uma lei que levaria seus pais ou responsáveis às barras de um tribunal caso deixassem seus rebentos evadirem-se da escola e irem cuidar da vida e de seus interesses (estudar não é para todos), para suas famílias receberem os mais diversas esmolas governamentais por terem seus filhos matriculados. Menos por interesse. Ainda menos para aprender.

Assim, o aluno conversa o tempo todo, senta-se de costas para o professor, come em sala de aula, faz as unhas em sala de aula, telefona em sala de aula, namora em sala de aula, ouve música em sala de aula, joga em seu celular em sala de aula, grava vídeos do Tik Tok nos corredores da escola. O aluno odeia a escola. Ele odeia os professores.




Retomando : se mesmo sobre profissionais prestigiados e requisitados pela população, volta e meia, se abatem o enfado e a frustração, o que dizer, pois, de  um profissional odiado, desvalorizado moral, social e financeiramente pelos governos e, sobretudo, pela própria sociedade? De um profissional que é persona non grata em seu próprio ambiente de trabalho, um indesejado entre aqueles aos quais, um dia, se dispôs a orientar?

O sujeito não aguenta. Quebra. Surta. Como eu surtei no ano passado. Vi-me numa situação nunca antes imaginada, a de estar frente a uma psiquiatra a prescrever-me medicação tarja preta e a emitir meu atestado de desequilibrado mental. Isso completou já um ano e continuo a me medicar desde então. Paliativo que também não opera nenhum milagre. Ajuda, sim, é bem verdade, mas não resolve, e mesmo com eles continuo a ter meus médios e baixos.

Paralelo ao tratamento, decidi que deveria começar a mexer meus pauzinhos para tentar sair da sala de aula, ambiente hostil, insalubre e foco principal de meu desequilíbrio. A questão é que meu pauzinho, além de torto, é curto. De curto alcance. Nunca tive uma rede de relacionamentos profissionais. Mais ranzinza e antissocial que o Urtigão e há vinte e tantos anos no serviço público, é possível dizer que não tenho nenhum contato que pudesse ajudar a me recolocar profissionalmente, ainda mais passado dos cinquenta que estou. Não conheço praticamente ninguém. Praticamente...




Acorri às duas únicas opções que se me aventaram. Primeiro, voltei à faculdade em que me formei, lugar que, entre trabalhar e estudar, eu fiquei por quase 10 anos, ou seja, fui falar com pessoas que me conheceram tanto como funcionário quanto como aluno, exemplares nos dois casos. Tenho que pedir emprego para quem conhece minha capacidade e comprometimento. Fui tentar um serviço de técnico de laboratório. O bom e velho Omar, como de costume, recebeu-me muito bem, falamos dos tempos passados para quebrar o gelo e eu lhe contei da minha situação. Levou-me ao responsável pelo setor dos técnicos, o cara já conversou comigo, fez meio que uma entrevista, deixei um currículo com ele e obtive a promessa de que ele entraria em contato quando precisasse compor ou recompor seu quadro. Até hoje nada; mas eu tinha que tentar, até para ter a iliusão de que eu estava me mexendo - esperneando, na verdade.

Depois, fui à Diretoria de Ensino, falar com uma ex-diretora minha, que hoje é supervisora, tentar um afastamento da sala de aula para alguma função burocrática, conheço alguns professores a quem foi dada essa dádiva. Naquele momento, nem previsão de uma possibilidade, mas deixou anotado meu pedido.

Pois bem, eu já estava a me conformar - a pelo menos tentar - com minha sina de odiado, quando, no início de abril, a minha ex-diretora me liga e diz que surgira uma vaga no departamento financeiro da DE, que precisavam de alguém responsável, comprometido e que estivesse disposto a aprender o serviço. Perguntou se me interessava. Nem pensei, foi ato reflexo, respondi-lhe com um sonoro e tonitruante SIM. Claro que eu queria. Começaram, pois, os morosos trâmites burocráticos.

Então, na sexta-passada (26/04), o pessoal do RH da Diretoria entra em contato comigo e diz que eu começaria já na segunda-feira (29/04) em minhas novas funções, quiçá em minha nova vida. Não fiquei radiante, esfuziante, porque, primeiro, isso é coisa de viado, e, depois, porque nunca fiquei radiante por nada, é do meu temperamento. Mas fiquei muito contente, satisfeito, talvez até esperançoso.

Quando algumas pessoas mais próximas a mim ficaram sabendo, alegraram-se por mim, mas também externaram certas preocupações. Eu não teria receio de sair de minha zona de conforto, medo de que não pudesse dar certo em minhas novas atribuições? Ora, porra, quem, hoje em dia, de posse de suas plenas faculdades mentais é capaz de sugerir, de meramente sugerir, que sala de aula de escola pública possa ser uma zona de conforto? Zona de conforto é a casa da luz vermelha, a casa da dona Jacutinga. Sala de aula é zona de conflito, de guerra. 

Bem verdade também, é dito popularmente, que cachorro velho não aprende truques novos. Depende... não aprende se os truques velhos ainda lhe servirem e se prestarem à sua sobrevivência; os meus truques velhos estavam me matando. Claro que eu vou aprender o que for preciso, vou fazer dar certo, tenho do meu lado a força impulsionadora mais poderosa do universo, o desespero. Faço o que for preciso para não voltar à sala de aula.

Lembro de uma vez, isso foi lá por 2004, 2005, eu estava numa atribuição de aulas, conversando com um grupo de velhos professores enquanto esperava a minha vez e passou por nós um conhecido e boa praça supervisor. Um dos professores falou pra ele, e aí fulano, quando vai voltar pra sala de aula? O cara respondeu, eu lavo os banheiros da Diretoria se for preciso, mas não volto pra sala de aula de jeito nenhum. Na época, pareceu-me um tanto quanto exagerado. Hoje, compreendo-o totalmente. E estou disposto ao mesmo que ele estava.




Também me perguntaram se eu não me ressentiria de largar uma atividade dinâmica e interativa por uma totalmente burocrática e repetitiva. Primeiro que dinâmica e interativa são os nomes das bolas do meu saco. Atividade conflituosa, isso sim. Depois, burocrático é, sim, repetição. Não vejo nada de enfadonho na repetição, desde que ela produza os resultados desejados. Tenho TOC, gosto da repetição. Sou bom em repetição. Menos na cama, que aí estou uma lástima.

Outros ainda perguntaram se eu não sentirei falta do convívio com as pessoas, falta de gente. Aí é que eu gargalho até arrebentar as pregas do cu.

Terei algumas "desvantagens". Passo a trabalhar 40 horas/relógio (de sessenta minutos) e não mais 40 horas/aula (de cinquenta minutos), o que dará uma diferença de quase 7 horas trabalhadas e, inicialmente, continuarei com o mesmo salário, a receber pela minha jornada integral de professor. Deixo também de ter os recessos escolares, passo a ser um trabalhador "comum", com direito a trinta dias de férias ao ano. Mas nada disso, para mim, é prejuízo. Pelo contrário, só de trabalhar num ambiente de um silêncio sepulcral, climatizado, com tranquilidade para executar minhas tarefas, só de não ser agredido e desprezado diariamente pela escória moral, só de não ser olhado com cara de bosta por uma turba de caras de bosta, para mim, é um bônus, é um adicional salarial.

Comecei, portanto, há dois dias. Dois dias sem brigas, sem atritos, sem ter que chamar atenção de ninguém, sem ter que elevar a voz (na verdade, sem quase nem ter que falar nada). Sei que, com o tempo, as aporrinhações e os dissabores aparecerão, afinal, se trabalho fosse bom, assim não seria chamado. Vamos ver como as coisas seguirão seu curso daqui pra frente. De qualquer forma, estou mais aliviado, sem quase nada da ansiedade que se deitava e se levantava comigo.

Um novo começo? Como bom ateu, digo : Deus me livre. Quem, em sã consciência, passado dos cinquenta anos e já a bater nos sessenta, quereria um novo começo, passar por tudo de novo? Nem fodendo.
Espero que seja, sim, um novo fim.

Abaixo, a única recordação que guardarei de meus anos como professor, uma espécie de troféu, comenda, medalha, sei lá. Um apagador que me acompanhou de 2003 a 2019; depois da pandemia, vieram os impessoais quadros brancos (será que quadro negro é tido como racista hoje em dia?) e os pincéis atômicos à tinta. Pirografei meu nome e minha disciplina nele, mas não usando um pirógrafo tradicional, um pirógrafo nutella, leite com pera. Pirografei-o feito macho das antigas, quase que como um neandertal. Cada ponto de queimado foi feito com lente de aumento e um sol de rachar mamona.





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