O MITO DE JAN VOJIK - Capítulos 5 e 6

 


Capítulos 1 e 2 podem ser lidos AQUI.

 Capítulos 3 e 4 podem ser lidos AQUI.

CAPÍTULO 5



A casa de Jan era bem modesta, mas muito aconchegante. Aparentemente ele vivia sozinho, não havia sinais de nenhuma outra presença ali, nem de crianças nem de alguma esposa ou companheira. Mike certamente tinha muitas perguntas para fazer, mas achava que ainda era cedo demais pra iniciar qualquer tipo de questionamento, achou mais prudente esperar para que naturalmente fosse entendendo todo o contexto em que estava inserido, como se fosse um grande quebra-cabeça.
Para sua surpresa na parte dos fundos do terreno, havia um ringue montado a céu aberto, e as árvores do terreno serviam como teto e sombra para o local. Mike ficou admirado com aquela visão: nunca tinha visto um ringue montado naquele tipo de paisagem. Depois do estranhamento inicial, ele ficou alguns minutos admirando todo o quadro que se colocava sob sua vista.
Ao ver a admiração do jovem, Jan colocou a mão no ombro de Tyson de maneira amigável e falou:


-Eu gosto muito dessa parte da casa Mike, é talvez a minha preferida. Me agrada a maneira como o ringue harmoniza com a vegetação. Talvez seja um pouco estranho, mas ao olhar para isso, sinto que funciona como uma metáfora, como o ringue simboliza a luta, me faz lembrar que os seres humanos lutaram e lutam desde que estão nesse planeta. Lutaram contra as dificuldades impostas pela natureza, lutaram pela sua sobrevivência, lutaram para proteger suas famílias, tribos e clãs, e aquela que talvez seja a maior luta que um ser humano pode ter: a luta contra si mesmo e contra seus demônios internos. O que acha disso Mike?

- Eu nunca parei pra pensar nisso, Jan. É bem filosófico pra mim, encarar as coisas dessa maneira. Mas acho que tenho que concordar com você. Lutar é da natureza humana. E sei que o momento em que me sinto mais vivo, mais energizado é quando estou em cima de um ringue.


Ao olhar o ringue com mais atenção, Tyson percebeu que também haviam pedras, de tamanho médio em torno de todo o ringue, formando um círculo ao redor do quadrilátero. Para ele isso foi ainda mais esquisito do que ver um ringue debaixo das árvores. Como Jan tinha sido bem amável até aquele momento, achou que seria uma boa oportunidade para começar a saciar sua enorme curiosidade.

-Porque tantas pedras Jan? Lá na entrada do terreno e aqui em volta do ringue? Isso tem algum significado?


- Com certeza tem significado sim Mike. Mas por ora, qualquer explicação pra isso ainda seria precoce, mas para não te deixar sem resposta, perceba que aqui, encontramos todos os elementos da natureza reunidos: a vegetação, a terra que está sob nossos pés, o ar puro que respiramos no alto dessa colina, e se puder prestar atenção, lá no fundo do terreno, verá que é a nascente de um córrego que desce pelas costas dessa colina. E você também deve ter percebido muitos resquícios de fogueira por aqui. Então, é a forma que encontrei para poder estar o mais próximo possível desses elementos que a sabedoria antiga chamava de "primordiais", o fogo, a água, a terra, os minerais e o ar. Eles são importantes na vida de qualquer ser humano, e serão indispensáveis pro trabalho que podemos realizar aqui.
Tyson então resolveu aproveitar a deixa pra fazer mais uma pergunta:

- E que tipo de trabalho vamos fazer aqui Jan? Cus me deixou meio que no "escuro", eu ainda não sei bem o que faremos.

- Ora Mike- Jan fez uma pausa, abriu um sorriso e prosseguiu- nós vamos boxear. Mas será de uma maneira um pouco diferente da que você está acostumado. E começaremos quando você quiser, quando se sentir à vontade.


A resposta não o satisfez. Mas o deixou surpreso porque não esperava ter todo esse tipo de liberdade da parte de Jan. Na realidade Mike esperava por algum de tipo de treinador linha dura e autoritário, e Jan não se parecia nem um pouco com isso.


CAPÍTULO 6




Apesar de não estar com nenhuma vontade de boxear, Mike achou que seria indelicado de sua parte não  começar a treinar, e assim disse a Jan:

- Ok Jan, podemos subir no ringue e começar os trabalhos?
Jan esperou um pouco, fitou Mike nos olhos e disse com toda sua gentileza:
- Até podemos Mike, mas seja sincero comigo. Você realmente quer? Se for só pra me agradar ou se acha que deve fazer isso porque acredita que tem que ser respeitoso com o meu tempo, pode ficar tranquilo. Só subiremos naquele ringue quando seu sangue estiver fervendo. E sei que isso não está acontecendo com você, nesse momento.

Mais uma vez, Mike se surpreendia com Jan. Ele deixou transparecer um certo alívio, e começava a ficar mais à vontade naquele lugar.

- Me diga Mike- Jan agora se encarregava de delicadamente conduzir Tyson pelo ombro a fim de sair de perto do ringue e foram se encaminhando para dentro da casa- O que você quer realmente fazer agora? Quero se seja o mais honesto e sincero comigo enquanto estiver aqui.

-Bom, Jan, pode parecer estranho, mas apesar de realmente eu não estar disposto mentalmente para boxear, eu gostaria de conversar sobre boxe com você. Trocar ideias, experiências. Tem algo que eu gosto muito de fazer com o Cus, mas que não sei se seria possível aqui. Cus e eu adoramos assistir algumas lutas antigas enquanto vamos comentando sobre as técnicas que vemos, e o que poderíamos fazer diferente, caso eu estivesse lá.
- Ótimo Mike. Eu tenho um pequeno acervo aqui comigo, claro que não é vasto como o de Cus, mas tem muita coisa boa. Podemos escolher algumas fitas pra assistir e aí vamos conversando, pode ser?


- Puxa sim!! Eu adoraria. Tyson achou que essa seria uma boa forma pra conhecer mais sobre esse homem que seria responsável pelo seu treinamento nos próximos dias (?) ou semanas. E também porque ele realmente estava ávido para assistir boas lutas e dessa forma nutrir um pouco o seu cérebro. Tyson era um fanático pelos grandes pugilistas do passado. Passava incontáveis horas assistindo as lutas e lendo as biografias desses grandes atletas.


Se dirigiram para a sala, onde Jan abriu um grande baú, onde ficava guardado seu acervo de fitas com as lutas.

- Aqui está Mike. Escolha uma. Estão ordenadas por ano.

Tyson começou a examinar o acervo, e depois de alguns minutos, fez a sua escolha.

-Aqui está Jan, vamos assistir essa.
A luta que Tyson selecionou foi Muhammad Ali versus Ron Lyle, luta que ocorreu na década de 70.

-Boa escolha Mike. Vai ser um ótimo passatempo.

Colocaram a fita no videocassete e assim que começou Jan perguntou a Tyson:

- Você já deve ter conhecido o Ali não é? Cus certamente já o apresentou.

- Sim. Já tive esse privilégio. Ali é incrível.

- E o que você acha da sua técnica? Na realidade podemos dizer que a carreira de Ali se dividiu em 2 momentos: antes e depois do exílio. O Ali que começou a carreira nos anos 60 é muito diferente do Ali pós-exílio. Qual você prefere?

- Hum.... Não sei Jan. Ele fez grandes lutas nesses dois momentos. Mas acho que o Ali antes do exílio, era mais...artístico. Mais gracioso, se assim podemos dizer. E você? O que prefere?

- Definitivamente prefiro o Ali pós-exílio.* (1)  Ele precisou se reinventar, já que perdera boa parte da sua velocidade nos pés. E teve que aprender a tomar muita pancada. Dessa forma suas lutas ficaram mais empolgantes. Tinha mais troca franca de golpes. Além disso, ele também usava mais a inteligência. Lutava com muita estratégia. Sua luta contra George Foreman é a maior prova disso. E vamos ser sinceros, muitas de suas lutas na juventude eram bem "monótonas”, lembra quando ele lutou contra Patterson e Terrell? Minha nossa, eu acho que só assisti aquelas lutas uma única vez, e se tentar rever isso hoje, é bem provável que eu pegue no sono.

-Ah, sim isso é verdade. Por isso tudo que você falou, é que eu admiro ele. Uma carreira longeva, em alto nível e se reinventado pra poder continuar no topo.

- Mas ao mesmo tempo que eu digo isso Mike, confesso que também me sinto um pouco mal, pois acho que ele pagou um preço muito alto justamente pra ficar nesse topo durante tanto tempo. Não sei se isso foi prudente da parte dele.

-O que quer dizer Jan?

- Veja bem Mike, ninguém fica impune levando tanta pancada passivamente como ele tomou. O corpo cobra um preço, já dá pra ver nos últimos meses, nessas aparições dele na TV, que as sequelas estão ficando cada vez mais à mostra. Sabe-se lá o que vai acontecer com ele no futuro.


Tyson ficou pensativo. Realmente, desde a luta dele contra Larry Holmes, Ali já dava mostras de debilidade física. Na época ele alegou que havia tomado um medicamento que havia comprometido seus reflexos. Mas nas suas últimas entrevistas, e até o modo de andar, eram um indicativo de que sua saúde estava comprometida.

- Será que isso vale a pena Jan? O que você acha?

- O que eu acho Mike? Não sei, sinceramente. Só o próprio Ali pode dizer. E a carreira dele acabou há apenas alguns anos, então mais pra frente a história se encarregará de fazer uma melhor avaliação disso. Cada campeão escreveu a sua história, de maneira única, mas só alguns poucos figuram eternamente na lembrança dos fãs, geração após geração alguns sempre serão lembrados como grandes, outros apenas citados, às vezes, em notas de rodapé. E Ali estará nesse primeiro grupo justamente por todo o conjunto de sua obra, inclusive por ter sacrificado a própria saúde. Então, isso acaba garantindo sua imortalidade no Panteão do boxe. E você Mike? Já pensou em qual será a sua história?

- Ora Jan, eu nem sou profissional ainda....

- Mas Cus o está preparando para ser um campeão, não é? Há quanto tempo você ouve isso dele?

- Bom, há uns 5 anos, desde o primeiro dia que nos conhecemos.

- Então Mike. Não há dúvidas sobre isso. O caminho foi bem traçado, mas cabe a você desde agora, decidir que tipo de campeão será. Como gostaria de ser lembrado pelo público, pelas fãs, pela imprensa. O próprio Ali quando começou no boxe aos 12 anos de idade, já falava aos 4 cantos que seria o “Maior”*(2) da história. Você não acha que se ele não tivesse isso tão claro em sua mente, faria todos os sacrifícios que acabamos de falar aqui? Por isso que eu disse que só ele poderia pesar se valeu a pena tudo o que fez pra se manter no topo durante tanto tempo.

Tyson ficou pensativo. Não dava sinais de que iria falar alguma coisa. Vendo que ele estava mudo, Jan continuou:

- Talvez agora, nesse exato momento, você esteja até duvidando de si mesmo. Pode ser que tenha perdido a perspectiva das coisas, da sua carreira, já que o sonho olímpico escapou das suas mãos. Isso é compreensível, mas ao mesmo tempo não anula nada do que já foi feito até aqui. Você e Cus realizaram um trabalho incrível. Cus é um gênio e você é um prodígio. Tudo vai dar certo. Só não aconteceu exatamente da forma como planejaram, mas isso não significa que você deva jogar tudo pro alto. Pense em Ali, no momento em que teve sua licença de boxeador suspensa, por se recusar a servir na Guerra do Vietnã. Ficou sem perspectiva alguma de voltar a boxear. 3 anos e meio de inatividade. E aqueles seriam seus três melhores anos, em que ele estaria no ápice das suas qualidades físicas. E isso simplesmente foi roubado dele. Mas assim que teve a chance, ele retornou. Muitos não acreditavam que ele seria competitivo, mas Ali não só voltou como foi campeão mundial 2 vezes!! Isso só foi possível porque ele sabia qual era a sua história. Ser o "Maior" de todos.

Após ouvir essas palavras, Mike ficou ainda mais absorto. Cada vez mais introspectivo. Vendo que o terreno estava fértil para suas palavras, Jan emendou:

- Quero te passar uma tarefa Mike. Podemos dizer que é o início do seu treinamento sob a minha supervisão. Quero que vá pra o seu quarto, e se coloque no lugar de Ali. Pense que agora você é ele, e que acabou de receber a notícia de que não pode mais boxear. Sem nenhuma perspectiva de volta. Sei que Cus te ensinou alguns exercícios de relaxamento, antes das sessões de hipnose* (3) que costuma fazer com você. Então, realize esses exercícios, e após estar bem relaxado, imagine que agora você é Muhammad Ali, com a licença para boxear suspensa. E lembre-se: Muhammad Ali sempre afirmou que era o "Maior" de todos. Faça isso, durma com esse pensamento. E amanhã voltamos a conversar.

 

NOTAS:

1-               Muhammad Ali e o exílio: Em fevereiro de 1966, (quando era o campeão mundial dos Pesados) Ali recusou a se alistar nas forças armadas, em pleno período de convocação de recrutas para servir na Guerra do Vietnã. A recusa sistemática de Ali em servir as forças armadas atingiu seu ápice, e ele foi destituído de seus cinturões. Também sua licença para boxear foi suspensa, assim como seu passaporte.  Ele foi condenado por evasão em 20 de junho de 1967 e sentenciado a cinco anos de prisão e multa de US $ 10.000. Ele pagou uma fiança e permaneceu livre enquanto apelava do veredicto. Como resultado, ele não lutou de março de 1967 a outubro de 1970 - dos 25 aos 29 anos -, pois seu caso avançou no processo de apelação antes que sua condenação fosse anulada em 1971. Durante esse período de inatividade, como a oposição à A Guerra do Vietnã começou a crescer, a posição de Ali ganhou simpatia, ele falou em faculdades de todo o país, criticando a Guerra do Vietnã e defendendo o orgulho afro-americano e a justiça racial.

 

2-               Muhammad Ali,”The Greastest”: Ali se autodenominou como “The Greatest”, que numa tradução para o português pode ser entendido como “O Melhor” ou “O Maior”.

 

 

3-               Cus D’amato e a hipnose: quando Tyson tinha 15 anos, Cus começou a levá-lo num hipnoterapeuta. Lá ele colocava Mike num estado de profundo relaxamento e em seguida falava frases do tipo “Você será o maior pugilista da história”, “Você tem um soco de direita devastador”. Posteriormente, Cus replicava esses exercícios em casa, e Mike também aprendeu a técnica a fim de ele próprio conseguir relaxar e fazer essas afirmações para si próprio.

Continua...

 


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