Kamen Rider Black - Uma peça sombria do tokusatsu



Nunca escondi que sempre fui um grande fã de tokusatsu, as famosas séries de heróis japoneses. No entanto, na “nerdsfera” ou “geeksfera”, a “tokusfera” hoje em dia é o cocô do cavalo do bandido, ficando vários degraus abaixo da “fanboysfera” ou da “otakusfera”. Curioso porque hoje em dia é legal gostar de super-heróis da Marvel e DC, até mesmo entre a common people, mas heróis de tokusatsu são bregas e para crianças e nerds bobões, como até há relativamente pouco tempo atrás os heróis ocidentais também eram.  




Kamen Rider Black é meu tokusatsu favorito, e há uns poucos anos atrás tinha reassistido à série inteira. A série está sim datada, mas ainda é excelente. Entra fácil no top 5 de melhores Kamen Rider de todos os tempos, e olha que estou incluindo nesse top os Kamen Riders da Era Heisei, mais recentes. Até o design do Kamen Rider Black é mais atual. Foi o primeiro Kamen Rider sem o cachecol cafona. Na verdade, Kamen Rider Black, produzida em 1987, foi uma tentativa de reboot da franquia Kamen Rider, mas que não foi muito bem-sucedida.






Na trama, Kotaro Minami (no Brasil, o personagem foi nomeado como Isamu Minami), interpretado por Tetsuo Kurata, e seu irmão adotivo, Nobuhiko, são sequestrados pela organização Gorgom em seu aniversário de 19 anos. Eles são transformados em dois ciborgues, Black Sun e Shadow Moon, a fim de que se tornem os Reis do Século XX. Em ambos, é implantada a King Stone, a joia secular que permite seus poderes. Entretanto, Kotaro consegue escapar enquanto Nobuhiko fica no casulo. Depois de um confronto com os três sacerdotes Gorgom, Darom, Bishium e Baraom, Kotaro transforma-se em Kamen Rider Black. A transformação de Kotaro em Black eleva o conceito de “humano modificado”, que o criador da franquia, Shotaro Ishinomori, estabeleceu a um novo nível. Os outros Kamen Riders, com exceção de Kamen Rider Amazon, que é mutante, eram todos ciborgues. Kamen Rider Black fica no meio termo entre o ciborgue e o ser orgânico. Tem até uma forma larval que aparece apenas na primeira transformação de Kotaro em Black.





Após escapar dos sacerdotes Gorgom, Kotaro encara seu pai adotivo, o professor Soichiro Akikuzi, que admite fazer parte da organização. Kotaro e Nobuhiko nasceram em um dia de eclipse solar, e por isso estavam destinados a tornarem-se os Reis do Século XX pela Gorgom. O professor Akikuzi ainda diz que os pais de Kotaro também eram membros da Gorgom e foram assassinados pela organização. Logo em seguida, o professor é assassinado pelos monstros mutantes aranhas de Gorgom, e Kotaro transforma-se em Kamen Rider Black, dando um fim nos bichos. Uma curiosidade: tal qual o primeiro Kamen Rider de 1971, os dois primeiros monstros que Kamen Rider Black enfrenta são os monstros mutantes aranhas e o Monstro Mutante Morcego.




As duas personagens coadjuvantes da série são a irmã e a namorada de Nobuhiko, Kyoko e Katsumi, interpretadas por Akemi Inoue e Ayumi Taguchi, respectivamente. Kyoko tem um brother complex com Nobuhiko que beira o incesto. Kotaro tem uma relação afetiva tanto com Kyoko quanto com Katsumi, mas não tem envolvimento com nenhuma das duas porque esses protagonistas de tokusatsu não costumam pegar ninguém mesmo, a não ser em Kamen Rider Black RX, quando Kotaro enfim arranja uma namorada (e um emprego também, diga-se de passagem). Depois que seu pai é assassinado, Kyoko larga a escola e vai trabalhar com Katsumi em um bar. Não sei o que aconteceu com as atrizes de Kyoto e Katsumi. É bem possível que tenham casado e abandonado a carreira artística, coisa bem comum no Japão. Kotaro interage com as duas e de vez quando aparece no bar, mas geralmente fica andando de moto pela cidade o tempo todo, sem fazer nada, a não ser quando algum monstro mutante de Gorgom surge na cidade, causando problemas. Nessa primeira fase, a moto do Kamen Rider Black é a Battle Hopper, uma moto que na verdade possui inteligência e até se regenera e "morre". Depois, um engenheiro mecânico que Kotaro ajuda faz outra moto para ele, a Road Sector. Dá a entender que Kotaro não tem casa e dorme em uma garagem, com as duas motos, mas sua moto civil é uma Suzuki, em um marketing descarado da marca.




Na primeira fase da série, Kamen Rider Black enfrenta a Gorgom que se infiltrou na sociedade humana. Alguns de seus membros são pessoas influentes, como o dr. Kuromatsu (interpretado por Susumo Kurobe, o ator que fez o Hayata em Ultraman!), que fazia experimentos com humanos e é depois morto pelos sacerdotes da Gorgom. Na segunda fase, o guerreiro Birugenia (também chamado de Taurus no Brasil) é despertado e torna-se o principal antagonista de Black, chegando a quase matar o herói várias vezes. Birugenia também nasceu em um dia de eclipse solar e acreditava que deveria ser o Rei do Século XX. Para mim, esse é o melhor vilão da série, que inclusive desafiava os sacerdotes da Gorgom pela liderança. Em determinado momento, Birugenia obtém o terrível Sabre Satã, tornando-se ainda mais perigoso. A trilha sonora instrumental a base de violinos bem sinistra que anunciava quando o vilão aparecia merece destaque também. Na terceira fase, Nobuhiko ressuscita como Shadow Moon, mata Birugenia e toma a liderança da Gorgom. Os três sacerdotes transformam-se nos três grandes mutantes.

Kamen Rider Black pode ser classificada como uma série de tokusatsu "quase adulta", que forçava a classificação indicativa no Japão. Lembrando que essa classificação no país na época era mais frouxa que a brasileira ou até a mesmo a norte-americana, permitindo mais violência e uma atmosfera mais pesada. Porém, a despeito disso, Kamen Rider Black é sim uma série para crianças. No fim das contas, o “quase adulto” não é “adulto” e está sob o escrutínio da classificação indicativa. Costumam dizer a mesma coisa da série animada do Batman, que é “adulta”, quando na realidade nunca foi e sempre esteve na mira da classificação. Óbvio que é possível incluir elementos mais sombrios e pesados em uma série infantojuvenil e tentar “enganar” um pouco a classificação indicativa, mas sem esquecer de seu público-alvo, que são as crianças, e seu intento, que é vender brinquedos. Séries de tokusatsu são basicamente meia hora de propaganda de brinquedos. E isso também se pode dizer até dos filmes da Marvel, mas nesse caso são duas, três horas de propaganda de brinquedos, vídeogames, camisetas, mochilas, lancheiras etc. Sinto muito para quem enxerga mérito artístico, mas o capitalismo é isso aí.











                                           

Kamen Rider Black é uma série que flerta muito com o elemento do horror. Há um pouco de horror no Kamen Rider original e em Kamen Rider Amazon, mas em Black ele é muito mais presente. Tudo é bem mais sombrio e obscuro. Os monstros mutantes são bem feios e com certeza assustavam as crianças. Um episódio paradigmático é o do Monstro Mutante Cabra, que lembra as histórias de bruxaria. Outro episódio memorável é o do lobisomem. Ou o da garotinha possuída. Apesar de a série ter um tom mais sério, há um direcionamento para umas histórias mais amenas lá pela metade, em que Black sempre ajuda umas criancinhas e Kotaro é mais descontraído. Mas ele é um dos protagonistas de tokusatsu que é mais levado ao limite emocionalmente; quando surge Shadow Moon, isso é mais evidente ainda. Kamen Rider Black pode talvez não ser a série Kamen Rider mais sombria (Kamen Rider Kuuga é um pouco mais sombria e Kamen Rider Amazons é uma série adulta), mas é a série Kamen Rider mais melancólica. Há uma tristeza inerente na série, que está até no encerramento, quando há a despedida do século, "long long ago, 20 century". Shotaro Ishinomori, o criador de Kamen Rider, era adepto de teorias de Nostradamus e acreditava no fim do mundo, ao final do século XX. A reta final, com a morte do Monstro Mutante Baleia e da Battle Hopper e o confronto final com Shadow Moon, deixa o clima melancólico mais evidente ainda. Até mesmo porque Kamen Rider Black é obrigado a matar Shadow Moon e então escuta de seu irmão/inimigo que ele "nunca será feliz porque matou seu irmão Nobuhiko. Viverá em arrependimento até o fim da vida”. Black ainda tem um confronto final com o Imperador dos Gorgom, e findam-se os conflitos. No final da série, Kyoko e Katsumi vão para os Estados Unidos e deixam Kotaro sozinho com suas lembranças. Na minha opinião, é um dos finais mais tristes do tokusatsu, pareando com o final de Metalder, que também é bem triste.

 

                                            

                                            

Destaque para a trilha sonora da série, que é bem marcante, com a abertura cantada pelo próprio Tetsuo Kurata e com o encerramento com a melancólica Long Long Ago, 20 Century. Também vale lembrar a empolgante canção Black Hole Massage.



Óbvio que, após todo o sucesso de Kamen Rider Black, a Toei produziu no ano seguinte a segunda série Kamen Rider Black RX. Apesar de essa série ter suas qualidades, ela é bem mais comercial e infantil que sua predecessora. Tetsuo Kurata ainda voltou a interpretar Kamen Rider Black/Black RX em Kamen Rider Decade de 2009 e no filme Super Hero Taisen GP: Kamen Rider 3.

Também se deve mencionar o mangá de Kamen Rider Black, escrito e ilustrado por Shotaro Ishinomori. O mangá apresenta um Black bem mais monstruoso que o da série, e o enredo é mais pesado. A editora New Pop está trazendo o mangá pela primeira vez ao Brasil.

Anunciaram há pouco tempo um reboot de Kamen Rider Black, e Tetsuo Kurata deu uma declaração que repercutiu muito negativamente, dizendo que não queria mais saber de Kamen Rider e que era um ator e tal. Depois ele se desculpou com os fãs, pois deve ter notado que sua imagem deve ter ficado bem queimada. Compreendo o lado dele, pois é complicado ficar marcado por apenas um personagem. Christopher Reeve também estrelou vários filmes além dos de Superman, como Em Algum Lugar do Passado e A Cidade dos Amaldiçoados, mas todo mundo sempre lembrava dele apenas como o Homem de Aço. Hugh Jackman fez vários outros filmes, mas ele sempre será reconhecido como Wolverine. Robert Downey Jr. já tinha uma carreira antes de Homem de Ferro, mas agora ele sempre será Tony Stark etc. Há outro fator também, ao contrário do Ocidente, em que atualmente há uma infantilização do adulto e interpretar um super-herói é símbolo de status, no Japão pega meio mal um adulto admitir abertamente que gosta de tokusatsu porque lá isso é “coisa de criança”. Então, há uma certa estigmatização em atuar como herói de tokusatsu. Antigamente, esses heróis eram interpretados por dublês e depois passaram a ser feitos por modelos/atores em início de carreira. Claro que não tem problema um adulto ter bonequinhos e gostar de tokusatsu no Japão, mas desde que ele não declare isso aos quatro ventos. Também não tem problema ter uma doll, uma boneca sexual, desde que não mostre para todo mundo. No Japão, se o cara estuda, trabalha muito, paga impostos e não comete crimes, nem o governo nem ninguém enche o saco dele.

Em suma, Kamen Rider Black sempre será uma das séries mais emblemáticas da franquia Kamen Rider e dos tokusatsus em geral, e não apenas porque por muito tempo foi o único Kamen Rider a ser exibido no Brasil, na saudosa TV Manchete. Só o fato de estar sendo planejado um reboot significa que ela também foi marcante e tem algum significado para os japoneses. A conferir o que mais farão com o “Black Sun”.



 

 

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