O que Zack Snyder tem em comum com Richard Donner



Pois é, quem diria, o Snydercut está bombando, algo que ninguém acreditaria há uns dois anos atrás. Não sou um grande fã de Zack Snyder, mas tenho de admitir que ele conseguiu virar o jogo a seu favor. Pode-se dizer muita coisa a respeito de Snyder, mas uma deve ser destacada: ele foi um péssimo funcionário para a Warner.






Nem dá para negar isso. É só verificar em retrospecto como foi a Via Crúcis do Snyder no estúdio e suas ações. Ele até admitiu que filmou mais de cinquenta horas escondido, o que acho uma grande balela. Snyder também voltou sua base de fãs contra Walter Hamada, o presidente da divisão da DC na Warner, e contra Geoff Johns, que era um dos principais executivos, além de roteirista. Johns tem uma longa carreira de roteirista de HQs e filmes, tendo trabalhado principalmente para a DC Comics. Antes disso, ele foi funcionário na produtora de Richard Donner.

Basicamente, o que Snyder fez foi dividir os fãs da DC. Foi a conhecida tática de dividir e conquistar. E pior que deu certo. Já não bastava a guerrinha nas redes sociais entre marvecos e decenautas, ainda tinha uma guerrinha interna entre os próprios decenautas, entre snydetes e não snydetes. E alguns dos snydetes eram bem tóxicos. No entanto, fica a pergunta: Snyder, como um empregado da Warner, tinha direito de agir da forma que agiu? Transformar “ativos” de um estúdio e de uma editora em um projeto pessoal? Sim, porque Snyder não criou nem é o dono de Batman, Superman, Mulher-Maravilha e todo o resto da Liga da Justiça. É diferente de um projeto autoral como Matrix dos irmãos (irmãs) Wachowski e Indiana Jones de George Lucas e Steven Spielberg. E até mesmo quando existe um projeto autoral de um filme ou uma franquia, se um estúdio injeta dinheiro nele, também passa a ter direito de decisão.



Existe uma discussão se Snyder foi injustiçado ou não ao sofrer interferência da Warner. A meu ver, ele não sofreu necessariamente uma injustiça. A DC/Warner como dona dos personagens simplesmente tomou uma decisão de gestão de não mais apostar na visão criativa de Snyder e preferiu passar as rédeas para Joss Whedon, pois se decepcionou com os resultados de bilheteria de O Homem de Aço e Batman vs Superman. Está certo que um dos grandes males modernos dos estúdios de cinema é achar que todo blockbuster tem de necessariamente arrecadar mais de 1 bilhão de dólares, caso contrário é um fracasso. Acredito que a pandemia mudou isso, uma vez que pode demorar anos até que um filme volte a fazer mais de 1 bilhão.



A pandemia também ajudou Snyder. Com a AT&T precisando de conteúdo para seu serviço de streaming, o HBO Plus, a empresa passou por cima da Warner, visto que ela é dona do estúdio, e deu sinal verde para que o Snydercut renascesse das cinzas. Para piorar, o ator Ray Fisher, do Ciborgue, fez graves acusações contra Joss Whedon por assédio moral nas filmagens, e até mesmo por racismo. E ainda implicou Walter Hamada e Geoff Johns nessa. Assim, a merda foi para o ventilador e empesteou tudo com seu odor nauseabundo. Vale dizer que, apesar de estar sofrendo acusações de racismo, Johns já escreveu vários heróis da DC negros nos quadrinhos, inclusive o Ciborgue, em sua fase de roteirista dos Novos Titãs.


Entretanto, creio que podemos fazer um paralelo entre o que aconteceu com Snyder e o que também aconteceu com outro diretor, uma lenda viva do cinema, Richard Donner em sua passagem na direção do clássico Superman. Obviamente, há muitas diferenças entre os dois casos, não apenas no que diz respeito às circunstâncias, como também às épocas.

Pode até parecer engraçado, mas nos anos 70 ninguém levava o gênero de filmes de super-herói a sério. Tratava-se de um subgênero, e os parâmetros que existiam era a série dos anos 60 do Batman galhofa e camp, ou então a série pueril da Mulher-Maravilha de Lynda Carter. Filmes de super-heróis eram basicamente vistos como direcionados para crianças e bobocas, e os atores tinham medo de se queimar e prejudicar suas carreiras ao fazer esse tipo de longa, o que fazia sentido. Na verdade, se formos ver, não mudou muita coisa. Filmes de super-heróis ainda têm como público-alvo crianças e bobocas e eles ainda não são levados muito a sério. A única coisa que é levada a sério nesses filmes é o dinheiro. O resto é conversa fiada. No entanto, o gênero tornou-se o mais rentável da atualidade, e, como dizem, com dinheiro não se brinca. A despeito disso, 99% dos filmes de super-herói, tanto da Marvel como da DC e de outras editoras, são diversão escapista para vender pipoca e refrigerante. Ah, mas claro que alguém vai dizer que existem exceções, como a trilogia do Batman do Nolan ou Logan, mas são exatamente isso: exceções que comprovam a regra. E não estou dizendo que é errado os filmes de super-herói serem apenas entretenimento barato. Um dos grandes problemas para o gênero super-herói nos últimos anos foi que ele passou a ser tratado como algo de muita seriedade, e nem toda HQ ou filme de super-herói precisa ser um Watchmen da vida. O próprio Alan Moore deu uma entrevista recente desancando os filmes de super-herói e a “infantilização do homem adulto”. Muita gente ficou brava, furiosa com o Moore, mas eu concordo com ele. Tem muita coisa que discordo do Moore, principalmente no aspecto político, mas nesse caso acho que ele tem razão. E digo mais: se teve marmanjo que ficou ofendido é porque a carapuça serviu, he he.




Enfim, estou divagando. Voltando para o tema do post. Nos anos 70, filmes de super-herói era levados menos a sério do que hoje. E foi nesse clima que dois produtores e executivos de Hollywood, Alexander e Ilya Salkind, pai e filho, resolveram comprar os direitos do Superman para realizar uma adaptação cinematográfica do personagem. Para se ter uma ideia, naquela época, o Superman em live action que estava na cabeça das pessoas era o de George Reeves, da série de TV dos anos 50, bem na era Eisenhower. A Warner Bros já tinha adquirido a DC Comics naquela época, mas nem mesmo o estúdio estava interessado em produzir um filme do Superman. Foi quase um projeto independente dos Salkind. Mas pelo menos eles acertaram na escolha do diretor e contrataram Donner para o encargo, que na época estava em início de carreira e ficou famoso pelo terror A Profecia.



Os Salkind queriam que o filme do Superman tivesse um viés mais galhofa e fantasioso, típico dos quadrinhos. Donner, por sua vez, tinha uma perspectiva de buscar a verossimilhança, até onde isso fosse possível em um filme de um super-herói que poderia voar. Mas a intenção do diretor era essa mesma: tanto que a chamada comercial do filme era “você vai acreditar que o homem pode voar”. O roteiro original do filme foi escrito pelo célebre romancista Mario Puzo, autor de O Poderoso Chefão, que depois foi reescrito para ter o tom de verossimilhança que Donner queria. O ator mais famoso do longa e também chamariz era Marlon Brandon, que interpretou Jor-El de uma forma visivelmente descompromissada e embolsou 14 milhões de dólares para atuar em apenas dez minutos de filme. Essa foi uma das razões para a relacionamento turbulento que Donner teria com os Salkind.








Como Marlon Brando já tinha papado uma boa parte do orçamento do filme, o jeito foi Donner ir atrás de atores mais baratos e desconhecidos. Em um grande favorecimento da providência, um dos candidatos para o papel do Homem de Aço foi Christopher Reeve, e o resto é história. A caracterização de Reeve no personagem é tão marcante que se tornou quase que uma maldição. Nenhum ator que interpretou o Superman depois dele foi consenso. O elenco ainda contou com a também desconhecida Margot Kidder como a eterna namorada do Superman Lois Lane. Para o arqui-inimigo do herói, Donner escolheu um ator já bem famoso na época, Gene Hackman, que fez um Luthor que oscilava entra a galhofa e a ameaça. Outro veterano, Jackie Cooper, interpretou Perry White. Para Jimmy Olsen, foi escolhido outro novato, Mark McClure, que anos depois interpretou o irmão mais velho de Marty McFly em De Volta para o Futuro e ainda teve um papel de um guarda de presídio em Liga da Justiça.

À medida que as filmagens aconteciam, o estresse entre os Salkind e Donner foi aumentando e o relacionamento entre eles, se deteriorando. Não apenas por conta de diferenças criativas, pois Donner tomava decisões que não agradavam muito aos produtores e não era bem o filme que eles queriam, mas sobretudo por razões de orçamento. O filme foi ficando cada vez mais caro, estourando o estipulado. Além disso, havia os atrasos, que queimavam ainda mais o filme do diretor.

Óbvio que nunca um filme da magnitude de Superman tinha sido produzido antes. O longa exigiu um know-how de efeitos especiais inédito. Alguns desses efeitos foram inclusive criados exclusivamente para o filme, como as técnicas para fazer Christopher Reeve voar ou o uso de algas marinhas para representar as galáxias. Isso tudo em uma época em que nem se sonhava com a CG. Infelizmente, para Donner, os Salkind não compreendiam isso muito bem. E também havia a Warner na história, que estava bem incomodada com todo o dinheiro que estava indo como se tragado por um vendaval. Se você acha que Snyder sofreu com a Warner na produção de Liga da Justiça, isso é fichinha perto do estresse do Donner.

É importante mencionar que Donner filmou Superman I e II ao mesmo tempo, sem ter segurança que uma sequência seria aprovada. Isso também foi algo inédito na época; depois abriu precedente, como no caso da trilogia O Senhor dos Anéis. Quando finalmente o filme ficou pronto, havia custado 55 milhões de dólares, que era muito dinheiro na época. Superman estreou em 1978 e foi um sucesso estrondoso, tendo arrecadado ao final mais de 300 milhões de dólares em todo o mundo, o que era igualmente um montante enorme na época, considerando-se a correção da inflação e o fato de o mercado global de cinema era menor. Ninguém sonhava que filmes norte-americanos seriam consumidos na China comunista na época. No entanto, se compararmos os anos 70 com a atualidade, muito mais pessoas tinham o hábito de frequentar os cinemas.




E como os Salkind recompensaram Donner? Bom, eles o demitiram e o substituíram por Richard Lester, diretor veterano responsável por filmes como A Hard Day’s Night, com os Beatles, na sequência de Superman. Tanto que, apesar de Superman II de 1980 ter varias cenas aproveitadas do corte de Donner, ele tem a direção assinada por Lester. Apenas em 2006, a versão do diretor de Superman II realizada por Richard Donner foi lançada comercialmente.




Como saldo final, tanto Donner como os Salkind saíram na vantagem. Donner continuou sua carreira de cineasta, sendo responsável por grandes filmes como os da franquia Máquina Mortífera, O Feitiço de Áquila, Os Goonies etc. Diferentemente de Zack Snyder, Donner é um diretor eclético, que fazia filmes independentemente do gênero, fazendo essencialmente cinema. O sucesso de Superman assegurou a era Salkind no que concerne ao herói. Após Superman I e II, foram realizados Superman III e IV e Supergirl. E dá para botar Superman - O Retorno nesse pacote, pois esse ainda é o Superman dos Salkind.

Dessa forma, fica um questionamento a respeito de um ponto que Zack Snyder ou até mesmo Donner tenham em comum, que é a desobediência. Nenhum dos dois fez exatamente o que os produtores e a Warner queriam. Porém, os resultados artísticos e a qualidade foram muito díspares. Obviamente, acho Donner muito mais diretor que Snyder. Alguns podem argumentar que a comparação é injusta, mas enfim. Mas ainda há outro ponto: tendemos a tomar partido dos diretores e a vilanizar os produtores, os investidores e o estúdio, porém quem tem a primazia de investir seu rico dinheirinho em um projeto tem sua razão; afinal de contas, talvez o maior risco seja dele. E mais: no caso de personagens como Superman, Batman, Mulher-Maravilha etc., que estão por aí há oitenta anos e passaram por diversas interpretações, isso é mais delicado. Não se trata de personagens criados pelos diretores e roteiristas, mas sim de figuras icônicas que têm muitos fãs em todo o mundo; fãs que têm uma noção preconcebida de como devem ser as características de tais personagens e o que deve ou não ser feito com eles.

 

 

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