Nela, um sujeito contava suas lembranças de quando passeava pelas ruas na companhia de um tio. Ele notou que o velho tinha o costume de aproximar-se de mulheres sozinhas que vinham em sentido contrário e sussurrar-lhes alguma coisa (era espanhol, se não me engano). Não demorou muito para perceber que o tio só se aproximava de mulheres feias ou maltratadas pela vida. Curioso, perguntou o que aquilo significava. O tio então lhe explicou (Vou tentar reproduzir a fala):
– “quando jovem eu queria ser pintor, um grande pintor, para produzir belas obras de arte. Com o tempo, percebi que jamais conseguiria isso pois era muito medíocre, faltava-me talento. Assim, resolvi tentar produzir beleza de outra forma. Hoje, quando vejo uma mulher feia, desgastada, maltratada se aproximando, sei que ela jamais recebeu ou receberá um elogio por seus dotes físicos. Então, eu me aproximo dela e lhe digo “guapa” ou outro galanteio. Por uma fração de segundo, eu vejo seus olhos brilharem, eu vejo seu sonho de ser bela se concretizar. Assim, eu sinto que produzo beleza, mesmo que de forma fugaz”.
Não sei se pelo frio que fazia naquele início de manhã, pelo charme próprio da cidade, pelo clima do festival ou, mesmo, pela qualidade indiscutível do café, o fato é aquele foi o café mais saboroso que já tomei até hoje.
Quando já estávamos descendo, ele se aproximou e perguntou se seria construída uma rua ali. Respondi-lhe com todo o cuidado que, infelizmente, não. Expliquei que a inclinação do terreno, muito íngreme, inviabilizava a abertura de uma rua no local. Futuramente (não agora), seria construída uma escadaria, bla bla bla. O jovem pareceu satisfeito com a explicação e mais ainda com a atenção que dei a ele. E fez a pergunta fatal:
De imediato eu pensei em como seria lavada a xícara, pois ali não havia nada, nem água encanada nem energia elétrica, tal o isolamento da moradia. Eu poderia ter dado mil explicações e recusar, poderia dizer que estavam me esperando ou simplesmente dizer – “não, obrigado”. Aí entrou em cena o pensamento do velho espanhol narrado no primeiro caso e eu apenas disse:
- Claro que aceito!
O jovem me pediu para segui-lo até o quartinho. Com a porta aberta, eu pude ver a imagem da máxima privação. Naqueles nove metros quadrados, sem nenhuma divisória, podia-se ver uma cama de casal, um berço onde dormia um bebê de uns dois anos, uma pia, prateleiras, latas e um fogãozinho. Com um bule de café. Uma moça tão jovem quanto ele me estendeu uma xícara de café ralo e morno. Meu “anfitrião” desculpou-se pela temperatura do café e perguntou-me se eu desejava que fosse aquecido (esquentado). Disse-lhe que não precisava, que estava ótimo e que eu adorava café. Tomei o café todo, agradeci e desejei saúde e sorte para aquelas três crianças.
Descendo o morro, percebi que estava feliz (ainda que preocupado com uma possível verminose futura). Eu subira o morro apenas como engenheiro, mas descera melhor como pessoa. Naquele dia eu tive a certeza que nós dois ganháramos coisas preciosas: por ter tratado aquele jovem tão despossuído de tudo com um respeito, atenção e cortesia a que ele, provavelmente não estava acostumado, acabei também ganhando a sensação de que, afinal, eu tinha melhorado e amadurecido como pessoa, como ser humano.