Publicado originalmente em
aos 27/11/2020
"Quando estou sozinha, sinto que vou ser esmagada. Quando estou sozinha, fico confusa. Quando estou sozinha, fico perdida. 'Aquela coisa' nasce dentro da minha cabeça e vai crescendo até me devorar."
Lilico
in: pag. 228
"Tiger Lily, não faça isso. Isso não vai adiantar nada. As pessoas vão esquecer em 15 minutos. Elas só se interessam pelas mortes de quem amam. As pessoas que aparecem na TV e revistas não são amadas facilmente."
Detetive Asada em um dos delírios finais de Lilico
in: pag. 304
Título original: Herutâ sukerutâ
Período de lançamento serializado: 2005-2006 (Revista Feel Young)
Ano de lançamento do one-shot original: 2003
Editora original do one-shot: SHODENSHA Publishing Co., Ltd
Prêmios no Japão: Prêmio Cultura Osamu Tesuka 2004 e Japan Arts Media Festival 2004
Nomeada em 2008 para a Seleção Oficial de Obras Essenciais do Festival Internacional de Quadrinhos de Angouleme, França
Tradução: Denis Kei Kimura
Revisão: Débora Tasso
Edição: Caio Cezar
New Pop Editora
São Paulo/SP
2016
320 pag.
Sinopse
Após várias plásticas extensivas e manutenção rigorosa, Lilico se tornou a beleza em pessoa, se tornando uma Modelo, Atriz e Cantora de enorme sucesso. No entanto, logo seu corpo começa a reagir mal às tantas cirurgias e ela se vê em decadência física. Agora, ela é obrigada a encarar as consequências do que fez e o inevitável fim.
Inomináveis Saudações a todos vós, Realistas Leitores!
O que mais caracteriza este incomum Mangá é o seu estilo narrativo a dialogar com um assunto que é o mesmo enfocado em Fashion Beast, de Malcom McDowell, Alan Moore e Facundo Percio. Mas, se em minha resenha sobre a obra publicada aqui no blog, intitulada Fashion Beast E A Moda Da Imagem (e republicada neste blog, Ozymandias Realista), eu enfoco as rupturas externas ocasionadas pelos diversos usos da Imagem, nesta resenha da obra de Kyoko Okasaki (1963- ) enfocarei todos os danos causados pelo veneno da imagética veneração. Perturbadora, esta história se apoia em desenhos incomuns, detalhando uma despreocupação da Mangaká em passar uma visão limpa e glamourosa do Mundo Fashion e das Idols Japonesas. Perturbado, o volume único de uma bela edição da New Pop Editora apresenta um mundo onde luxúria, decadência, hipocrisia e jogos sujos se condensam para ser misturados nos ingredientes perfeitos para a descensão de um distorcido fabricado perfeito modelo de mulher. Obra doentia por excelência, é uma daquelas leituras tão indispensáveis para se compreender a mecânica dos absurdos em busca da fama que pode ser lida diversas vezes. Tal valor é somente digno de obras-primas, o que esta história é, na minha opinião de Blogueiro e rabiscador de algumas Distopias por aqui, por aí e em algum lugar fora deste também muito doentio mundo virtual gerador de mentes tão perturbadas quanto a personagem principal desta obra.
Lilico, a Supermodelo, Superatriz e Supercantora ovacionada, idolatrada, seguida, copiada e invejada da grande indústria forjadora de Deusas e Deuses Contemporâneos. Ao público, ela consegue dar sempre a imagem mais perfeita de seu mundo criado em laboratório, uma organização de truques para deixá-la ainda mais desejável junto a todos que a consomem. Uma Superstar dentro de uma sociedade que valoriza o máximo de bela aparência possível, uma tendência não somente do Japão caracterizado no Mangá, mas também aqui do Brasil e de cada país do mundo. Porque, segundo esta premissa, O Belo se sobrepõe ao Conteúdo, O Corpo determina-se maior do que o Caráter, uma boa imagem maquiada para parecer indestrutível cabe melhor do que mensagens repassadas a todos para terem choques de realidade. É Lilico a distorcida heroína robotizada de um universo podre, o da Moda modeladora de criaturas divinas e o da Mídia divulgadora de ditas criaturas como se fossem Altos Ideais para toda a Humanidade. Tudo um teatro para mascarar o pavoroso e horrendo interior de uma criatura como a Lilico se vista bem de perto, sem a fábrica de mentiras imagéticas que a põe em um altar de adoração e a cobertura midiática que joga esse altar em direção aos ajoelhadores que o cultivam com fanática devoradora devoção. Mary Shelley imaginaria tal criatura em um livro se hoje estivesse entre nós.
Nada do que nossa Frankenstein é para as massas do rebanho que veneram Seres míticos laboratorialmente pensados como ela diz acerca do Verdadeiro Ser da mesma. Lilico é um monstro que faz de tudo para estar sempre no topo, à frente do palco, no close das câmeras e nas capas de todas as revistas. Toda sua "Beleza" é o resultado das cirurgias que fez para que se tornasse perfeita, sendo a origem do material usado para modelar-lhe o corpo de uma natureza totalmente macabra, anti-ética, imoral e criminosa. Como cobaia da personagem chamada apenas de A Doutora, diretora da clínica onde ela faz as cirurgias, ela não passa de uma criatura acerebrada perfeita para todas as possibilidades de aplicações dos produtos injetados, que afetam, pouco a pouco, o panorama psíquico já bastante frágil dele. E Tada, a Empresária dela, somente a vê como um reflexo de si mesma na época de Modelo, explorando-a ao máximo como a extensão de sua morta vida como idolatrada pela massa consumidora de ídolos forjados em série sem nenhuma essência. A soma de tudo isto é uma espiral de decadência, autodestruição e fim de uma carreira que artificialmente sempre fora movimentada, alimentada e alavancada.
Não há como nutrir qualquer sentimento pela Lilico além da piedade, ela é uma pessoa desagradável, preconceituosa, agressiva, violenta e de caráter duvidoso demais para ser admirada por qualquer leitor de bom senso. Abaixo do belo sorriso e do belo rosto anatomicamente esculpido para torná-lo irreprimível, um misto de confusão, megalomania, descontrole emocional e ódio de quem atravessa-lhe o caminho são os reais conteúdos expressos por ela. Pois, ela conquistou um lugar na Terra Dos Sonhos De Efêmero Glamour e precisa manter-se como a proprietária da moradia que construiu na mesma! E suas frustrações, como o fim do namoro com um rico herdeiro, Takao Nanbu (que casou com outra), são todas descontadas na assistente dela, Hada, e no namorado desta, Oku, praticamente tornados escravos determinados a fazerem tudo por ela. Meros pobres coitados sem nenhuma personalidade, são agentes de algumas situações na narrativa que vão do ridículo ao desprezível, sempre tendo como ponto fixo a ideia de agradarem a dona deles, Lilico. Mas, Hada é fundamental para uma reviravolta geral perto do fim do Mangá, a qual não posso contar, que movimentou a direção de toda a história para um caminho inesperado. Estes dois personagens agem o tempo todo como que subjugados existencialmente pela figura dela, uma Dominatrix dos corpos, mentes e almas deles que torna a trama ainda mais bizarra e doentia.
E o único que consegue ver a Verdadeira Lilico é o Detetive Asada, responsável por investigar certas suspeitas relacionadas à clínica onde os tratamentos dela são realizados. Personagem importante, transita entre um tipo de narrador da verdade para os leitores e um curioso observador daquele que ele chama de Tiger Lily. É fácil notar a admiração dele por ela, assim como o impacto causado por ele nela quando se encontram frente à frente. A irmã da Lilico, Chikako, também tem uma significativa importância dentro do enredo, uma imagem que aquela esconde de todos para que suas origens não sejam reveladas ao grande público. Chikako é um exemplo do tipo de influência que ídolos como a irmã dela causam em mulheres insatisfeitas com a própria aparência. Ela sonha em se tornar igual à irmã em aparência, fama e status, o que dá sempre continuidade para todas as acima mencionadas industrializações da Aparência e ocultamento da Essência. Algo comum no contemporâneo mundo líquido de hoje, das passarelas às ruas, dos shoppings às escolas, do púlpito aos palanques políticos. Porque mesmo os desprovidos de uma natural beleza buscam ser belos de diversas maneiras, nem sempre recorrendo a ultraviolentas intervenções cirúrgicas como a nossa monstruosa Lilico. Mas, isto é um assunto para uma postagem de outra natureza.
E falando em Beleza Natural, esta surge na forma de uma rival na agência onde ela trabalha, Kozue Yoshikawa. 100% natural, mais jovem, mais talentosa e mais simpática do que ela, Kozue, na doentia mente de Lilico, foi posta junto dela para destroná-la (isto me lembra certa passagem de As Crônicas de Gelo e Fogo, a famosa profecia de uma Bruxa para a deliciosamente famigerada Cersei Lannister que a série Game Of Thrones explorou muito bem, uma das poucas virtudes desta adaptação que não acabou nada bem). E que trono possui alguém que é um mero produto passageiro pronto para ser substituído quando alcançar o prazo de validade, já que no exato momento da entrada nesta indústria possui uma obsolescência programada ? E que trono pode ser mantido por uma artificial escultura de falsos motivos, palavras, atos e momentos publicamente divulgados? E que trono pode ser defendido se o mesmo não passa da ilusão mais vendável para uma pessoa que não se construiu pelas próprias capacidades, contando com alterações e maquinações para se tornar degustável ao público por ela embasbacado, seduzido e aprisionado? Kinzinho, o maquiador da Lilico, tem as respostas, que vocês somente poderão saber lendo este excelente Mangá que muitíssimo lhes recomendo.
Não é uma história bonita e a senhora Okazaki, uma dos criadores (ou, praticamente, a criadora) do Gênero Cyaru Mangá (cujas histórias gravitam em temas como drogas, homossexualismo, lesbianismo, estupro e parafilias das mais diversas) optou por apresentar uma arte igualmente nada bonita. Aviso que se decepcionarão aqueles que, ao adquirirem-no ou lerem-no em qualquer oportunidade possível, não encontrarão nele traços como os de Kentaro Miura, Takehiko Inoue ou Goseki Kojima. Optando por distorcer as imagens tanto quanto Lilico é distorcida, Okazaki tornou o aspecto visual da obra para bem poucos apreciadores. Muitos consideram "horríveis" desenhos como o dela, mas eu vejo como perfeitos e necessários para narrativas distópicas nada sendo suaves com a cruel e sombria indústria criadora do que se chama "Artista" hoje em dia na Mídia e no Audiovisual voltados para o Mainstream. Infelizmente, não teremos uma versão completa desta obra tão cedo porque a Autora sofre atualmente de sequelas causadas por um acidente de carro no ano de 1996 (Helter Skelter foi originalmente publicada pela revista Feel Young entre 1995 e 1996), logo após o findar da serialização original da obra. Este volume único da New Pop (adquirirei futuramente outros do mesmo tipo por esta Editora já que amo volumes únicos de Mangás) se baseia no lançado em solo japonês no ano de 2003. Me agradaria muito ler um dia uma Edição Definitiva, espero que a Okazaki se recupere totalmente um dia.
A obra como está hoje é a melhor que poderia ter sido realizada para falar do tema ao qual se propôs. Uma análise visceral do falso mundo de todas as aparências nos invadindo em todos os dispositivos atuais. E que deixa uma indagação, fazendo agora um paralelo com Fashion Beast no primeiro parágrafo deste texto mencionado:
Vale tudo para que A Imagem determine, mesmo que mentindo, a definitiva solução de todas as ânsias, insatisfações e vazios interiores?
Saudações Inomináveis a todos vós, Realistas Leitores!
Kyoko Okazaki |
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