Juiz Dredd: Mandroide — A Justiça, A Vingança E O Vazio


Publicado originalmente em

O Mundo Inominável 

aos 14/11/2016


Título original: Judge Dredd: Mandroid
Editora original: Rebellion A/S
Roteiro: John Wagner
Capa: Kev Walker
Ilustrações: Kev Walker, Simon Coleby e Carl Critchlow
Cores: Kev Walker e Peter Doherty
Tradução: Jotapê Martins, Helcio de Carvalho e Fernando Lopes
1ª Edição
São Paulo: Mythos Editora
Selo Mythos Books
2014
166 pags.



Sinopse:

O Sargento Nate Slaughterhouse é o veterano de muitas guerras sangrentas travadas em planetas distantes. Porém, após ser mortalmente ferido no campo de batalha, a única maneira de salvar sua vida é reconstruir ciberneticamente seu corpo, tornando-o mais máquina do que homem — um Mandroide!

Dispensado do Exército, Nate volta a Mega-City Um, lutando para adaptar-se à sua nova existência. Quando sua família é vítima de um cruel ataque, sua amargura torna-se raiva e ele toma as ruas para fazer justiça pelas próprias mãos de modo brutal. No entanto, só existe espaço para uma lei na Megona... E Dredd está no caso!



Inomináveis Saudações a todos vós, Realistas Leitores!

Difícil é não simpatizar com Nate Slaughterhouse, o personagem principal de Juiz Dredd: Mandroide. Enquanto Sargento da Força Espacial, ele é gravemente ferido em combate contra forças alienígenas, tendo o corpo quase totalmente reconstituído com implantes cibernéticos. Ele passa a ser, então, como muitos de seus colegas de tropa que perderam vários membros e foram também reconstruidos ciberneticamente, os do pelotão especial dos Mandroides. Ter se tornado um Mandroide, algo que ele, simplesmente, via como aberração, o perturbou profundamente. Sem nenhum tipo de condição psicológica para continuar na Força, é dispendado da mesmo, sendo acompanhado no retorno à Terra pela sua esposa, a Capitã Katherine Rosson, e o filho, Tommy. Em Mega-City Um, no entanto, ele apenas encontra desgraça, dor e ódio quando tanto a sua esposa quanto seu filho são vitimados pelo crônico vírus que assola aquela cidade: O Crime. Tomado, então, por um incontrolável e brutalizante desejo de vingança, ele declara guerra a todos os criminosos dela. Porém, um detalhe muito maior está à frente dele: em Mega-City Um, A Lei é representada pelos Juízes e o mais icônico destes, Dredd, não deixará impunemente agir um justiceiro em sua cidade.

Acima, o roteiro (sem spoilers) da primeira saga de Mandroide, publicada nas 2000 AD Progs. 1453-1464, escrita por John Wagner e ilustrada por Kev Walker. Na segunda saga, Mandroide: Instrumento De Guerra, publicada da 2000 AD Progs. 1555-1566, o roteiro ainda é de Wagner, com os desenhos a cargo de Simon Coleby e Carl Critchlow; e colorizada por Peter Doherty. Nesta segunda parte, Nate é manipulado por um estranho General Reformado da Força Espacial, Trig Vincent, obcecado por uma vingança pessoal contra a Megona e desequilibradamente atado a delírios religiosos contextualizados na mensagem bíblica. O corpo cibernético dele é reconstruído de um modo mais mortal do que o anterior e o upgrade torna-o uma arma mais manipulável nas mãos do General Vincent que cruelmente o conduz através de uma mentira (algo que não vou contar, nada de spoilers...). Somente lhes digo que esta mentira o colocará novamente em choque com os Juízes e com Dredd, só que de uma maneira mais letal e sangrenta do que a anterior.

A saga completa de Mandroide é nervosa, densa, psicologicamente envolvente e filosoficamente brilhante. John Wagner, o criador de Dredd, desenvolveu uma história muito além do derramamento de sangue comum, simplório e raso das milhares de histórias de vingança presentes nos Quadrinhos e em outras mídias que lidam com a Ficção. A sinopse, inicialmente, pode lembrar as trajetórias de Frank Castle e Paul Kersey, respectivamente, o psicótico Justiceiro e o justiceiro friamente racional da série cinematográfica Desejo De Matar; no entanto, a forma como foi desenvolvida, com discussões envolvendo noções de justiça, vingança e o direito de quem está correto (os homens da Lei e da Justiça ou os homens da Vingança) tornam a história muito mais interessante, profunda e rica do que suas possíveis (ou não) referências e influências. A sobriedade dos desenhos de Walker, Coleby e Critchlow nos ambientam a uma crônica angustiante, a todo momento nos fazendo lembrar da anunciada falta de um sentido em tudo diante de fatores, humanos ou não-humanos, relacionados ao Destino. As cores que tanto Walker na primeira saga quanto Doherty na segunda utilizam, são frias, melancólicas, expressando com grande impacto o clima extremamente sombrio de cada página.

Mega-City Um é uma cidade cronicamente doente, como dito no começo deste artigo. Arruinada e refém de suas próprias mazelas, autoritariamente governada por homens e mulheres igualmente doentes. Dredd e os Juízes são doentes roboticamente afetados pela defesa da Lei, a qual se tornou tão acima dos conceitos morais da Humanidade que acabou por desumanizá-los. Mas, Dredd, nutrindo certa simpatia inicial pela dor ocasionada pelas tragédias na vida de Nate, demonstra possuir dentro dele algo ainda de humano, mesmo que pequeno ou invisível para muitos. O Dever para com A Lei não o faz tornar-se um justiceiro, mas como um homem como Nate, desprovido de qualquer ligação com aquela seria forçado a agir amparado em qualquer Dever para com uma disposição qualquer de algum trâmite interno da mesma? Então, já existencialmente fragilizado por se sentir mais uma máquina do que um ser humano,  Nate iniciou uma ultraviolenta cruzada contra os criminosos da cidade, de um modo que afronta a autoridade dos Juízes e o poder da Lei para conter os criminosos que nasceram da doença presente em cada quilômetro quadrado da cidade. E essa visão de que algo precisa ser feito para curar a cidade move-o como uma máquina assassina, colhendo algo que, na verdade, nunca lhe preenche o vazio da alma. Tardiamente, a isto ele descobre não tendo mais nenhuma chance de retornar e fazer de modo diferente, acreditando na Lei.

A Lei, no entanto, paira desacreditada e ineficiente na história, um agente inerte incapaz de combater a todos os crimes da cidade. Afinal de contas, dentro ou fora do Mundo dos Quadrinhos, é uma utopia pueril crer que qualquer tipo de força de repressão do Crime possa combater e extinguir a este como um todo. E isto abre espaço para mais violência, onde a Justiça é uma quimera tão impotente quanto os sonhos de um mundo feliz e perfeito. A qualquer cidadão esmagado por uma cidade como Mega-City Um resta apenas pensar como o narrador disse a certa altura da história, uma sutil justificativa para todo justiceiro ou candidato a justiceiro:


"O que uma escumalha como aquela tinha feito pelo bem da Humanidade? Já era hora de alguém se levantar e dizer chega! Ele fez isso e fará de novo!"


E homens como o General Vincent ainda corroboram essa idéia do questionável, para muitos pensadores em todos os tempos, "direito de fazer justiça com as próprias mãos":


"E quem criou essa fossa, essa Sodoma Moderna onde o crime pode florescer? Os Juízes!"


E a culpabilidade pelo crime é, assim, jogada nas supostas fraquezas da Lei e da Justiça, assim como nos defensores destas. No entanto, ao final da história, o verdadeiro culpado fica bem destacado, de modo metódico, frio e racional. Somente lendo atentamente do começo ao fim Juiz Dredd: Mandroide, vocês identificarão a culpa e de onde a mesma nasce. E, após tal identificação, O Vazio de homens como Nate, Vincent e até o de Dredd, será melhor compreendido.

Saudações Inomináveis a todos vós, Realistas Leitores!









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