Volto mais uma vez a escrever para este blog, mas dessa vez por uma razão
triste, que é a morte de Dennis o’Neil, um dos maiores escritores dos comics americanos da segunda metade do
século XX, com certeza. O Ozymandias me pediu para escrever um top 5 das minhas
histórias preferidas escritas por o’Neil, mas percebi que o artigo iria ficar
muito longo. Então, primeiro abordarei a saga de Rá’s al Ghul do Batman,
e depois desenvolverei outras histórias escritas por o’Neil que aprecio bastante.
Dennis o’Neil foi o responsável pela
concepção moderna do Cavaleiro das Trevas. Na verdade, podemos dizer que o
Batman de o’Neil é um pré-Cavaleiro das Trevas.
No início dos anos 70, o herói estava saindo da ressaca da primeira
Batmania do célebre seriado de TV de Adam West. Então, basicamente ninguém mais
levava o Cruzado de Capa a sério depois de tanta galhofa camp. Se a série teve o mérito de tornar Batman internacionalmente
conhecido, também o transformou em personagem de piada de salão.
A DC procurou fazer um resgate do Batman
mais sério, do início da Era de Ouro. Um pouco antes de o’Neil assumir os
roteiros, o personagem já tinha um pouco mais de seriedade, a cargo de artistas
como Carmine Infantino e outros, mas é quando o’Neil assume os roteiros que
Batman realmente se transfigura em um personagem mais sombrio e taciturno,
ainda mais se levando em conta a época. Dennis
o’Neil sempre foi conhecido por tentar dar mais veracidade aos seus roteiros,
ainda que em uma mídia que permitisse histórias fantasiosas, como as HQs. Seu
Batman na realidade é uma retomada da versão mais séria da Era de Ouro, de Bob
Kane e Bill Finger. Não é que Batman fosse galhofa e se tornasse repentinamente
mais sério. É uma volta às origens, mas adaptada para a realidade dos comics dos anos 70. Pode-se dizer que é
uma “marvetização” do Homem-Morcego também; uma resposta aos heróis mais
problemáticos da Casa das Ideias.
E é nesse ponto em que chegamos à saga
de Rá’s al Ghul. Hoje em dia, graças a adaptações como a série animada e a
trilogia de Christopher Nolan, os “civis” até conhecem esse grande vilão. Na
época, Dennis o’Neil teve a ideia de criar um novo oponente para Batman,
diferente da sua tradicional galeria de vilões. É meio óbvio notar que as
influências para a criação do personagem foram um arquétipo de Dr. Fu Manchu
com os vilões de James Bond. Negócio é que, perto de Rá’s al Ghul, Fu Manchu é
café pequeno.
É preciso destacar também o fato de que,
por essa época, já haviam dado um pé na bunda de Dick Grayson, o Robin. Houve a
intenção de limar o sidekick das
histórias por um período. Antes parceiro inseparável de Batman, agora Dick
estava de malas prontas para a Universidade Hudson. Nessa época, o Cavaleiro
das Trevas também mudou sua base de operações, abandonou a Mansão Wayne e foi
habitar o edifício da Fundação Wayne.
Na história Into the den of the death dealers (No covil dos mercadores da morte), originalmente publicada em Detective Comics no
411 e desenhada por Bob Brown, Batman está no encalço do terrível doutor Darrk,
um membro da famigerada Liga dos Assassinos. A perseguição ao criminoso acaba
por proporcionar ao herói um encontro com uma bela jovem estudante da Universidade
do Cairo chamada Talia, refém de Darrk. Entretanto, Batman também é capturado
pela Liga dos Assassinos. Obviamente, ele consegue escapar e fugir com Talia,
além de capturar Darrk. O criminoso ainda tenta traiçoeiramente assassinar o
Cavaleiro das Trevas, mas é baleado e morto pela garota.
A seguir, tem-se a clássica história Daughter of the Demon (A filha do Demônio), publicada em Batman no 232 e
ilustrada pelo grande Neal Adams. Nela, Batman recebe um envelope com uma foto
de Robin capturado. O possesso herói resolve ir até a Mansão Wayne, em busca
dos recursos de análise da Batcaverna, e qual não é sua surpresa ao se deparar
com o misterioso Rá’s al Ghul e seu servo Ubu no local. Rá’s diz para o
Cavaleiro das Trevas que é o pai de Talia e que sua filha também foi
sequestrada pelos pretensos captores de Robin. Batman fica surpreso de Rá’s al
Ghul ter descoberto sua identidade de Bruce Wayne, e Rá’s responde que apenas
deduziu quem teria recursos para comprar tantos equipamentos característicos do
herói. Já por aí se percebe que Rá’s é tão ou mais inteligente que Batman.
A partir daí, Batman e Rá’s al Ghul partem
para uma busca em várias partes do mundo atrás do Menino Prodígio e Talia, que
os leva até Calcutá e depois ao Himalaia. Chegando à base dos captores, Batman
logo desmascara a armação de Rá’s. Provou-se que foi apenas um teste, e o herói
nocauteia Ubu. Talia logo aparece, e Rá’s diz que sua intenção era testar o
Cavaleiro das Trevas, para averiguar se ele poderia ser um bom partido para sua
filha. É isso aí, Rá’s quer ser o sogrão do herói, que obviamente recusa tal
proposta, apesar de ficar atraído por Talia.
A busca pelas respostas de quem praticou
tal odioso crime leva o herói mais uma vez a se deparar com a bela Talia.
Apesar de a garota levar Batman ao sócio de Sterling como responsável pelo
assassinato, ele logo entende que há mais por trás de tudo isso. O Homem-Morcego consegue adentrar o submarino
de Rá’s al Ghul apenas para descobrir que Mason Sterling está lá, ao menos o
cérebro dele está, graças ao auxílio do maquiavélico doutor Moon, que mantinha
o cérebro de Sterling ainda vivo. Creio que essa é a primeira aparição de Moon,
vilão de menor expressão, mas que apareceria em outras histórias. Dessa forma,
Batman fica consciente de que Rá’s é sim bem perigoso e um tanto louco. Essa
história, creio que não envelheceu muito bem. Esse plot de deixar um cérebro conservado mas ainda consciente é um
tanto esdrúxulo e fantasioso, mas funcionava na época.
Finalmente, começa o último ato do
embate entre Batman e Rá’s al Ghul em Bruce
Wayne, rest in peace (Bruce Wayne,
descanse em paz), publicada em Batman
no 242. Decidido a ir no tudo ou nada contra o vilão, Batman
forja a morte de Bruce Wayne para poder agir mais livremente. Ele então
persegue o criminoso “Fósforos” Malone, a fim de recrutá-lo na guerra contra Rá’s,
mas o bandido acaba morrendo acidentalmente. Então, Batman se disfarça como “Fósforo”
Malone; essa seria uma identidade recorrente do Cavaleiro das Trevas no
submundo.
Batman disfarçado de “Fósforo” Malone
salva o doutor Harris Blaine de ser sequestrado por um dos servos de Rá’s al
Ghul, Lo Ling. Batman ainda planeja um esquema para convencer o doutor Blaine a
ajudá-lo a deter Rá’s quando Lo Ling aparece e tenta assassinar o Cavaleiro das
Trevas. Ele é enganado por um boneco sósia do Batman e no confronto tem sua
vida salva pelo herói. Dessa forma, na próxima história, The Lazarus Pit! (O Poço de
Lázaro), publicada em Batman no 243 e ilustrada por Neal
Adams, Batman tem de entrar em um duelo com Lo Ling para que ele fique leal à
sua causa. Obviamente, o Homem-Morcego vence a luta.
A partir desses eventos, forma-se uma
aliança entre Batman, o resoluto doutor Blane e Lo Ling para derrotar Rá’s al Ghul.
Isso os leva até a Suíça. Chegando ao país, encontram logo Talia e Ubu. Para o
azar do Cavaleiro das Trevas, uma mulher chamada Molly Post, campeã de esqui, atrapalha
a captura de Talia, mas após isso fica do lado do herói ao descobrir sobre Rá’s,
pois o vilão havia arruinado a vida de seu noivo. Está certo que esse é um aspecto mais
providencial do roteiro, mas que funciona.
Com seus companheiros, Batman consegue
descobrir a base secreta de Rá’s al Ghul e capturar Talia. Lá, descobre que o
vilão estava morto. Levando a garota consigo, ele acha que não terá mais
preocupações, mas lego engano. Talia imerge o corpo de Rá’s no Poço de Lázaro,
e, de lá, o vilão desperta ensandecido. Não demora para ele ir ao encalço de
Batman e seus aliados. Graças à sua força ampliada quando recém-desperto do
Poço de Lázaro, Rás nocauteia Lo Ling e Batman. Molly ainda se fere ao tentar
impedir que Rá’s e Talia escapem em um hovercraft,
mas ainda assim ambos conseguem se safar.
No ato final, Batman consegue localizar
Rá’s al Ghul no deserto do Saara, invade a tenda do vilão e o desafia para um duelo.
Ambos cruzam sabres no deserto escaldante, mas Batman é picado por um escorpião
e agoniza. Talia dá um providencial beijo com o antídoto no herói, que
desperta, persegue Rá’s, o surpreende e o nocauteia, o levando capturado, não
sem antes dar um beijo ardente em Talia. Fim.
Algumas considerações sobre essa saga
merecem ser feitas. A primeira é que sem dúvida pode ser classificada como a
primeira grande saga de Batman. Pode-se dizer que é até uma saga improvisada ou
acidental. Há um encadeamento de histórias que desembocam em uma narrativa
maior. Isso era incomum na época. Desde essa saga, Rá’s al Ghul passou a marcar
presença como um dos grandes adversários do Cavaleiro das Trevas; uma ameaça em
nível global, e não apenas à Gotham City, como é o caso da maioria dos vilões
do herói. O Batman dessa época era mais humano e falho que o da atualidade, e
houve a intenção de deixá-lo mais sensual também. Basta ver que ele fica de
torso nu no último ato, ao beijar Talia. Isso é porque queriam tirar a má fama
de anos em que Batman e Robin dividiram o teto da Mansão Wayne como Bruce Wayne
e Dick Grayson. Não adiantou muito; Batman será alvo de piadas pondo em dúvida
sua masculinidade para todo o sempre, principalmente por parte dos leigos.
Apesar de Dennis o’Neil ser um escritor
que prima pela verossimilhança, ele escreveu um aventurão bastante fantástico
nessas histórias, mas que o leitor compra. A arte de Neal Adams ajuda a dar um
verniz realista à narrativa. No entanto, o enredo dessas histórias sem dúvida
soará mais ingênuo quando comparado aos roteiros de autores atuais e mais
pretensiosos do Cavaleiro das Trevas, como Scott Snyder e Tom King. Talia é uma
grande personagem e uma das melhores contrapartes amorosas do Batman até hoje.
Lamentavelmente, ela foi estragada nos últimos anos. Preferia quando Talia era
dúbia, mas não necessariamente uma vilã. Nas histórias atuais, ela realmente se
tornou uma vilã meio sociopata, o que é uma descaracterização.
Enfim, a saga de Rá’s al Ghul continua
empolgante ainda após todos esses anos, porém arrisco dizer que o leitor mais
contemporâneo talvez sinta certa dificuldade nesse tipo de narrativa, pois é
datada e mais verborrágica que a narrativa das HQs mais modernas. Apesar de
que, sinceramente, tenho minhas dificuldades em conceituar esse “leitor
contemporâneo” e não sei se ele realmente existe. Em suma, Dennis o’Neil é um
dos poucos escritores que realmente conseguiram genuinamente inovar as HQs do
Batman, e sem dúvida devemos agradecê-lo pelo o que o personagem é hoje.
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