Pequeno Conto Noturno (80)


Para Rubens, boas noites de sono são como boas mulheres : não se lembra de ter tido muitas. Raramente, caem-lhe nas mãos. Menos ainda hoje - já 01:38 h da madrugada -, que Rubens apagou vespertinamente por uma hora e tanto, quase duas horas. Sono turbulento, doente, mas sono.
Chá de camomila? Capim-cidreira? Composto de valeriana e mulungu? Rivotril? O caralho! De rum, Rubens decide se sedar.
Serve-se de licenciosa dose dupla de rum, pega seu toca-CD, agora também com entrada USB, para que não digam que Rubens é um homem das cavernas, vai para a sacada, põe as centenas de músicas no pen drive no modo randômico e se senta a beber e a olhar a noite. A observar a dança da Lua - ora odalisca com véus de nuvens, ora atriz pornô desnuda e túrgida -, a esperar pela visão de OVNIs e de estrelas cadentes. 
Põe-se, enquanto bebe e espera pelo imponderável, a pensar na vida, no seu dia. Rubens também está, teórica e oficialmente, em regime de quarentena. Quarentena para os outros - pensa Rubens, durante um gole de rum -, para a maioria, para a grossa massa. Para Rubens, fora o fato de não ir ao trabalho, a tal quarentena é o seu dia a dia normal.
Rubens termina a primeira dose dupla e se recorda da caminhada, da volta que deu, pela manhã, pelo bairro e por sua principal rua comercial. 
Papelaria fechada. Já tenho mais canetas Bic e papel do que serei capaz de, respectivamente, esgotar as tintas e deflorar as brancas pautas, pensou Rubens, ao passar por suas portas de metal corrugado; posso passar muito tempo sem entrar em uma papelaria.
Ópticas. Três delas. Fechadas. É bem verdade, pensou Rubens na hora, que o 1,5 graus de meus óculos de leitura não se ressentiriam de uma recalibragem, mas, sob boa luz e boas letras, ainda dão para o gasto, poderão durar por muito tempo. Além do quê, pensou também Rubens, depois de certa idade, pouca coisa ainda há para se ver, há muito mais coisas para serem lembradas, e a lembrança sempre pode ser editada e ampliada em letras garrafais, sem depender de lentes ou de outras muletas a servirem de máscaras negras de nossas decrepitudes. Depois de certa idade, a lembrança é muito mais fundamental que a realidade e o futuro. As ópticas fechadas e os meus óculos obsoletos também não me são itens de urgência, concluiu Rubens.
Uma grande loja de produtos de beleza - perfumes, cosméticos, xampus. Fechada. Para o sovaco, pensou Rubens, ao passar por suas amplas portas de vidro, outrora de hálito perfumado e ornada por vendedoras vestidas em seus uniformes e maquiagens engomadas e bem passadas, sempre usei a eficiente mistura de álcool e bicarbonato de sódio; para os cabelos, sabonete do mais barato. Perfume? Nunca comprei nem pra presente. Para Rubens, mais uma ruína sem sentido e sem saudade, a grande loja de produtos de beleza.
Restaurantes self-service e de pratos executivos. Quatro deles. Fechados, todos. Igualmente, pensou Rubens, ao trafegar livremente pela calçada lateral de um deles, antes tomada por mesas e pessoas falando alto e comendo com as bocas abertas, não me farão falta se extintos forem; nunca me sentei às suas mesas, nunca os cheiros saídos de suas cozinhas me despertaram o apetite, nunca provei de seus sabores, nunca nem pus os olhos em seus cardápios.
Uma concessionária de automóvies usados, adjunta a uma de instalação de som automotivos. Outro ponto para o coronavírus, pensou Rubens, ao passar pelo portão em grades a rodear a loja e a deixar entrever os carros em oferta com preços pintados nos para-brisas, nunca tive carro, não tenho nem habilitação, e o mundo ficará melhor sem o pigarro dos motores e o ribombar dos alto-falantes, as vozes amplificadas dos idiotas. Muito melhor, aos pulmões, o ar poluído apenas pelo silêncio. Se bem que, ponderou Rubens, dando tratos à bola, os pôres-do-sol, perderão seus reflexos castanhos-arroxeados sem o óxido nitroso. Um sacrifício válido.
Uma barbearia. Aliás, barbearia, não, barber shop. Fechada. Foda-se, pensou Rubens, ao mirar sua fachada retrô, vintage. Só corto cabelo, quando muito, duas vezes por ano, uma no equinócio do outono, outra na da primavera. A barba, então...
Posto de combustível e sua loja de conveniência. Trabalhando a passo de tartaruga, permitindo a entrada e o atendimento de duas pessoas por vez. E com o latão da Lokal a R$ 1,99. Secando a segunda dose dupla de rum, Rubens se lembra de que entrou, dispensou o álcool gel à porta, as luvas plásticas disponíveis entre as prateleiras, comprou quatro latões, os responsáveis por seu sono vespertino, e saiu. Atravessou a rua, subiu dois quarteirões, tomou uma rua paralela.
Uma loja de 1,00 Real. Nunca comprei, pensou Rubens, querendo chegar logo em casa para entornar os latões, sequer um "tupperware" nestas pequenas chinatowns, sequer um prendedor de roupas, um pano de prato ou de chão, uma extensão elétrica, uma chave de fenda, um sachê perfumado para banheiros, um capacho de "welcome" para pôr à soleira da porta do apartamento.
Uma academia de cross fit. Fechada. Nem merece comentário - pensou Rubens, apressando o passo para a cerveja não perder muito o "gelo".
Tudo fechado. Volta a pensar Rubens agora, às 02:43 h da manhã, a se servir de sua terceira dose dupla de rum. Tudo fechado. Tudo o que nunca precisaria ter sido, de fato, aberto.
Nos poucos lugares em funcionamento - supermercados, farmácias, padarias e pet shops (sim, o melhor amigo do homem também precisa comer) -, assim como naquelas lagoas barrentas em meio à aridez das savanas, em que girafas, zebras, gnus, hienas, leões e elefantes se reúnem em reverente distância, as pessoas não mais se abraçam, não mais se tocam, não mais oferecem as mãos em cumprimento; quando muito, sorriem-se à distância de 1,2 metros e por detrás de suas máscaras hospitalares.
Nenhuma intimidade. Nenhuma cordialidade. Só a convivência básica e indispensável.
03: 12 h da matina. Rubens gargalha. Se levanta da cadeira, ajeita as bolas do saco dentro da cueca e, novamente, gargalha. Seca a terceira dose de rum.
Finalmente, pensa Rubens, o seu estilo de vida, o isolamento social, está a receber o seu devido valor, está a ser reconhecido. Rubens ri, agora silenciosamente, a mirar a paisagem da cidade acesa, porém de ruas vazias; as lâmpadas dos prédios, dos postes, dos estabelecimentos comerciais não mais a atraírem as mariposas noturnas; sim a se prestarem de velas em funeral. Quer sobreviver? Faça como Rubens, evite as pessoas. 
O novo coronavírus, pensa Rubens a preparar sua quarta dose, transformou a todos em Rubens.
À tal conclusão, Rubens, já de volta à sacada, sorri um sorriso de canto de boca; sempre no canto esquerdo. Não um sorriso de vingança, como muitos poderiam supor. Um sorriso - mais até um esgar - de como quem diz : eu te disse, eu te disse. Um sorriso de profecia cumprida, de mãe cuja praga rogada ao filho pegou. Um sorriso triste de quem sempre teve a razão e nunca a ilusão por desjejum e travesseiro.
O novo coronavírus - pensa Rubens, tentando se acostumar à ideia - transformou todo mundo em Rubens. Está obrigando todo mundo a encarar e confrontar e acordar e almoçar e jantar com o seu Rubens interior. Com o seu Rubens interior e com os de seus filhos, esposas, maridos, companheiros etc.
Com a convivência forçada com seus Rubens, pensa Rubens, será que o número de mortes evitadas pelo contágio do coronavírus não será superado pelo número de suicídios? Pelo de divórcios, certamente. Outras duas questões que também não me preocupam - Rubens dando uma boa talagada.
Mais penosa, no entanto - e o semblante de Rubens torna-se taciturno frente a tal pensamento - será, pelo visto, a quarentena de bucetas. Também todas fechadas, as bucetas. Ao menos, as que Rubens conhece, ao menos aquelas de quem ele ainda guarda os telefones, aquelas que ainda lhe dirigem a palavra.
Pela tarde, antes de ser render ao apagão provocado pelos latões de Lokal, Rubens ligou para Virna, Yrina, Selena, Brígida e Suzana. Brígida não atendeu. Todas as outras, sim, e se declararam reclusas pelo coronavírus. 
- Mas a gente não precisa beijar na boca, só dar uma metidinha - tentou ainda Rubens, sem conseguir convencer a nenhuma delas, sem sequer lhes arrancar uma risada, mesmo uma risada forçada, fingida como a maioria dos orgasmos delas.
A mulherada anda com mais medo do coronavírus que do HIV, pensa Rubens, e drena a quarta dose.
Mais penosa lhe será, ao que tudo indica, esta quaresma de buceta. Logo eu - pensa Rubens, sentindo-se um tanto injustiçado -, que nem cristão sou, que adoro uma carne vermelha, embebida em sangue pagão, de preferência.
04:02 h da manhã. Na geladeira, o rum dá pra mais uma moderada quinta dose. Rubens terá de se contentar com ela. Tempos de contingência, pensa Rubens. Tempos de contingência, conforma-se.
(no randômico do toca-CDs, a "agulha" cai em Raul, O Dia em que a Terra Parou)

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