Surfista Prateado - Parábola


Texto escrito por Rocket - Sweet Rabbit

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"Galactus volta à Terra, e apresenta-se como um Deus, prometendo uma nova era. O Surfista sabe que existe algo por trás disso, e novamente revela sua presença aos humanos, na tentativa de deter o terrível ser. O resultado do encontro entre Stan Lee e Moebius, dois gigantes das HQs mundiais, só poderia resultar numa grande e bela história."

Roteiro: Stan Lee
Desenhos: Jean Giraud/Moebius
Ano de lançamento: 1988

Aviso: O artigo contém spoilers da trama


Stan Lee e Jean Giraud já eram consolidados em suas respectivas carreiras quando se encontraram por um acaso numa Feira de Livros, no ano de 1988. Durante um almoço amigável e uma singela troca de elogios a respeito de seus trabalhos, foi sugerido a dupla que eles criassem uma história juntos. Animados com a possibilidade, começaram a debater sobre quais personagens ou conceitos abordar, até que Moebius disse achar o Surfista Prateado fascinante. Stan Lee, animado com a ideia de ver o que talvez seja seu personagem cósmico mais filosófico, trágico e reflexivo sendo desenhado pelo excelentíssimo artista europeu, desenvolveu um roteiro não limitado à ação e pancadaria, mas repleto de questionamentos identificáveis por qualquer um que viva numa comunidade complexa.

O que é uma parábola? Segundo o dicionário, é uma comparação desenvolvida em uma história curta, cujos elementos são eventos e fatos da vida cotidiana e na qual se ilustra uma verdade moral ou espiritual. Pequenas histórias que explicam um conceito, usando exemplos do dia a dia. Podemos utilizar como exemplo o contador de parábolas mais popular que já existiu: Jesus, que usava/criava situações simplistas que serviam como analogia para seus ensinamentos, atingindo um maior número de pessoas.

A história é ambientada num cenário futurista, onde a sociedade não convive mais com super-heróis. O Surfista Prateado tem vivido no anonimato em meio aos seres humanos, vagando como um andarilho e buscando refúgio em seus próprios pensamentos. Ele aparenta uma certa desesperança em relação as pessoas e diz não se surpreender mais com as loucuras que elas possam vir a cometer. A cidade traz consigo um clima de caos e desordem: ruas sujas, veículos batidos e abandonados, pessoas rudes e selvagens. Logo no ínicio, dois astrônomos avistam uma nave espacial vindo em direção a Terra, a notícia se espalha e é inicialmente recebida com descrença por parte da população, até que a aproximação torna-se evidente e o desespero consome à todos. "O barulho é ensurdecedor", "estamos condenados", "é maior que uma montanha"... O planeta presenciava a chegada de Galactus, o Devorador de Mundos.


Ao chegar na Terra, Galactus anuncia uma nova era. A partir de agora, as leis dos homens são inválidas, e a população está livre para fazer o que quiser e como quiser. É aí que somos apresentados ao segundo antagonista da história: Colton, um religioso vigarista que vê em Galactus a oportunidade de se autoproclamar profeta e dizer que a presença da entidade ocorreu graças as suas preces. A sociedade compra a ideia de um novo Deus e a insanidade toma conta das ruas. O clima que já era caótico atinge seu ápice e o cenário se transforma numa mistura de crimes, roubos e destruição. Galactus não deve ser questionado e, os que o fazem, são rapidamente linchados e descartados.

Quem não concorda com o rumo da situação é Elyna, irmã do falso profeta. Seu caminho cruza com o do Surfista Prateado ao evitar que o mesmo seja oprimido pelos seguidores de Colton. Os dois conversam sobre a fé abalável os fatores que tem guiado a humanidade negativamente, como cobiça, ódio, apatia, e a real preocupação e pureza da moça incentivam o herói a confrontar Galactus mais uma vez, mesmo sabendo que esta é uma tarefa impossível e que o poder do vilão é inalcançável. O Surfista sobe em sua prancha e parte com a esperança de salvar o planeta que sempre o rejeitou.

O embate dos dois é recheado de questionamentos morais e filosóficos. Galactus já havia prometido à seu antigo arauto que não voltaria a atacar a Terra, mas sua fome o fez se auto sabotar e por em prática um plano onde a humanidade acabasse consigo mesma. Bastou um pronunciamento. O vilão era adorado, idolatrado, como um verdadeiro Deus, visto como a salvação, a libertação de um povo que inconscientemente faz de si a própria prisão. Tudo isso graças à sua imponência e ao incentivo de seu falso profeta. Tal situação é identificável com vários períodos da nossa realidade, onde pessoas foram cegas por discursos ou propósitos que as fizessem seguir uma causa específica. Igrejas lotadas de fiéis que enriquecem cada vez mais seus pastores em busca de paz. Eleitores que elegem e bancam políticos na esperança de um futuro melhor. Até no entretenimento, pessoas que idolatram determinados artistas ou arte como se sua verdade fosse única e absoluta. Falsas ilusões que nos levam ao fracasso social e pessoal. É como se precisássemos de um líder, um Deus, alguém que nos guie e que nos livre dessa eterna sensação de vazio. Que dê rumo em nossas vidas e confronte os nossos medos. Que perdoe nossos pecados e nos encha de prosperidade e propósito. Assim como nós, marionetes, idealizadas e desenvolvidas por nós mesmos, cada um com suas características, ideais e ensinamentos, cada um com sua verdade.


O desfecho envolve arrependimentos, coragem, união e sacrifícios. Graças a um acontecimento específico o povo passa a ver Galactus como uma ameaça fria e individual, e seu falso profeta o declara como um demônio erroneamente interpretado. A vulnerabilidade e a troca de valores da sociedade é muito bem representada, como se uma única atitude ou fato pudesse (e pode) mudar a visão que as pessoas tem sobre determinada coisa. O que não impede que elas cometam o mesmos erros. Dificuldade interpretativa e dificuldade de pensar por si.

Parábola é uma obra que traz excelência tanto em sua escrita quanto em seu visual. Como um alimento que equilibra perfeitamente seu sabor com seu valor nutritivo. Como um jogador que equilibra perfeitamente sua jogabilidade com seu preparo físico. Os desenhos e traços de Moebius, juntamente com a forma com que os quadros e as nuvens de diálogo (detalhe: tudo feito à mão) foram distribuídos conduzem facilmente a nossa leitura, até para os que não estão habituados a lerem quadrinhos. Pessoalmente o considero o melhor artista que já desenhou Galactus, por representar toda sua imponência de forma natural, sem exageros. Seu olhar não é maligno, é sério, por vezes frustrado, impaciente. A expressividade da população, ora surpresa, ora amedrontada, ora furiosa, também foi muito bem montada. O roteiro de Stan Lee conduz a trama num ritmo consistente ao mesmo tempo em que cria diversos questionamentos na mente do leitor. Como uma crise existencial em forma de gibi. Há inclusive uma nota do escritor no início da HQ que diz: "Se ao término de "Parábola", você olhar a sociedade sob um ângulo diferente, contemplando o destino do homem e questionando alguns dos princípios básicos, isso significa que Moebius e eu tivemos sucesso em nossa colaboração". Trata-se de uma obra que talvez não funcionaria tão bem se não fosse criada em conjunto, por mentes brilhantes e distintas.

Disponível para leitura online (em português, baixa qualidade) no site HQ NOW.
Disponível para compra (com materiais extras) no site Amazon.


"Eu conheci a precipitada exaltação da vitória e a dor torturante da derrota. Mas jamais poderei deixar de buscar um oásis de sanidade nesse deserto de loucura que os homens chamam terra."

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