Crítica: A Odisseia dos Tontos


 

A ODISSEIA DOS TONTOS
por Joba Tridente
publicado originalmente no Claque ou Claquete

Se você é do tempo dos “caras pintadas” deve se lembrar do desastroso Plano Collor (mais conhecido como “confisco da caderneta de poupança”)..., aquela lambança sem precedentes, do presidente Collor e da sua ministra da economia Zélia, que apavorou o país ao confiscar os ativos financeiros de todos (?) os brasileiros. É claro que a dupla foi odiada desde então e o imbróglio todo, com mais alguns dados gráficos, felizmente não acabou em pizza, mas em impeachment de um e sumiço de outra nos EUA, na década de 1990.

Pois você sabia que dez anos depois, da derrocada aqui, um plano econômico parecido (o corralito) foi implantado na Argentina? Bem, no Brasil o fato desagradável rendeu motivos ao tenso filme Terra Estrangeira (1996), de Walter Salles e Daniella Thomas. Na Argentina, motivou a deliciosa dramédia A Odisseia dos Tontos (La odisea de los Giles, 2019), de Sebastián Borensztein (Um Conto Chinês e Kóblic)..., uma envolvente história de ação e reação anárquica (ou seria de revanche?) que pode fazer você se perguntar: “Por que não pensei nisso na época, camarada?.


Baseado no livro La Noche de la Usina, de Eduardo Sacheri (La pregunta de sus ojos / O Segredo dos seus olhos), e no roteiro do próprio Borensztein, a trama de A Odisseia dos Tontos, como toda boa odisseia, ousa vários gêneros (drama, comédia, suspense, ação, aventura) para contar a louca história de um heróico grupo de moradores de uma vila da província de Buenos Aires que, no ano de 2001, às vésperas do confisco bancário corralito, perde todo o dinheiro juntado para montar uma cooperativa, num golpe armado pelo corrupto gerente do banco e um inescrupuloso advogado, e decide arquitetar um plano para tentar recuperar o dinheiro. Giles (tonto ou tolo): pessoas ingênuas que são facilmente enganadas por empregadores, manipuladas por autoridades e exploradas por políticos etc...

Ao abrir A Odisseia dos Tontos com a bela valsa O Danúbio Azul (1866), de Johann Strauss II (1825-1899), acompanhando uma explosão que lança pro alto um amontoado de ferragem, reverenciando a famosa elipse do filme 2001 - Uma Odisseia no Espaço (1968), de Stanley Kubrick (1928-1999), em que, logo após descobrir o uso de uma “arma” que lhe dará domínio sobre outras espécies, um macaco pensante lança um osso/nave ao espaço, Sebastián Borensztein já diz a que veio, não apenas por começar situando a sua saga no emblemático ano 2001, o mais explosivo ano político e econômico argentino, que culminou com cerca de quarenta mortos e cinco troca de presidente em duas semanas do mês de dezembro..., mas também para mostrar como um grupo de amigos (mais ou menos pensantes), vitimado pelo corralito e também favorecido pelo acaso, encontrou uma solução brilhante para seus problemas financeiros e empresariais. Essa explosão espetacular, que será vista novamente e no contexto real, por um ângulo mais irônico, no terceiro ato, também tem a ver com a evolução dos macacos de Kubrick, mas é melhor você desvelar (e rir) por conta própria. Ah, e se for atento(a) perceberá outras minúcias curiosas na cenografia, bem como na trilha sonora.


A Odisseia dos Tontos tem uma narração nada redundante de Fermín Perlassi (Ricardo Darín), do prólogo ao epílogo, que ilustra mais a alma do que os passos dos seus parceiros de jornada em busca de justiça (com as próprias mãos e ou com o quê estiver à mão). A ação de caça ao tesouro pessoal (os dólares economizados) parece insano, mas o desespero dos enganados é o combustível (ops!) que alavanca muitas iniciativas, para o bem dos amigos (montar uma cooperativa para empregar um bocado de gente do vilarejo) ou para o mal dos espertalhões (guardar dólares roubados para se dar bem no pós-crise econômica).

É nesse divertido corre-corre do grupo, entre acertos e erros, em busca da melhor estratégia para dar uma rasteira de mestre no vilão e recuperar o que é seu, sem ser descoberto, que vamos conhecendo a personalidade de cada um dos onze protagonistas: o ex-jogador de futebol e mentor Fermín Perlassi (Darín), sua mulher idealizadora da cooperativa Lidia (Verónica Llinás) e o filho universitário Rodrigo (Chino Darín), o anarquista convicto Fontana (Luis Brandoni), o maluco resignado Medina (Carlos Belloso), o peronista piadista Belaúnde (Daniel Aráoz), o advogado trapaceiro Fortunato Manzi (Andrés Parra), a empresária Carmen Lorgio (Rita Cortese) e o seu filho sem menosprezado Hernán (Marco Antonio Caponi), os  consumidores de novas tecnologias irmãos Gómez (Ale Gigena e Guillermo Jacubowicz)..., todos muito bem caracterizados e, em meio a risos e alguma comoção, com bom tempo em cena.


Com uma discretíssima e bem-humorada pegada sócio-política, A Odisseia dos Tontos é um filme que ganha fácil qualquer público, tanto pela genialidade do argumento, muito bem desenvolvido no criativo roteiro, quanto pela direção impecável de Sebastián Borensztein.  A performance do elenco é um espetáculo à parte. É impossível ficar imune à empatia das personagens, sejam elas ignorantes e ou bem informadas. Não importa o tempo de tela e ou a quantidade de falas, cada ator/personagem é único no papel e essencial na trama que beira o absurdo e chega a flertar com o pastelão..., mas sem perder a classe cinematográfica argentina. Pode até parecer “inspirado em fatos”, mas, acredite, é (?) pura ficção. Ou será que não?

Enfim, A Odisseia dos Tontos exala calor humano de uma forma muito particular, muito própria do original cinema argentino. Repleta de boas intenções, é uma comédia tocante, emociona, sem ser piegas, e diverte (com situações e diálogos hilários e piadas políticas impagáveis), sem subestimar a inteligência do público que, caso não tenha a menor ideia do assunto, ainda pode aprender sobre cooperação e sobre cooperativa. A trilha, com rocks argentinos, ilustra bem o enredo com seu final apoteótico (se fosse filme cabeça-de-parafuso o fim, possivelmente, seria completamente diferente). Se é fã ou quer conhecer o cinema dos hermanos, acho que deveria arriscar. Vai que gosta. Difícil não gostar! Ah, não custa lembrar que há uma breve sequência logo no início do pós-crédito que dá bem o tom da revolta capital de um personagem!


Joba Tridente: O primeiro filme vi (no cinema) aos 5 anos de idade. Os primeiros vídeos-documentários fiz em 1990. O primeiro curta-metragem (Cortejo), em 35mm, realizei em 2008. Voltei a fazer crítica em 2009. Já fui protagonista e coadjuvante de curtas. Mas nada se compara à "traumatizante" e divertida experiência de cientista-figurante (de última hora) no “centro tecnológico” do norte-americano Power Play (Jogo de Poder, 2003), de Joseph Zito, rodado em Curitiba, no Paraná, Brasil.

*  No Claque ou Claquete você encontra muitas resenhas atuais e antigas!

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