O POLITICAMENTE CORRETO E A INDÚSTRIA CULTURAL



<Texto da Tag “Escritor Convidado”, escrito por: A Doutora>

Boa noite, galera.
Já estou pensando neste texto há um bom tempo, sem saber exatamente por onde começar. O assunto pode ser espinhoso e alguns de vocês podem não gostar do que eu tenho a dizer. Então, antes de começar o texto propriamente dito, algumas considerações:
*Apenas para efeitos práticos, este texto tratará arte e cultura (e toda a indústria cultural de forma geral) como sinônimos, mesmo que elas não sejam.
*É um texto de opinião, logo, ele não é imparcial. Vou tentar construir da forma mais lógica e coerente possível a importância do chamado "politicamente correto" dentro da indústria cultural. Caso você ache esse assunto ou esta visão bullshit, talvez ele não seja para você.


Antes de tudo, o que será esse tal do "politicamente correto", que todo mundo fala? O termo foi primeiramente usado por ativistas negros, LGBTS, feministas e etc., de forma irônica, porém o termo ganhou força ao final dos anos 80/início dos 90, nos EUA, devido às discordâncias políticas da época. Para os defensores do termo (categoria que eu me incluo), o politicamente correto nada mais é do que uma forma de se portar, agir e falar que tente não excluir, ofender ou discriminar grupos de pessoas pela cor da sua pele, religião ou orientação sexual, entre outros. Para os críticos do conceito, é uma forma de mordaça e censura de pensamento e livre expressão e também de vitimismo por parte de certos grupos.
Nos últimos anos, temos acompanhado a indústria cultural abraçar cada vez mais a diversidade, adotando postura inclusiva, e isso tem gerado as mais diversas reações, desde as aclamações até as críticas mais ferrenhas. Uma vez que as liberdades e os direitos individuais tem tomado cada vez mais espaço dentro do debate político, qualquer obra artística que aborde estes temas também será vista como uma obra política, e para muitas pessoas, arte e política não se misturam. Nada poderia estar mais longe da realidade. Literalmente, desde a Grécia Antiga que estes dois assuntos, que no papel realmente parecem muito distantes entre si, se entrelaçam. Platão e Aristóteles já discutiam (e discordavam) do papel da arte dentro de uma sociedade.
Há um ditado que diz que "a arte imita a vida". Em alguns casos, sim. Em outros, a renuncia, a expõe e até mesmo a transforma. Existe cultura e existe a contra-cultura. É também lugar da arte moldar a opinião e algumas vezes, até o caráter de um indivíduo. É por isso que quando um sistema governamental é inteligente, a abraça, quando burro, a demoniza. Pois artistas, como seres naturalmente formadores de opinião, servem também como um farol que as pessoas se identificam ou se espelham.
Se alguém de vocês já estudou a história do cinema, por exemplo, talvez já tenham ouvido falar de D.W. Griffith. Ele foi um cineasta que já dirigiu mais de 400 filmes entre curtas, médias e longa-metragens. Griffith trouxe muitas contribuições para o cinema, como o uso de closes para efeito dramático, o uso da narrativa paralela (aquela que uma história é contada por dois ou mais pontos de vista até que em algum momento esses pontos se cruzam ou se encontram), que é utilizada até os dias de hoje na linguagem audiovisual. Porém, Griffith é também conhecido por suas posições políticas fortes, que muitas vezes eram transpostas para seus filmes (mais uma prova como arte e política se misturam). O diretor é considerado um supremacista racial, e algo que podemos ver em muitos de seus filmes são os negros sendo retratados sempre como pessoas desonestas, criminosos, ladrões e estupradores. Um de seus filmes mais famosos, O Nascimento de Uma Nação, de 1915, é também uma de suas obras mais polêmicas, colocando na posição de heróis da trama membros da Ku Klux Klan, enquanto os negros, claro, eram vilanizados. Além disso, Griffith também usava um recurso advindo do teatro, chamado de blackface, que consistia em pintar de preto o rosto de atores brancos, o que salientava ainda mais estereótipos desse grupo de pessoas.
 
(Exemplo de blackface, quando um ator caucasiano pinta o rosto de preto).

Um outro exemplo que posso citar de grupos que sofreram discriminação midiática, e não tão distante da nossa realidade, é a forma como os gays foram retratados por muitos anos em programas de humor da televisão aberta brasileira, como A Praça É Nossa e a Zorra Total, antes de sua reformulação. Também eram representações extremamente estereotipadas, onde normalmente o personagem gay era motivo de piada, e não o autor da mesma. Bordões como "isso aí é uma bichona" como se fosse algum motivo para se envergonhar eram ditos sábado após sábado, enquanto o autor do bordão fazia de tudo para ficar entre mulheres (sim, normalmente no plural) de biquínis ou alguma outra vestimenta hyper-sexualizada, e assediá-las, pois isto é sinônimo de macheza e virilidade.



E por falar nisso, temos o problema da representação feminina de forma geral dentro da indústria cultural. De musas nuas a donzelas indefesas, foi (e está sendo) árduo o caminho para mudar a imagem da mulher no imaginário popular. E se a arte foi responsável por vermos a mulher como seres frágeis, delicados e que servem de troféu para o herói, é ela também que agora luta pra quebrar este estereótipo que ela mesma criou. Até hoje vemos comentários estranhando ver mulheres em posição de poder, e quando alguma obra decide retratá-las assim, logo vemos chavões como "representatividade forçada", "lacração", entre outros.
E acho que o que é chamado de "politicamente correto" dentro da indústria cultural nada mais é do que a tentativa de dar espaço, voz e vez para grupos historicamente marginalizados, oprimidos e ridicularizados. Como diria Isaac Newton: "Para toda ação, há uma reação igual e contrária". Se Hollywood retratava negros como delinquentes degenerados, então a comunidade negra vai fazer filmes que retratem a realidade desse grupo, para mostrar que eles são seres humanos como quaisquer outros (até existiu um movimento para isso, chamado de blackexploitation). Cada vez mais grupos de minorias começaram a aparecer, primeiro como coadjuvantes, depois como protagonistas, como uma reação natural à forma como eram retratados.
Mas de novo citando Newton - "para toda ação há uma reação..." e isso serve para os dois lados. Então ao mesmo tempo em que há um aumento considerável de representação positiva, há um grupo de pessoas que se opõem e acham que hoje tem "negro/LGBTQI+/mulheres empoderadas/asiáticos/latinos/..." em tudo quanto é canto. Eu sei não apenas de ler comentários na internet mas de ouvir da boca de parentes e conhecidos coisas como "hoje em dia a Globo põe gay em tudo quanto é canto, toda novela agora tem..."; "aff, ator/atriz negrx pra fazer um personagem BRANCX? Qual a necessidade disso?", e coisas do gênero. Como eu costumo dizer, a Globo sempre apresentou personagens gays, afetados, afeminados, etc. Mas enquanto eram alívio cômico ou a piada da Zorra, estava tudo bem. O problema é que agora eles são retratados como pessoas normais. Mudança de etnia de personagens também é um assunto que dá muito pano pra manga. Primeiro, que as pessoas só se importam com a troca conforme elas gostam do personagem original. Se elas desconhecem, estão cagando e andando para isso (desculpem o termo).


 E isso para mim é hipocrisia. Segundo, eu acredito que as pessoas deveriam olhar menos a forma e mais o conteúdo. Mudaram a etnia? Mas a essência do personagem e o que faz ele ser ele está ali? Se sim, isso é o que deveria importar. É só ver o mais novo (de muitos) rages da comunidade nerd com a escalação da nova Ariel. Um bando de marmanjo que certamente não estão nem aí para esse remake reclamando da versão live-action não ser fiel à primeira versão da Disney. Acontece que esta primeira versão da Disney já é uma adaptação de um conto de Hans Christian Andersen. Perguntem se esta versão é fiel ao conto. Mas alguém se importa?
Como eu disse mais acima, a arte e a indústria cultural ajudou a normalizar muitos estereótipos, e agora está tentando desfazer isso. Então, quando ouço pessoas falando "a Globo está querendo dizer que ser gay é normal para nossas crianças", eu digo que sim, isso é exatamente o que ela, a Disney, Netflix e outras produtoras de conteúdo estão tentando fazer. E isso é positivo. Diferente do que muita gente pensa, elas não estão tentando converter ou influenciar as pessoas a serem homossexuais, por exemplo, mas sim mostrar que essas pessoas existem, que elas vão se deparar em algum momento da vida, e que tá tudo bem. A mesma coisa com o negro, com a mulher empoderada, com o deficiente. Essas pessoas existem e estão por aí. E como mostrá-las pode ser uma coisa ruim? Por que não pode existir um super-herói negro e que vive a cultura negra? Por que não podem haver mulheres em posição de poder sem para isso ela seja uma megera ou "machona"?
Não sou inocente a ponto de achar que a indústria cultural está nessa luta porque ela se importa, afinal isso também rende um bom dinheiro. É uma visão de mundo que vende e tem muitas pessoas dispostas a comprá-la. Mas isso não me impede de apoiar a iniciativa, mesmo que usada muitas vezes para fins comerciais, pois se vamos consumir arte e cultura, eu não sei vocês, mas eu prefiro que ela seja inclusiva, aberta e acolhedora em vez de opressiva e discriminatória.
Atenciosamente,
A Doutora.

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