Só Sós Somos


Dia desses, li, ouvi, me mandaram, sei lá, que só somos/existimos através de nossas interações sociais, de nossa promiscuidade com o bando, que só existimos como formigueiro, nunca como lobos solitários. 
Segundo onde li, ouvi, ou segundo quem me mandou, até mesmo nossos talentos e peculiaridades são frutos de nossas relações com outrem.
Para tais pessoas, por exemplo, Van Gogh, as tintas que ele usava, os pincéis que empunhava e a tela em branco que lambuzava são todos equânimes protagonistas do quadro acabado, do produto final. Para tais pessoas, Van Gogh, só foi Van Gogh porque teve acesso às tintas, pincéis etc. Van Gogh nada seria sem eles.
O caralho! Típico discurso de quem sempre foi tela em branco.
O caralho! Típico discurso esquerdista, mal intencionado. Típico discurso covarde e derrotista de quem diz que todos são especiais; que só é outra forma de dizer que ninguém o é.



Típico discurso de quem deprecia o talento e o mérito individual dos nascidos acima da média e tentam, por terem nascido, eles próprios, totalmente desprovidos de predicados, aplanar a tudo e a todos ao rés do rebanho mugidor e balançador de rabo.
Típico discurso de quem, tendo nascido mediano, medíocre, e não suportando ficar sem companhia, pois não se basta, quer nivelar todos a seu estrato, quer levar todos ao seu triste gueto.
Não sei de onde pariu-se tal joia da veneta. Se de um livro de autoajuda de Paul Rabbit, se de um programa vespertino de fofocas, receitas e casos de família, se de alguma postagem campeã de likes de alguma rede social.
Antigamente, chamávamos a isso de filosofia de para-choque de caminhão. Antes fosse, meus amigos, antes fosse.
Tenho enorme saudade e respeito pelas frases de para-choques de caminhão; muito mais honestas e precisas. Não vemos mais hoje frases pintadas à caligrafia caprichada, geralmente em tinta amarela, nos para-choques dos caminhões. Que fim levaram estes anônimos frasistas e criadores de aforismas do asfalto?


Vai ver viraram youtubers, famosinhos do feicibúqui, ou, pior, sociólogos, psicólogos e pedagogos.
Achar - querer que todos achem - que só se existe em função da manada? Ou que esta triste e inexpressiva forma de vida é o único tipo válido de existência?



Que autoinsuficiência é esta? Que vácuo interior é esse de que essa pessoa deve padecer? Que oco existencial do caralho! Por fora, nem mais bela viola.
Pois digo que só existimos sós. Se sós. Quando sós.
Em nossas interações, anulamo-nos. Pomo-nos no piloto automático, em animação suspensa. Ponho-me, pelo menos. Ter de estabelecer conexões com o rebanho - no trabalho, nas ruas, no trânsito, nos mercados - é viver em eterna prisão em regime aberto : só poder ser eu mesmo quando me recolho, à noite, ao conforto e à solidão tão aguardados de minha cela. Preferiria, se me fosse possível, prisão de segurança máxima. Castigo maior, soltam-me, no entanto, ave de asa cortada : os fingimentos e salamaleques sociais são a minha tornozeleira eletrônica.



Não finjo. Mostro meu desagrado para com eles. Sou ranzinza, carrancudo, áspero. Os que se dizem felizes, integrados, úteis? Tudo delírio induzido por  antidepressivos, tarjas pretas, terapeutas picaretas, ideologias fracassadas e Jesuses. 
Em grupo, não somos. Simulamos. Brincamos de ser. De ser  professor, bancário, motorista de ônibus, lixeiro, dentista, verdureiro, padeiro, gigolô, camelô, padre.

"E você ainda acredita que é um doutor, padre ou policial, que está contribuindo com sua parte para o nosso belo quadro social?"




Só sós é que verdadeiramente somos. A morte é uma transação solitária. A vida mais ainda. Quem vive pelo superestimado coletivo não tem vida; foge da vida; prevarica-a.
Só somos nós se e quando despidos dos olhos e dos dedos indicadores do bando. 
Consegues, vestindo a nova roupa do rei, desfilares nu frente à multidão? E, prova definitiva dos nove, frente a ti mesmo? 
Só somos nós no banheiro, de madrugada, bêbados, sentados ao vaso e passando uma cantada barata na nossa cara macilenta no espelho.
Quem tem coragem, hoje em dia, de ficar só? De olhar para o abismo? Para o espelho plano e fidedigno do banheiro? Melhor olhar para o salão de espelhos deformados que são os olhos do bando sobre nós, não é? Desfilar em passarelas monitoradas por photoshops, né? Mais fácil e grata a aprovação do patrão, dos colegas de trabalho, dos familiares, que a nossa própria, certo?
À merda todos vocês. Que precisam do olhar do outro para se enxergarem. À merda todos vocês.
Acreditam mesmo que não sejam exército de um homem só? Então, nunca estarão preparados para a guerra.
Só só é que sou. E não abro mão disso. Ainda que, cada vez mais, menos possa ser só, menos possa ser eu. 

Ainda que encurralado, não privatizo meu eu, não o terceirizo.



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