Precisamos falar sobre Jeremy e Kevin






Precisamos falar sobre Jeremy e Kevin

Dias desses eu estava fuçando a minha playlist que, admito honestamente, é recheada de anos 80 e 90. Não só por ser a minha geração, mas o século 21 ainda não produziu nada marcante em termos de música com significado. Opinião pessoal, galera. Enfim, o foco não é playlist das antigas, o lance foi ter reencontrado uma que ficou em minha mente por muito tempo e considero uma das melhores do grunge rock: Jeremy, do álbum Ten (1991) do Pearl Jam. Uma das melhores bandas desse gênero que ficou famosa no final dos anos 80 juntamente com Nirvana, Alice In Chains, Soudgarden, Mudhoney e etc...




Mas o que me fez ficar ligado novamente quando eu a ouvi? Foi o tema de fundo da letra: Jeremy é um rapaz americano, com problemas psicológicos ignorados pelos pais até o dia em que estoura a própria cabeça diante da sua turma de colégio em plena aula, chocando a todos. Ele emitia sinais de alerta de que algo não ia bem com ele, não deram atenção, não o ajudaram e deu no que deu. Esse som é um dos hits mais famosos da banda e o vocalista Eddie Vedder se inspirou no caso real de Jeremy Wade Delle, o rapaz se suicidou na frente da turma de inglês do seu colégio em 1991 com uma .357 Magnum e também sobre um episódio vivenciado pelo próprio quando um colega de curso fez vários disparos contra uma turma de oceanografia, em ambas as situações eram pessoas que mostravam sinais de que algo estava errado e ninguém se importava.



Baseado nesses dois casos a canção nasceu, Vedder quis transmitir uma mensagem sobre a reação ao bullying, quando entrevistado na época perguntaram o que ele queria dizer com a música, ao que ele respondeu:

Veio de um pequeno parágrafo em um papel, significando que você se mata e faz um sacrifício como forma de vingança... O mundo continua e você se foi. A melhor vingança é viver e provar que você consegue. Seja mais forte que aquelas pessoas. E aí você poderá voltar.”




O videoclipe lançado em 1992 foi um sucesso, premiado pela MTV em quatro categorias: Clipe do Ano, Clipe de Banda, Clipe de Rock e Direção. O ator Trevor Wilson interpretou Jeremy (irônica ou tragicamente o mesmo se suicidou anos depois), o clipe deu uma nova visão sobre a história do rapaz que tira a própria vida diante dos colegas de classe como uma forma ou de protestar ou de se vingar da vida de rejeição e bullying que levava, a atmosfera é densa, os efeitos estroboscópicos e a voz sinistra de Vedder cantando a música como se fosse um narrador da história tornam a experiência toda muito mais significativa. Uma cena em particular me chamou bastante a atenção: em determinado momento do vídeo o protagonista surge enrolado na bandeira americana com chamas ao seu redor e essa imagem inspirou a capa da primeira edição de Poder Supremo (Supreme Power) da Marvel, escrita por Michael Straczynski e desenhada por Gary Frank em 2005.




Mas e o Kevin?

Entre essas épocas, onde eu ouvi a música pela primeira vez e a reencontrei, assisti ao filme “Precisamos Falar Sobre o Kevin”. A produção é adaptação do livro de mesmo nome da jornalista e escritora americana Lionel Shriver, a trama narra a vida de um casal que tem um filho problemático – Kevin, interpretado por Ezra Miller – e que tenta superar as dificuldades da vida tampando o Sol com a peneira no que se refere ao comportamento estranho do rapaz. Tilda Swinton faz Eva, a mãe, com uma atuação excelente e que prende a atenção o tempo todo quando está em cena. Seu pai é interpretado por John C. Reilly, outro ator bastante conhecido, mas que raramente é protagonista nos filmes em que atua. Aqui ele é o parceiro de Tilda e só, o show todo está nas mãos dela e de Ezra, também muito bem no papel. Em diversas situações o rapaz demonstra uma tendência sociopata enorme e cruel, é agressivo, frio; vemos um crescendo na narrativa, tememos o tempo todo pela vida de sua irmã mais nova até o trágico desfecho em que, finalmente, toda a raiva latente de Kevin transborda em um massacre que começa na sua casa e termina em um banho de sangue no seu colégio.




Lionel Shriver escreveu o livro baseado em dramáticos episódios de violência nas escolas americanas, sendo um dos mais famosos o Massacre de Columbine que ocorreu em abril de 1999 e completou 20 anos. Nesse caso os estudantes seniores Eric Harris e Dylan Klebold promoveram um ataque coordenado e sangrento na escola que frequentavam, mataram 12 alunos e um professor, vindo a cometerem suicídio após trocarem tiros com a polícia local. O que todos se questionavam era o que os levou a fazerem isso: Bullying? Tentativa de reproduzirem um videogame na vida real? Uso de drogas e antidepressivos? A jornalista percebeu nesses questionamentos a ausência dos pais dos estudantes. Afinal, eles tiveram ou não alguma influência ou participação nos eventos que levaram a essa explosão de violência? Pensando assim ela estudou vários casos similares e montou o perfil de Eva, a mãe americana típica classe média, que busca reavaliar sua vida para tentar entender em que momento seu filho Kevin se tornou um assassino em massa sem que ela percebesse.




Honestamente eu só assisti ao filme, estou procurando adquirir o livro para ter uma visão mais profunda sobre a história, porém a produção faz um trabalho muito bom em trazer para as telas o cenário criado por ela na obra, segundo quem já o leu. Claro que algumas coisas não devem ter sido tão aprofundadas, sabemos como adaptações de livros e HQs para o cinema diluem muita coisa do trabalho original, um bom exemplo é a saga de Percy Jackson, li todos os livros e os filmes foram extremamente rasos, daí a franquia não ter ido à frente.

Esse é o ponto em comum que a música do Pearl Jam e o filme dirigido por Lynne Ramsay tem em comum: uma cegueira absurda por parte dos pais de que algo errado está acontecendo com seus filhos, de viverem tão imersos nas suas vidas caóticas de trabalho, sociedade, deveres que ignoram a responsabilidade maior de estarem presentes nos universos de suas crianças. Em determinado momento da infância de Kevin seu pai o presenteia com um arco e flecha de brinquedo, ele o mira imediatamente na mãe exibindo um sorriso sinistro, desenvolve habilidade na prática dessa arma e é uma das utilizadas no massacre do colégio. O fato de que a pequena criança querer a mãe como um alvo assim que ganha sua arma de brinquedo já não é motivo suficiente para incomodar? Eu ficaria bastante preocupado, mas ela ignorou. A diferença entre Kevin e Jeremy é que o último dá cabo de sua própria vida, sem levar ninguém com ele, e o outro mata várias pessoas, acaba preso aos 16 anos com sua mãe ainda tentando entender o que aconteceu, quando ela pergunta para ele o motivo disso tudo anos depois a resposta não poderia ser mais sombria.

Situações assim não são somente originárias de terras americanas, aqui no Brasil mesmo tivemos o triste incidente em Suzano, São Paulo, em março de 2019. Guilherme Taucci e Luiz Henrique de Castro realizaram esse ato criminoso com nuances bastante similares ao Massacre de Columbine. Planejaram, reuniram armamentos e se trajaram para realizar essa missão macabra que iniciou nas ruas com o assassinato do tio de Guilherme terminando na Escola Estadual Professor Raul Brasil com o saldo de 10 mortes, incluindo a deles mesmos. Foi considerado o oitavo episódio registrado nos territórios nacionais e o que chamou bastante a atenção foi o histórico dos assassinos, ambos eram ex-alunos da instituição; nas redes sociais o rapaz, Guilherme, aparecia trajado com roupa furtiva, máscara de caveira, armado e anunciando que ia fazer algo de muito errado. Onde seus pais estavam? Quem eram os responsáveis por eles que não lhes davam a devida atenção? Entre os motivos listados pelas investigações estão o bullying, o isolamento social, um desejo de superar os números do Massacre de Columbine e um pacto sinistro revelado depois de que cada um iria matar um desafeto seu, matar os estudantes e, para depois, se suicidarem. E uma quase coincidência sinistra existe entre este caso e o clipe do Pearl Jam: as ações aconteceram em horários semelhantes; no clipe tudo aconteceu às 09:45h de uma terça-feira e em Suzano, foi às 09:30h de uma quarta-feira.

Muitos procuraram culpar o vício em videogames como um dos principais motivos para eles terem chegado a esse ponto. Temos jogos como Death Race, Mortal Kombat, Death Strike entre tantos outros cujo objetivo não é só derrotar um adversário, é acabar com ele definitivamente, porém diversos estudos provaram que games não incitam comportamentos violentos, o problema está lá dentro, enraizado no cerne do indivíduo, não foi o jogo que mandou ele sair armado e detonar geral, a mente problemática é que deveria ser analisada e tratada antes de cometer atos de atrocidade e existem sinais de comportamento que demonstram isso. A criação, a educação de maneira mais próxima e cuidadosa pode identificar quando algo não vai bem, mas o interesse maior em resolver os próprios problemas de suas vidas cotidianas afastam os pais e responsáveis das crianças que precisam de uma atenção maior que acabam não vendo outra opção para chamar a atenção do mundo do que fazendo uma grande besteira.

Cresci gostando de jogos dos mais variados tipos, filmes de suspense e terror, tudo para fazer a adrenalina subir e, mesmo assim, não peguei uma arma e saí detonando geral, uma criação apropriada te faz entender que existe um limite entre a diversão e a atrocidade. Jeremy se matou por ninguém ter lhe dado atenção suficiente, Kevin matou apenas por sentir que deveria, o caso de Columbine não tem uma explicação exata até hoje, a investigação disse que os rapazes tinham diários pessoais onde relatavam que desejavam realizar um ataque como o acontecido em Oklahoma City nos anos 90 e os assassinos de Suzano, segundo entrevistados que os conheceram, compartilhavam históricos de bullying e registros nos seus perfis de apoio ao uso de armas e jogos violentos. Todos tinham problemas em comum, será que em algum momento apelaram por uma saída? Pediram ajuda e ninguém ouviu?

São perguntas que ficarão sem resposta, pois tanto nos casos reais ou nos fictícios como os que me inspiraram esse texto, os únicos que poderiam responder ou estão mortos ou estão catatônicos. Talvez o que o mundo precise mais de pais que vivam com os filhos, que andem mais com eles, do que simplesmente tentar lhes comprar o mundo para que possam satisfazer seus desejos egoístas, dormir em paz e acreditar que estão fazendo um bom trabalho.

Assim, quem sabe, massacres como esses não fiquem somente na ficção e nos videogames?


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