Da. Francisca Trocou Deus por Uma Bicicleta Grená


Em meu habitual caminho às seis da matina a pé para o trabalho, cruzo com algumas pessoas também a caminho dos seus; uma meia dúzia de gatos pingados, de galos madrugadores, neste caso.
Algumas delas, vejo muito esporadicamente, ou mesmo uma única vez. Outras, no entanto, são figurinhas carimbadas para mim - e eu para elas -, personagens anônimos recorrentes do meu cotidiano.
Cruzamo-nos em todo santo e profano dia. Não sei para onde vão, nem elas, o meu destino. Não sei qual o ofício que lhes agrilhoa e lhes garante a subsistência - nosso inferno e céu de cada dia -, nem eles o meu.
Cruzamo-nos em todos os dias e sempre nos mesmos trechos de nossos percursos. Somos os relógios uns dos outros. Ao cruzar com um ou com outro sempre naquele lugar, me asseguro de que estou dentro do meu horário - e eles dos deles. 
Há ligeiros atrasos às vezes. Atrasos de um ou dois quarteirões, para mais ou para menos.
Não lhes sei os nomes, nem eles o meu. Não sei da parte deles, mas a alguns, que já encontro há anos, acabei atribuindo nomes fictícios, apelidos.
Há um rapaz, por exemplo, de seus 30 e poucos anos, a quem eu sempre ultrapasso em frente às Lojas Americanas no centro da cidade. Ele tem o passo firme, cadenciado e o único quase tão rápido quanto o meu : é o Forrest Gump; com um outro, ainda, um japonês de seus mais de 40 anos, cruzo sempre perto de um posto de saúde, e ele carrega sempre uma mochila posta ao peito e não às costas : é o Canguru de Tóquio. E as besteiras por aí vão, por aí seguem os seus caminhos.
E há a Da. Francisca, o motivo desta postagem. Uma senhora, estimo eu, entre os seus 55 e 60 anos, morena, baixinha e atarracada, um toquinho de amarrar jegue. Chamei-lhe de Francisca por ser muito parecida com uma Francisca com quem trabalhei há muito e muito tempo.
Cruzo com a Da. Francisca, invariavelmente, na avenida que margeia o Ribeirão Preto, rio que corta o centro da cidade e que lhe deu o nome, outrora mais caudaloso e flanqueado por exuberantes palmeiras imperiais.
Da. Francisca anda sempre de cabeça baixa, como a olhar para o chão ou para os pés, mas, na verdade, está sempre a rezar. Da. Francisca anda sempre com um rosário de contas na mão, a balbuciar, contrita, o seu terço de orações.
Hoje, uma surpresa. Cruzei com a Da. Francisca a um quarteirão acima da avenida, ela descendo em direção ao rio. Dizer que "cruzei com a Da. Francisca" não descreve exatamente nem faz jus à realidade do fato : Da. Francisca passou voando por mim. A bordo de uma bicicleta grená.
Instintivamente, olhei para as mãos de Da. Francisca. Ambas no guidão. Deu-me vontade de gritar-lhe : "Cadê o rosário, Da. Francisca, cadê o terço, mulher de Deus?". Se não em suas cansadas e calejadas mãos, em que lugar Da. Francisca estaria a levar Deus consigo? Na garupa de sua "bike"?
Da. Francisca trocou Deus por uma bicicleta grená! Pããããããta que o pariu!!!!

Levou vantagem, a Da. Francisca, muita vantagem.

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