Uma Aula de Língua Portuguesa com Quadrinhos

                                                                                              Wagner Ávlis*

♬♪ Não saco nada de Física,
Literatura ou Gramática,
Só gosto de Educação Sexual,
E eu odeio Química! ♫♩
(R. Russo. “Química” – MTV Especial Aborto Elétrico. Capital Records, 2005).

20 anos atrás uma aula de gramática no ensino básico era tão temida ou rechaçada quanto qualquer das ciências exatas. Língua portuguesa era sinônimo de “decoreba”, regras herméticas, vocabulário rebuscado, caligrafia bonita, leitura chata (porque obrigatória) da literatura clássica. As coisas foram mudando para melhor depois dos Parâmetros Curriculares Nacionais, com as Diretrizes Curriculares Nacionais, ambos documentos do Min. da Educação, além, é claro, da imensa contribuição das pesquisas em Linguística. Hoje uma aula de português é mais atraente porque não trabalha mais no abstrato ou no conceitual; ela agora trabalha com a demonstração empírica da gramática e com o experimento do idioma que se materializa nos gestos, na fala, na escrita, no gráfico, nos números, em suma, nos textos, material que pode ser consultado, conferido, sentido, visto, manipulado, feito e refeito pelos alunos. Cabe aqui um parêntese sobre por que as disciplinas das ciências exatas, sobretudo as matemáticas, ainda são bastante rejeitadas, por mais que haja esforço de um ou outro professor em torná-las atrativas. Tudo se resume ao método, e muitas vezes o método depende dos recursos, que, por sua vez, dependem de um oceano de coisas que estão anos-luz do profissional da educação. Nossos professores de química, por exemplo, ainda desenham cadeias de carbono na lousa e dizem:

As moléculas de qualquer composto orgânico que são formadas pelo conjunto de todos os átomos de carbono e heteroátomos se dão por 4 critérios: o fechamento da cadeia, a disposição dos átomos, os tipos de ligações e a presença de heteroátomos .

A partir de então, tudo se fará por meio de desenho e conceitos abstratos. Desde quando Química é uma atividade abstrata? Nunca foi, mesmo quando era alquimia. Falando da posição de estudante, para mim, o assunto das cadeias carbônicas seria atraente, despertando, aliás, vocações, se nossos alunos primeiro ouvissem e vissem exemplos reais de onde se veem cadeias carbônicas em seres orgânicos (o trabalho com a perícia legal dos papiloscopistas e dos legistas é um gancho para isso), comparando-os com compostos inorgânicos, como a feitura dum sabonete, por exemplo; depois, em segundo, conferissem as ligações químicas no microscópio para depois desmontá-las, rearranjá-las numa prática laboratorial. Há dinheiro em caixa para pagar milhões a Anitta e Cia. em shows municipais de réveillon e carnaval todo ano, porém não há para equipar escolas com laboratório...

            Tudo se resume ao método, porém, algumas vezes, o método depende do professor. Não esqueço o dia em que eu, aluno do 7º ano, perguntei ao professor de matemática:

— Fêssô, estudando pelo livro, vi que um número elevado a zero é igual a um. Como assim? Por quê?

— Porque é assim mesmo, Wagner. Basta tomar isso como regra: “um número elevado a zero é igual a um”.

Notemos aí que nem o livro, nem meu prof., dava a explicação. Talvez julgassem que decompor a potência, a fim de demonstrar a propriedade, era algo acima do entendimento de colegiais. Logo, a minha pergunta virou a resposta. Durante todo o assunto de potenciação não ouvimos/vemos nenhuma aplicabilidade das potências no mundo real; tudo pairava no abstrato dos algarismos arábicos, e não é novidade para ninguém aqui que essa mesma (i)lógica se arrasta para todos os conteúdos subsequentes, até o 3º ano médio. Meus colegas e eu chegamos à faculdade sem sabermos pra quê bulhufas serviam o conjunto dos números imaginários e os polinômios [em matemática], a fórmula F2=F1+mg (pressão hidrostática, que jamais disseram vir do Teorema de Stevin, que possibilitou a construção das caravelas) [em física], muito menos uma “eletrólise ígnea do cloreto de sódio” (apenas ilustrada no livro didático) [em química], nem nunca vimos ou tocamos os actinopterígeos (essa vou fazer como muitos professores, não vou dizer o que é!) [em biologia]. São os youtubers que fazem agora o que muitos professores não fazem em aula, e isso é preocupante, posto que põe em xeque a prática docente e até a discussão se, daqui a algumas décadas, ter um professor em sala será mesmo necessário. Veem por que as ciências exatas ainda não são atraentes para muitos alunos, do fundamental II ao ensino médio? É porque, diferente da aula de língua portuguesa, a tendência é não trabalharem com o elemento empírico, um agravante que contraria a própria natureza da ciência.
Divertido e atraente estudar química orgânica assim, né não?
            Esse meu artigo vem expor, dentro das tendências do ensino de língua atual, como uma aula de gramática pode ser atraente usando histórias em quadrinhos, sem que o estudante fique odiando estar na sala (obrigado a tal) e ao fim do ano fique com a farpa do “pra que droga tive de decorar o que é um pronome ou o saco de um adjunto adnominal? ”. Mas fixem bem: meu artigo não se propõe a

ser uma fórmula-modelo fixa de letramento; é somente uma experiência pessoal, bem minha, como prof. de língua, a qual quero compartilhar;
dizer que eu sou “fodão”, que a disciplina de “português é foda”, mais melhor de mais boa de mais maior e de mais grande do que as outras;
solucionar os problemas da educação nacional ou culpar educadores pelos déficits existentes.

A única proposta deste artigo é expor uma curiosidade, a de como uso uma HQ numa aula de gramática[1] e com isso atingir três objetivos num só ato:

1) mostrar que quadrinhos é uma expressão de arte respeitável[2], 2) formar novas gerações de leitores de HQs, 3) ofertar uma aula atrativa.

A obra que usei foi a “O que Aconteceu ao Cavaleiro das Trevas?”, de Neil Gaiman e Andy Kubert[3], aqui, recortando duas páginas das partes 1 e 2, na escola, em forma de xerox dessas páginas (alguns compraram a HQ), uma explanação de duas horas-aula numa turma de 1º ano médio, mas que na verdade poderia ser ministrada a qualquer série do ens. médio ou preparatório pra vestibular, enquanto seu modelo é exequível a toda série escolar com seus respectivos conteúdos. 



Fiquemos com estes trechos:




            Cumpre dizer, é trecho, e quando é trecho convém situá-lo no conhecimento prévio. É necessário dizer que O que Aconteceu ao Cavaleiro das Trevas? é um conto alternativo (isto é, não é uma história oficial na cronologia do personagem) onde Batman experimenta o estado de morte (sim, Batman morrêêêu!), os personagens mais recorrentes de Gotham City se reúnem para prestar-lhe homenagens fúnebres de corpo presente, cada qual contando a sua versão de quão provável o Homem-Morcego veio a falecer, tendo, como local das exéquias, o Beco do Crime, lugar onde o super-herói nasceu. Há de se dizer também que, sem pretender adentrar o terreno da Literatura, coexistem ali dois narradores, a consciência viva do espírito do Batman (narrador onisciente), que fala nos recordatórios, e os próprios personagens que prestam as homenagens (narrador-personagem), que falam pelos balões; como estes últimos relatam versões diferentes do óbito do herói, o primeiro narrador – i.e., o espírito de Batman – sabe que todas as versões são falsas, mesmo ele não sabendo de que forma morreu, mas uma coisa ele sabe, não foi de nenhuma das versões testemunhadas. Dito isso, pode-se abrir um curto espaço para discussão com a turma sobre graus de verdade, ponto de vista e manipulação da informação (dados nos depoentes do funeral) e o assunto do luto sincero e/ou hipócrita[4] que cerca essa hora tão delicada da existência. A partir desse ponto o trecho não é mais trecho; torna-se um texto autônomo, assumindo identidade única e integral, que vale por si só, autossuficiente. É quando cabem as interrogativas de interpretação textual que os alunos têm de fazer e responder: que texto é esse? Do que fala? Qual a ideia principal através da qual se desenrolam as cenas?

            Agora vem a parte do “pra que serve estudar isso, se eu nunca vou usar?”. Na ocasião, os assuntos eram (uma revisão de) verbos, os termos essenciais da oração, colocação pronominal. Notemos que, em todas as cenas, o diálogo dos personagens está se referindo a algo à parte, de fora das cenas, o que caracteriza a 3ª pessoa do discurso verbal – a de quem se fala. Esse algo à parte é Batman, sendo aludido como se não estivesse ali, contrastando com o fato de seu cadáver estar. Por causa desse efeito de distância vão ocorrer termos alusivos indefinidos como “alguém” e “homem” (1ª e 7ª quadrículas), “falecido” (4ª e 6ª quadrículas), “ele” (2ª, 4ª, 7ª, 8ª, 9ª 11ª, 13ª quadrículas). Por que será que ninguém ali se refere ou se dirige diretamente ao Cavaleiro das Trevas se, em condições normais de um velório, as pessoas falam do finado como se este as ouvisse – e portanto em 2ª pessoa, a com quem se fala?  Isso é mistério que os alunos podem desvendar.
O post mortem do melhor detetive do mundo (pp.16-17). 
            O segredo está nos termos indefinidos e no efeito de significância que eles produzem na obra artística em questão. Vejamos como. Os termos “alguém”, “homem”, “falecido”, “ele”, estão substituindo um nome, a saber, o nome Batman e todas as suas antonomásias (como Homem-Morcego, Cavaleiro das Trevas, Cruzado Encapuzado, Detetive Mascarado, Vigilante de Gotham). Se estão substituindo um nome é porque estão a exercer função de pronome, e aí a gente explica aos alunos que o pronome evita repetições óbvias ou desnecessárias e tal. Percebamos que o uso de “alguém”, “homem”, “falecido”, “ele”, não determina nem restringe a extensão do significado dessas palavras; ao contrário, torna-as genéricas, e, por consequência, transpõe o nome substituído (“Batman”) ao campo do abstrato, como abstrato é um espírito de um falecido. É aqui que se pode demonstrar a seguinte definição gramatical: “Quando um pronome substitui ou representa um nome, dizemos que é um pronome substantivo (ex: 'ele [Wagner] chegou'); quando o pronome vier acompanhando ou determinando o nome, restringindo a extensão do seu significado, dizemos que é um pronome adjetivo (ex: 'meu livro')". O professor poderá então colher do gibi um dado. Dos quatro termos alusivos indefinidos, um é o que tem maior ocorrência: o “ele”, oculto, contraído ou não por preposição. Vamos ver quais são em cada quadro (q.).


Sem preposição

Contraído por preposição ou oculto
Ele morreu, pudinzinho” (q.2)
“Não acredito que ele não morreu” (q.2)
“E como ele morreu” (q.7)
Ele morreu salvando a cidade” (q.8)
Ele respondeu” (q.9)
“Porque ele não desistiu” (q.14)
“E o arrastou pra longe” (q.13)
“Aí [ele] jogou a nenê pra mim” (q.12)
“A enxurrada bateu nele” (q.13)

O professor aponta para esta ocorrência, o pronome ora aparece ou se oculta, ora com e sem preposição. A simples influência da preposição altera o significado do que se diz: sem a preposição, o pronome exercerá a função de sujeito, isto é, o ser a quem o verbo se refere e sobre o qual se diz algo (“ele morreu salvando a cidade”. Quem morreu salvando a cidade? ELE.  “Ele não desistiu”. Quem não desistiu? ELE). Por isso que se usou lá um pronome do caso reto, porque o caso reto é usado para sujeitos da oraçãoPor isso é ingramatical dizer "vou amar ela", já que "ela" é pronome reto e não pode ser complemento, mas sujeito. com preposição, exercerá a função de complemento ou adjunto adnominal, pois uma preposição liga dois termos, subordinando um ao outro (ex: cheguei de UBER. “UBER” está subordinado a “cheguei”, pois “UBER” completa o sentido do verbo chegar por meio do “de”), e, por causa disso, o termo que vem depois da preposição é um complemento e não mais um sujeito (“a enxurrada bateu nele”. Quem bateu nele? A ENXURRADA). Em “a enxurrada bateu nele”, nele (que é a contração da preposição em + pronome ele) é um exemplo de adjunto adnominal e portanto objeto indireto do verbo bater. Com isso a turma vai entendendo que em+ele= nele não pode ser um pronome do caso reto, porque não é mais sujeito e sim complemento, logo, é um pronome do caso oblíquo. O mesmo se dá em e o arrastou pra longe”, pois o oestá continuando a substituição do termo “Batman” por “ele”, como se fosse “e arrastou a ele pra longe”. Não é ele quem arrasta (sujeito), é ele quem é arrastado (complemento), porque o caso oblíquo é usado para complementar a oração. Por isso o gramaticalmente certo é dizer "vou amá-la", já que "la" é pronome oblíquo, que serve a complementos. Portanto, 

caso reto = função subjetiva. Caso oblíquo = função completiva. 

Daqui se pode explicar a nomenclatura reto x oblíquo, o porquê de os pronomes pessoais serem chamados desse jeito. O que é uma coisa reta? O que é uma coisa oblíqua? Reto é o que vai direto na mesma direção, é o que não tem curvas, e, aplicando isso ao pronome, é o termo que logo desponta na direção de quem fala, que é percebido de primeira, e o sujeito é esse termo primordial, essencial, pelo qual toda informação transcorre. Oblíquo é o oposto de reto, que é curvo, torto, inclinado, que muda a direção; o pronome se chama oblíquo porque ocupa posição secundária na ordem da informação.
           
Na frase do 12º quadro, “aí jogou a nenê pra mim”, o pronome não aparece. Dentro do contexto maior, o aluno entenderá que Harvey Bullock se refere ao Batman, porque todos os personagens estão falando sobre sua experiência com Batman. Sem problemas a oração ficaria “aí [Batman] jogou a nenê pra mim”, mas, como dito no início, ninguém no velório se refere diretamente ao super-herói, e sim em 3ª pessoa, razão de o verbo jogar estar com a desinência de 3ª pessoa do singular (“jogou”). A palavra ali suprimida é o “ele” (“aí [ele] jogou a nenê pra mim”), o que faz do Batman, nessa fala de Harvey Bullock, ser o sujeito da oração (quem jogou a nenê pra mim? [ELE, o BATMAN]). Isso nos conduz a explicar o conceito de tipos de sujeito, em especial o sujeito oculto, elíptico ou desinencial, que não vem expresso na oração, porém reconhecível pela terminação do verbo que sempre indicará, mais uma vez, um pronome pessoal do caso reto, porque o caso reto é usado para sujeitos da oração. Nesse ponto pode-se falar que o sujeito oculto oculta mais que um termo, oculta intenções de quem oculta o termo, e, com isso, revelar o posicionamento ideológico do falante da língua. Se alguém disser “quebraram o cano-mestre da cidade”, estará ocultando (ou indefinindo também) os responsáveis pelo incidente (quem “quebraram”?), e isso pode indicar desconhecimento dos culpados ou então proteção a eles. Se disser “quebramos o cano-mestre da cidade”, esse alguém está se incluindo aos culpados. Se for dito “quebrou-se o cano-mestre da cidade”, a intenção é dizer que ninguém quebrou nada, o cano, por si mesmo, foi danificado; mas será verdade? Tudo depende de quem fala, e, nesse caso, de quem oculta. Portanto, o primeiro desvendamento do efeito de significância que aqueles termos indefinidos produzem na obra artística é o de que, da mesma forma como numa hora o nome “Batman”, representado pelo pronome “ele”, é sujeito, noutra hora, é complemento, o Batman ocupa, no enredo, dois papéis simultâneos: o de protagonista e o de figurante. Protagonista por, mesmo estando morto, sua presença permear cada e todas as versões dadas pelos personagens, está imerso em cada cena, estar de corpo presente ainda que como um cadáver. Batman é, assim, mais sujeito dos acontecimentos do que qualquer outro personagem ali, mais sujeito das ações do que mero complemento das ações. Figurante por, mesmo sendo o assunto do momento, servir de pretexto para que cada personagem apareça para “brilhar” em seu momento de evidência, dando, cada qual, a sua versão, e não o fato verídico; na realidade, os depoentes, ao falarem sobre o Batman, estão falando de si mesmos usando o Batman. Assim é que o Cavaleiro das Trevas, ofuscado por cada jeito diferente de comentá-lo, torna-se invisível na reunião lúgubre, a ponto de ser referido como algo em 3ª pessoa, à parte, como se seu corpo não estivesse ali.  Aqui se responde à pergunta do 6º parágrafo deste artigo, “por que será que ninguém ali se refere ou se dirige diretamente ao Cavaleiro das Trevas se, em condições normais de um velório, as pessoas falam do finado como se este as ouvisse?”.

Batman, simultaneamente protagonista e figurante no conto de Gaiman a partir da articulação dos termos essenciais e integrantes da oração.
Por fim, mas não menos importante, é o aspecto do verbo que o professor, querendo revisar verbo de ligação ainda dentro do estudo da sintaxe, pode chamar a atenção para a 1ª quadrícula da página-1. Lá, a detetive Renee Montoya diz ao policial Harvey Bullock:

— Tá dizendo que o homem é a própria cidade?
— Não, Montoya, digo que o homem era a cidade.

Fazer a turma perceber a diferença entre é e era é o fundamental. Um está no presente, outro está no passado. Aí a galera pode especular à vontade os possíveis entendimentos que ela tem sobre as frases acima. Uma especulação seria: "Renee Montoya usa o verbo ser no presente por que, para ela, Batman é um mito imorredouro?". Outra especulação seria: "Harvey Bullock usa ser no passado por que, para ele, Batman era um simples homem que bateu a caçoleta?". Um diz "é" porque considera como se o herói estivesse vivo, o outro usa "era" porque considera o herói morto. O mito é algo que morre ou que vive? Qual tempo verbal você usaria para referir-se a esse episódio enlutado para um parente especial? Depois disso é necessário fazer o estudante perceber que é e era não estão ali indicando ação nem fenômeno da natureza, essa traditiva conceituação do verbo. Se não indicam ação nem fenômeno, então indicam estado, o estado de espírito ou de prestígio em que o Vigilante de Gotham repousa ou desfruta. Podemos perguntar: “Esse estado, nas frases citadas, é permanente ou é transitório? Induzidos pela distinção temporal do verbo feita antes, alguns dirão: “Pra Montoya é permanente; pra Bullock foi transitório”. Independentemente das respostas, ficará claro que o verbo ser, ali, sempre designará um estado e portanto já pode ser revelado como um verbo de ligação; é aí que se pode dizer, de modo memorável, "verbos de ligação não indicam ação e sim o estado do sujeito, ligando dois termos, o sujeito e as suas características".

Sabendo de uma forma mais ampla que Batman é o sujeito da oração (representado nas duas orações pelo termo “homem”), a sua característica – a que a gramática chama de predicativo do sujeito – é “cidade”. Em outras palavras, de um lado, as boas características da cidade Gotham City são absorvidas pela boa figura do Detetive Mascarado, do outro lado, o Detetive Mascarado é absorvido pela cidade. Um no outro se fundem, de sorte que já não é mais possível separá-los, dissociá-los, distingui-los; cidade e cidadão se confundem, sendo cada um a personificação do outro. Esse efeito de sentido por analogia e semelhança, usando um verbo de estado, chama-se metáfora, que é diferente da comparação, que usa preposição ou termos conectores (“como”, “feito”, “igual a”, “semelhante a”). A frase não é “tá dizendo que o homem é como a própria cidade?”. Não há o “como”, somente o verbo “é”. Significa que, no entender dos personagens, Batman não é comparável à Gotham; efetivamente, Batman é a própria Gotham. Nesse estágio, não precisa apresentar aqui todas as figuras de linguagem – não haveria tempo nem necessidade –, basta apresentar essas duas, peça-chave para o último desvendamento do texto artístico. É visível que nas cenas que se seguem, o velório do super-herói reúne, numa relação de antítese, o bom e o mau de Gotham City; o bom representado pelos personagens ligados à justiça, a outros super-heróis parceiros e a pessoas salvas; o mau é representado pelos vilões. Bons e maus representando todos os cidadãos gothamitas em torno do Batman, ele que é também uma representação da Gotham City. O aluno vai percebendo o efeito da metáfora se agigantar: num recorte amostral, a cidade está toda ali, metaforizada naquele funeral que, ao fim de toda a história em quadrinho, revela-se um lapso temporal para que um bebê chamado Bruce Wayne nascesse de sua mãe Martha Wayne, refazendo o curso cíclico da lenda do Cavaleiro das Trevas. Aqui se finda o derradeiro desvendamento do efeito de significância exercido nessa obra artística. Batman não é mais um ser comum, é o espírito de Gotham City que se renova e vem à tona de eras em eras.

Pelo aprendizado e pela interpretação do que é verbo de ligação nota-se, no conto, que Batman e a cidade são a mesma coisa. 
Como docente, meu desejo é ver toda aula de língua portuguesa associada ao estudo dos textos, bem como toda aula de ciências não estar separada dos seus objetos de análise. Investigar, como investiga Batman, é a condição fundamental do saber, e por isso considero cada aluno interessado um detetive (um Batman) em potencial, aguardando apenas a oportunidade com os instrumentos certos. Entretanto, antes desse meu genuíno desejo, há outro muito maior e que dele depende o segundo; o de que, para tanto, os governos e empresários nos paguem bem, equipem as escolas e universidades, e o povo brasileiro aprenda a valorizar a educação como prioridade. A você, professor, o salário de um político, o prestígio de um jogador de futebol.


Cena final de O que Aconteceu ao Cavaleiro das Trevas. A história da lenda de Gotham recomeça.

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WAGNER WILLIAMS ÁVLIS – crítico literário da Academia Maceioense de Letras (reg. O.N.E. ​nº 243), professor de língua portuguesa, articulista, historiador do Homem-Morcego.



[1] O que, por extensão, pode-se compreender que em aulas de idioma qualquer material contendo aquele idioma pode ser usado para demonstrar os conceitos gramaticais e ampliar o entendimento da língua e do objeto que faz uso da mesma língua.

[2] Só esse tópico levantaria outra discussão que, por ora, não cabe aqui. Por isso insisto tanto em pregar que os artistas envolvidos na 9ª arte se empenhem em compor histórias em quadrinhos como obra de arte marcante, comprometida com o desenvolvimento cultural do indivíduo, não apenas como produto de consumo a entretenimento de massa (que é descartável). Se quiserem que a arte sequencial tenha o respeito da população, o respeito a ela deve começar pelos que a produzem.

[3] O que Aconteceu ao Cavaleiro das Trevas?. Roteiro de Neil Gaiman com desenhos de Andy Kubert. São Paulo: ed. Panini, 2013, 132 pgs. Páginas usadas aqui: 20-21 e 49.

[4] Machado de Assis expôs esse assunto em seu Memórias Póstumas de Brás Cubas, cap. I “óbito do autor”: “[Eu] era solteiro, possuía cerca de 300 contos e fui acompanhado ao cemitério por onze amigos. Onze amigos!”.

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