Nossas guerras secretas – O reboot atual do Capitão América

 


Semanas atrás, a Val postou um texto falando sobre os eventos que a Marvel lançou no iníciodos anos 2000. Enquanto falava com ela, nos comentários, sobre minha opinião em relação aos eventos eu citei que uma das minhas críticas era a forma como as histórias colocavam suas mudanças e reflexão política acima da execução das ideias e os personagens, com alguns deles (como Homem de Ferro e Sr Fantástico) tendo sido muito descaracterizados para justificar tais mudanças nas histórias.



Pode-se argumentar que essas inconsistências são algo natural das hqs, com personagens sempre mudando, dependendo do roteirista, para refletir o contexto político e social da época em que se passam as histórias. Personagens de ficção são uma forma de expressão artística, tendo uma mensagem sobre a visão do autor em relação ao mundo.

No caso de histórias como Guerra Civil, Invasão Secreta e Reino Sombrio, elas representavam o clima cínico e paranoico do mundo pós-11 de setembro, tratando super heróis como uma alegoria a força de segurança nacional e os usando para aborda mensagens como questões como violação de privacidade, corrupção no sistema e dilema de liberdade vs controle.



No entanto, como expliquei naquela sessão de comentário, eu sinto que tinham formas de abordar esses tópicos sem comprometer os personagens e provocar uma divisão entre os fãs (se bem que, conhecendo a reação de fãs a qualquer mudança, provavelmente não daria certo, mas vale a pena uma tentativa, certo?)

Eu poderia dedicar um texto falando como eu teria montado esses eventos da Marvel nos anos 2000 e evitado alguns de seus pontos polêmicos. No entanto, decidi fazer essa review falando de uma história que aborda o contexto daquela época: Nossas guerras secretas.

Escrita por Chip Zdarsky e ilustrada por Valerio Schiti, essa história se trata do arco das primeiras 5 edições da fase atual de Zdarsky, que começou a escrever as revista do Capitão América a partir de julho desse ano. Embora a história tenha sido escrita no presente, sua trama é um soft-reboot, modernizando a origem conhecida do Capitão América por meio de uma pergunta: O que aconteceria se o Capitão América tivesse despertado nos anos 2000, no auge da guerra ao terror?



 

Trama

Pouco tempo depois de ter sido encontrado pelos Vingadores, Steve Rogers tenta recomeçar sua vida no século XXI. Durante esse processo, ele não só lida com luto pela perda de seu parceiro, Bucky, mas também com sua reação as mudanças na América, com povo é paranoico e desiludido com o país pelo qual ele lutou.



Apesar de receber oferta do Homem de Ferro para se unir aos Vingadores, ele recusa, escolhendo continuar seu trabalho como um militar a serviço do governo americano. Sendo recrutado pelo General Ross, O Capitão América é enviado numa missão, ao lado de uma versão atual dos Comando Selvagem, para resgatar cidadãos americanos que estavam sendo mantidos reféns na Latvéria por seu soberano, o Doutor Destino.



No entanto, essa missão de resgate logo se tornar um choque de realidade para Steve, fazendo o super soldado questionar seu lugar no novo século. Ele irá continuar agir como um cachorro do governo  ou irá renegar o país que  ele representa como um símbolo?

 

Capitão América de Zdarsky vs Capitão América de Mark Millar






Alguns de vocês vão apontar que esse conceito do Capitão América no contexto da Guerra ao Terror, não é novidade nenhuma. Nos anos 2000, as histórias do Capitão América foram uma das mídias que mais abordou esse tópico, pela mão de autores como John Ney Rieber, Ed BrubakerMark MillarA diferença se encontra na forma como eles abordaram essas questões.

Mark Millar, em particular,  retratou o Capitão América de duas formas diferentes em hqs paralelas, sem meio termo.

A primeira foi suasérie dos Supremos. Se passando no universo Ultimate, ela mostrou uma versão diferente do Steve Rogers, sendo retratado como um soldado mais conservador, que é fiel a SHIELD e ao governo e realiza uns comentários bem politicamente incorretos (o famoso “Tá pensando que essa letra na minha cabeça é inicial da França?”). Ele basicamente representa um Capitão América mais próximo do governo e menos crítico, comparado com a versão do universo 616.



Falando nela, a versão principal do 616, escrita por Millar no evento da Guerra Civil, parece ser o Capitão que conhecemos, com a atitude dele se opor a Lei de Registro sendo condizente com o personagem. Porém, conforme a história vai se desenvolvendo, o Millar vai caracterizando o Steve como um revolucionário extremista, não tendo as qualidades de liderança e reflexão que são importante para o personagem.

Isso fica evidente durante o primeiro confronto entre o grupo do Capitão e do Homem de Ferro, quando esse último monta uma emboscada, cercando Steve e seus aliados. O Homem de Ferro tenta acalmar as coisas, oferecendo anistia para o grupo do Steve e pedindo apenas 5 minutos para conversar com o Capitão. Ao invés de tomar essa oportunidade para resolver as coisas de forma diplomática ou aproveitar o tempo para pensar numa estratégia que garantisse que ele e seu time conseguissem fugir, Steve simplesmente  planta um dispositivo na armadura do Tony e começa a ataca-lo sem parar. Nada de estratégia ou plano. Apenas esperança que o time dele vai vencer na força bruta.




Esses momentos, combinados com alguns diálogos na história e o final onde Steve se rende as autoridades, declarando que ele e seu grupo estavam errados, e sua morte na fase do Brubaker (que é o melhor dos 3 autores) faz parecer que o Millar  está dizendo “A América que conheciam está morta. Essa é a América atual. O lado do Homem de Ferro e do governo estão corretos. Quem discorda deles é uma pessoa imatura que está presa ao passado”.



Essa mensagem não só reflete o cinismo da época, mas também contraria a essência do Capitão América, dele ser esse herói deslocado mas que ainda defende os bons valores da época, lembrando que, só porque algo é do passado, não deixa de ter importância em dias atuais.



É aí que o Chip Zdarsky consegue se destacar deles, não descaracterizando o Steve ou retratando como uma caricatura do grupo contra o governo. Ele é mais um observador dessa mudança, que continua figura heroica e crítica que os fãs conhecem das hqs e filmes. Ele só não encontrou ainda sua posição nesse conflito ideológico.



Sua decisão de querer, a princípio trabalhar para o governo pode parecer ingenuidade, porém condiz com o estado atual do Steve na história. Em apenas um dia ele não só perdeu seu parceiro como passou séculos congelado. Nesse ponto, ele querer trabalhar para governo, pode ser visito como Steve tentando resgatar uma das poucas coisas que sobraram de seu passado, seu trabalho servindo ao país.



No entanto, quando chega a Latvéria sua visão começa a ser desafiada por duas figuras: Doutor Destino e Dave Colton, o soldado que assumiu o manto do Capitão durante a guerra no Oriente Médio.




Através das interações do Capitão com o Doutor Destino, Zdarsky dá foco em uma dinãmica pouco explorada das hqs. Embora seja um dos maiores vilões da Marvel,   Destino mostra ter uma grande admiração pelo Capitão América (afinal, ele foi inimigo de Hitler, que oprimiu grupos como os ciganos, do qual Destino fazia parte), dizendo como herói foi uma inspiração para se opor ao governo que oprimia seu povo. 



Naturalmente, Steve aponta a hipocrisia de Destino, e como ele se tornou opressor de seu povo, porém, o vilão tem um contra-argumento, apontando para o Steve os crimes do próprio governo american  no exterior, usando os valores de "liberdade e justiça" que o Capitão tanto defende como uma mentiras para invadir outros países e alterar o governo deles para beneficio próprio. Eles não estão libertando ninguém de uma tirania, apenas substituindo o atual governante por um que esteja disposto a negociar com eles, independente dele continuar ou não a oprimir o público.



Isso é confirmado quando é revelado que os Estados Unidos tiveram um papel em ajudar Destino a chegar ao poder (com este tendo prometido pagar aos americanos com tecnologia e recursos). A missão do Capitão e seus esquadrão não era para resgatar civis, mas sim eliminar qualquer um (incluindo crianças) que pudesse expor o envolvimento do governo americano nesse esquema.




É nessa hora que o arco de Dave Collum, o Capitão dos anos 2000, revela sua força. A primeira vista, o personagem pode parecer mais um “John Walker 2.0”, um Capitão América que é fiel ao governo e obedece suas regras cegamente, o que poderia tornar o eventual conflito dele com Steve algo bem genérico e previsível.

No entanto, Zdarsky subverte essa expectativa, com flashbacks que mostram como ambos são soldados patriotas mas com bom coração e desejo de fazer a coisa certa.


No entanto, enquanto Steve é um homem deslocado no tempo, que está começando a ficar ciente da corrupção no governo americano, Collum já teve sua perspectiva quebrada pelo governo, com a culpa e a vergonha que ele carregou as experiências tendo tido efeito em sua mente.   





Descobrir as verdadeiras intenções do governo foi a gota d’agua, trazendo à tona toda raiva destrutiva que ele tinha guardado dentro de si. Quando ele e Steve se enfrentam, não é o Capitão enfrentando uma versão maligna dele próprio, mas sim um reflexo do que ele poderá se tornar caso não encare essa dura realidade.



Todas essas experiências contribuem para fazer Steve reconhecer a importância de seus ideais e fé nas pessoas, e perceber que a forma de fazer a diferença no mundo não é servindo ao governo ou forçar o mundo a se encaixar em sua imagem, mas sim continuar a agir como o homem bom e heroico que ele é, representando para outros o melhor não só do seu país e também das pessoas e dando esperança para elas nesses momentos difíceis. Não se trata forçar outros a mudarem, mas sim não deixa-los mudar quem ele é como individuo.

 


Considerações finais

Ainda é cedo para dizer que a fase do Chip Zdarsky é a melhor do Capitão América até agora. Ele ainda continua escrevendo a revista e sua qualidade pode sofrer mudanças no futuro. Mas, eu posso dizer que Nossas guerras secretas é não só um excelente primeiro arco, mas também um bom ponto de partida para qualquer um que queria começar a ler o Capitão América (coloco no mesmo patamar que Homem de Ferro Extremis e Batman Ano Um). 

É um arco profundo, que aborda o lado questionável do governo americano mas, ao mesmo tempo, preservar o conceito do Capitão América e o que torna o personagem tão relevante.

Histórias como Guerra Civil podem ter representado os tópicos dos anos 2000, mas “Nossas guerras secretas” foi a que melhor representou o que é ser um herói idealista como Capitão América naquela época de moral tão questionável.

Nota: 10/10



Então é isso! Qual a opinião de vocês quanto ao Capitão América do Chip Zdarsky? Tão gostando da hq? Sintam-se a vontade para colocar suas opiniões e ideias nos comentários abaixo