A gente vive numa era em que a
cultura pop parou de entreter e começou a noticiar. Todo filme quer parecer uma
manchete, toda série quer soar “relevante” e cada herói precisa encarnar uma
posição política. O problema é que, quando tudo vira discurso, nada mais tem
consequência. A indignação virou estética, o engajamento virou métrica e o ódio
virou pauta vendável. Não é mais sobre contar boas histórias — é sobre ganhar a
guerra da narrativa. E nisso, Hollywood virou um reflexo ampliado do Twitter:
barulhento, polarizado e com uma urgência histérica de provar que está do lado
certo da História, mesmo que isso custe a verdade.
E aí a pergunta que sobra é simples — e incômoda: até que ponto essa “consciência social” não virou o novo escapismo? A cultura pop aprendeu a nos entreter com a própria ruína. A gente assiste o colapso moral em 4K, comenta, compartilha e vai dormir com a sensação de dever cívico cumprido. Só que, no dia seguinte, nada muda. É o mesmo ciclo de raiva reciclada em espetáculo. Eu não tô dizendo que arte não deve falar de política — mas talvez a gente precise admitir que a política também aprendeu a se disfarçar de arte.
1. Como chegamos aqui
A cultura pop sempre foi política
— mas sem a pretensão de ser um sermão. “Rocky” já era sobre desigualdade,
orgulho nacional e meritocracia, mas ninguém precisava de um textão no X para
entender isso. “Star Wars” era sobre império, rebelião e fé — e mesmo assim
virou brinquedo. “Matrix” foi sobre controle, realidade e corpo antes de
qualquer thread de filosofia aplicada. Só que naquela época, a política vinha
misturada com sangue, suor e personagens com falhas. Hoje, o discurso virou
produto. E o público, consumidor de causas. Antes a arte te desafiava a
entender o que ela queria dizer; agora ela exige que você concorde antes mesmo
de sentar na poltrona. E se você ousa dizer “não gostei”, é tratado como um
problema moral, não como alguém com gosto diferente. O estúdio te entrega uma
bula antes do filme: “essa obra é sobre empoderamento”, “esse é o filme sobre
diversidade”, “esse é o vilão certo de odiar”. O que era subtexto virou
legenda.
E o motivo é simples: o medo. O medo de errar, de ofender, de não estar do
“lado certo da história”. O artista deixou de ser contador de histórias pra
virar diplomata de sensibilidades. Quando tudo precisa ser inofensivo, tudo se
torna inofensivo. A arte que incomoda virou “tóxica”, e o entretenimento que
provoca virou “problemático”. É por isso que tanta produção recente soa igual —
porque nasceu do medo de ser cancelada. Só que um filme feito pra agradar a
todos não comove ninguém. É bonito ver representatividade nas telas, claro —
mas quando isso vira a única métrica, a história morre antes da primeira
reescrita. No fim, o público quer emoção, não checklist. Quer conflito, não
consenso.
2. Quando o discurso engoliu a
história
“Barbie” é o caso mais didático
disso. Um filme espirituoso, com ótima direção e ritmo, que poderia ser
lembrado como uma comédia social à altura de “O Diabo Veste Prada”. Mas foi
vendido como uma tese de gênero em formato de blockbuster. O marketing prometeu
revolução, o público esperava epifania — e muita gente esqueceu que era, no
fim, uma sátira divertida com bonecos. “The Boys” começou como uma crítica
afiada à cultura de super-heróis e à manipulação ideológica, mas foi se
transformando num megafone de redes sociais, onde cada temporada parece escrita
para responder tweets. Até os heróis ficaram reféns da pauta. E não é
coincidência: a indústria descobriu que a polêmica gera mais engajamento que o
roteiro.
Veja “Capitão América 4”, por exemplo — um filme que antes mesmo de estrear já era
mais debatido pelo peso simbólico do novo protagonista do que pela trama.
Ninguém sabe qual sabia (ou ligava?) qual seria o novo arco do Sam Wilson, mas
todos já escolheram um lado sobre o que ele representa.
E isso não é política, é
branding.
O problema é que, nessa ânsia de
provar virtude, as narrativas perderam coragem de ser incômodas. Personagens
não erram mais por convicção, erram por cálculo. Vilões não têm mais propósito,
têm hashtags. É o algoritmo decidindo o tom moral das histórias.
E enquanto isso, as produções que realmente desafiam — “The Bear”, “Succession”,
“Oppenheimer” — falam de
humanidade, ambição e fracasso sem precisar pregar nada. São séries e filmes
que entendem o básico: moral não se impõe, se revela. O espectador quer pensar,
mas o estúdio prefere mastigar por ele. E quando o público percebe que estão
falando com ele como se fosse um aluno em aula de comportamento, ele
simplesmente desliga.
3. O que ainda pode ser autêntico
Mas há esperança — e ela vem do
cansaço. O público está exausto de panfletos com trilha sonora épica. Quer
histórias que sobrevivam à pauta. “Duna 2” e “Top Gun: Maverick” provaram que
dá pra falar de poder, legado, responsabilidade e ética sem enfiar slogans no
roteiro. São filmes de gênero, mas com coração e pulso. É curioso: quanto mais
o discurso tenta controlar a narrativa, mais as boas histórias escapam por
frestas. Às vezes elas aparecem onde menos se espera — numa animação japonesa,
num drama argentino, num quadrinho de banca. “Immortal Hulk”, por exemplo,
falou de identidade, trauma e corpo sem precisar pedir desculpa por ser uma HQ
de monstro. “Gotham City: Ano Um” discutiu gentrificação e justiça racial
dentro do universo do Batman, e mesmo assim foi ignorado por quem só enxerga
valor quando o marketing carimba “obra política”.
O ponto é que a autenticidade, hoje, é o último ato de rebeldia. Fazer algo que
não grite, mas diga. Que não tente agradar todo mundo, mas que fale com quem
ainda quer escutar. A arte perdeu a timidez e ganhou insegurança. E talvez o
próximo passo seja o inverso: voltar a dizer menos e significar mais. O
silêncio pode ser mais subversivo que o manifesto. No fim, o público pode se
acostumar com o ruído, mas nunca deixa de reconhecer quando alguém fala de
verdade. E talvez seja aí que ainda resida o cinema, o quadrinho e a série que
valem o tempo — naquele instante em que você para, pensa e sente que, por um
segundo, alguém teve coragem de não te vender nada.



