A Eucatástrofe da História: Deus, Cultura Pop e a Busca por um Final Feliz


O tique-taque do relógio ritma a dança imparável do cotidiano. Às 7h, o ponto é batido com precisão — nem um minuto antes, tampouco depois. Afinal, essa dança segue passos fixos, cíclicos: idas e vindas de casa ao trabalho e do trabalho para casa.

Todos, em algum momento, são convidados para esse baile chamado contas a pagar — e a eterna busca pelo pão de cada dia.

Sim, estamos no mesmo barco, navegando rumo a um futuro incerto. O agora é o que importa. Boletos não esperam. E assim, quase sempre, nos vemos presos à monotonia de uma vida corrida, onde o prazer foi trocado por um beijo frio. Um beijo de uma esposa constante chamada rotina, que, como Dalila, corta os fios da nossa liberdade e nos prende com correntes invisíveis.

Admito: essa é uma visão amarga. Ela nasce quando perdemos o sabor do sal — aquele que dá gosto à comunhão, ao afeto entre irmãos e amigos. Ou então quando nos deixamos afundar em pensamentos nublados, incapazes de enxergar a verdadeira luz que nos guia.

Ainda assim, algo dentro de mim clama em alta voz: "há motivos para prosseguir". Foi ouvindo essa voz que arranjei tempo (ou talvez o criei) para ler. Para experimentar. Para descobrir novos mundos — e desbravar os vastos territórios da imaginação e da Revelação.

Fugindo dos meus habituais quadrinhos de super-heróis, resolvi iniciar a leitura de um livro de caráter teológico — algo que há tempos não fazia. O escolhido da vez foi Os Outros da Bíblia: História, fé e cultura dos povos antigos e sua atuação no plano divino, de André Daniel Reinke, que tanto gosto de ouvir nos podcasts do Bibotalk e tive a oportunidade de ler.

O título é longo, assim como a jornada que ele propõe: atravessar séculos de história e mergulhar no imaginário cultural de povos antigos — os “Outros”. Eles recebem esse nome por não serem o foco principal das narrativas bíblicas, como os hebreus, mas sua presença é fundamental. O livro nos mostra como os judeus, “Aqueles da Bíblia”, foram moldados pela interação com essas outras culturas, que também fizeram parte do grande plano da Revelação divina, de forma alguma podemos excluí-los desse processo revelacional.

Ali, entre páginas e páginas, encontrei uma nova perspectiva. A leitura era uma forma de trocar o fardo da rotina por um julgo suave e outro fardo leve. Era como se, ao voltar minha atenção para aquilo que transcende o imediato, eu pudesse vislumbrar um futuro melhor. Em outras palavras, o "Totalmente Outro", o Deus Transcendental, estava ali, presente, imanente e habitando entre nós.

Você, caro leitor, pode estar se perguntando: “o que isso tem a ver com a proposta do site?” A resposta é clara: a ficção contemporânea — seja em gibis, filmes ou séries — em muitos casos bebe da mesma fonte de inspiração revelacional, mesmo que de forma indireta e talvez imperceptível ao nosso primeiro olhar. 

Prometi ao Ozymandias, há um tempo, escrever algo sobre isso — sobre a fé na cultura pop. E lendo esse livro, essa verdade se tornou ainda mais evidente. A luz do Logos, o Verbo Encarnado, ainda brilha:

“Ali estava a luz verdadeira, que ilumina a todo o homem que vem ao mundo.”
João 1:9

Todos os homens são agraciados com a Graça Comum — aquela que permeia a humanidade e manifesta o sentido que rege o mundo. Essa lógica é o Verbo que está presente na sagrada escritura, que no original é conhecido como Logos. Aqui, temos novamente o reflexo de uma interação cultural, oriunda do processo de helenização do mundo antigo. Esse conceito da filosofia grega é integrado diretamente na Bíblia, passando a ganhar carne e pessoalidade nas palavras do apóstolo João:

“E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós [...]”
João 1:14

Ele habitou entre nós. E como cristão (não que isso precisasse ser dito, a esta altura), afirmo com convicção: temos um Deus que se revela plenamente na figura do Deus Filho, Jesus Cristo. Ele não apenas cumpriu as expectativas messiânicas do povo judeu, registradas em profecias e textos sagrados, mas também encarnou os anseios espirituais das nações — esse clamor por um Salvador que atravessa mitos, histórias e culturas.

Esse mesmo anseio ainda hoje pulsa. Invade as telas de cinema, os gibis, os livros e as séries. Está em toda parte. E talvez você nunca possa ter percebido, porém, na imaginação humana, o arquétipo do Salvador está ali e essa análise metanarrativa pode nos levar de volta à luz verdadeira e ao Paraíso perdido.

Autores como C.S. Lewis e J.R.R. Tolkien deixaram clara, em suas obras, a presença de verdades espirituais — mesmo em mundos fictícios habitados pelo pecado e pela queda.

Na mítica Terra-média, vemos reflexos da Revelação. Em Nárnia, somos guiados por Aslam — uma analogia ao Leão de Judá. E tantos outros mundos ficcionais, criados com beleza e dor, oriundos de mentes criativas semeadas com a mesma graça revelacional, ecoam a esperança por um mundo melhor.

Entretanto, é preciso notar que a representação do Salvador na mídia pode ser deturpada. O mesmo coração humano que anseia por salvação também luta com sua própria inclinação ao pecado. Por isso, muitas vezes, os arquétipos messiânicos são distorcidos. O desejo pode ser pervertido — e isso também revela algo importante: o conflito espiritual travado dentro de cada um de nós.

Thanos, por exemplo, vê-se como um redentor cósmico, disposto a sacrificar metade do universo por uma suposta harmonia. Omni-Man e Capitão Pátria, por sua vez, carregam traços do “Salvador” em sua força, origem e papel central, mas esvaziados de virtude e empatia. Esses falsos cristos (Anti-Cristos) da cultura pop nos confrontam com a realidade da queda: o poder, quando desconectado da verdade, torna-se tirania.

Esses desvios narrativos, ainda que sombrios, não anulam o arquétipo verdadeiro — apenas evidenciam o quão sedenta está a humanidade por redenção real. E, no contraste entre a luz e as trevas, o brilho da verdadeira esperança se torna ainda mais claro, como enfatiza o lema do Lanterna Verde.

André Daniel Reinke, autor de Os Outros da Bíblia, chama esse final de “Eucatástrofe” —  o momento inesperado em que tudo muda, em que a luz rompe as trevas e há redenção. E esse conceito não é recurso exclusivo da literatura, ele representa o próprio destino da nossa história. Está presente no cinema, na típica jornada do herói: o conceito do "Escolhido", tão presente em Star Wars, no sacrifício de Darth Vader, ou em O Exterminador do Futuro.

E como esquecer o maior herói dos quadrinhos? O último filho de Krypton, descendente da Casa-El (nome sugestivo), vindo do céu — ou melhor, do espaço — criado por um casal simples, em uma vida comum. Sim, há ecos do Servo Sofredor do Novo Testamento ali. O Homem-Aranha não fica para trás ao agregar o peso da moral e responsabilidades ante ao chamado. E não são apenas essas histórias, mas muitas outras que tratam de um Salvador, fincando no imaginário popular a mesma ideia.

E é por isso que eu digo:
Porque Aslam vive.
Porque Sauron foi destruído.
Porque o Império de Palpatine caiu.
Podemos dizer: ainda cremos em um amanhã.

A ficção traduz uma constante universal que pulsa no coração humano: a necessidade de acreditar, de ter fé e esperança. A certeza de que, mesmo em meio à escuridão, há um fio de luz nos conduzindo.

E aqui, falo como um homem de fé. A ficção brada ao mundo caído a célebre frase:
Ainda há esperança.
Ainda há motivos para continuar.

Nossa história terrena caminhará rumo a uma Eucatástrofe — não qualquer final, mas um final feliz.
Apocalipsenão o “fim do mundo”, como é tão popularmente entendido, mas a plena Revelação de Deus — nos mostra que existe um Senhor que enxuga as lágrimas e triunfa sobre o mal. 

Pegando o gancho de outra parábola de Cristo, entendemos que as portas do grande banquete estão abertas. O Rei convida a todos para partilhar dessa comunhão, não a dança da monotonia, cansaço e desesperança, mas sim, o viver com o coração batendo no ritmo da esperança. 

A Serpente teve sua cabeça pisada. A semente da mulher foi ferida, mas a morte do herói não era o fim da jornada. Sua ressurreição é o sinal definitivo da nossa vitória.

Nossos heróis de gibis, filmes e séries — todos eles revelam um anseio do nosso coração:
o desejo de continuar a viver e desfrutar de um final.
Não qualquer final.
Mas um final feliz.



Siga o Spidey no Disqus: https://disqus.com/by/Spideytheamazing/