Mesmo antes de Ícaro, já era um clichê. O Mito de Ícaro foi tão-somente o clichê de impressão do clichê : asquelmintos que somos, uma das grandes aspirações do Homem sempre foi a de ganhar os céus, os ares.
O Homem, insatisfeito pela conquista do planar raso do bipedalismo, sempre quis voar : talvez inspirado pelos e invejosos dos albatrozes, das águias, dos gaviões, das harpias, quiçá dos everésticos urubus, que têm, é verdade, o mais repugnante dos cardápios, porém a mais maravilhosa das paisagens, a mais panorâmica das vistas, o mais cabal dos silêncios (afinal, o que é engolir uma carniça em troco das estratosféricas tranquilidade e solidão? E nós, que a tantos sapos engolimos em troca do rés do chão?).
Eu, que também sou Homem, apesar de renegar e amaldiçoar minha natureza de, não sou homem o suficiente para fugir às minhas amarras e diretrizes biológicas : também sempre sonhei em voar.
Painar. Poeirar. Anemofilar. Dente-de-leonar.
Contavam-me, meus pais, e eu até creio me lembrar de, embora não tenha certeza de me lembre do fato em si ou dos relatos repetidos dele, que eu, aos três anos de idade, tempos de TV e de fotos a preto-e-branco (aliás, lembro de minha criança sempre em preto-e-branco), era um telespectador assíduo e entusiasta do desenho animado O Príncipe Estelar (não dou garantias de que o nome seja este), personagem que envergava uma capa - que eu julgava e, portanto, via em azul na tela monocromática da TV a válvulas - e que cortava os ares feito um falcão peregrino por obra e graça de um medalhão mágico que trazia ao peito.
Por ideia fixa, insistência e birra de uma criança de três anos, que não tem nada o que fazer da vida, a não ser vivê-la, meu pai acabou por costurar uma capa a partir de um velho lençol ao qual tingiu de azul com tintura de anil ou com corante para roupas Guarany e por confeccionar um medalhão mágico em papelão.
Munido de tais artefatos, pus-me a correr pelo quintal, a ganhar velocidade, feito avião prestes a se arremeter ao ar; então, subi num pequeno muro e dele lancei-me à vastidão do firmamento, à glória. Nem por décimo de segundo, sustentou-se meu voo.
A gravidade - pior, a realidade - derreteu a cera que colava meus sonhos àquela capa e àquele medalhão.
Estabaquei-me. Dei com a cabeça - sempre nas nuvens - num caco de tijolo perdido por entre a grama alta do quintal. Carrego a cicatriiz no supercílio esquerdo até hoje; indelével marca e lembrete cruciforme. Lembrete de minha triste e patética natureza rastejante, de minha cruz a ser carregada.
Não me lembro da dor do ferimento. Do sangue. Do ardor do antisséptico. Do fisgar da agulha a costurar-me quatro pontos. Lembro-me, sim, da dor do espanto : por que eu não voara? Estava com a capa e o medalhão, por que não voara?
Meu malogrado voo talvez tenha sido, embora, obviamente, eu não soubesse nem tivesse como saber disso então, o meu primeiro choque de realidade, meu primeiro contato com minhas limitações. Não as limitações e proibições estabelecidas por meus pais, que destas eu era capaz de, só não era autorizado a. Sim das limitaçãoes físicas. Das limitações - e são as mais doídas até hoje - dos meus sonhos.
Uma vez gente, jamais voaria. Constatação muito pesada para uma criança de três anos. Talvez tal episódio tenha fecundado os embriões teratológicos de minhas insegurança e covardia; contra as quais, sempre nocauteado em pé, luto inutilmente.
Depois, vieram os carros voadores de George Lucas, no primeiro Guerra nas Estrelas, em fins de 1977. Na época, muito se discutia sobre a plausibilidade de toda a tecnologia retratada no filme de Lucas, indubitavelmente, o maior marco dos efeitos especiais de todos os tempos do cinema.
Seriam possíveis sabres de luz? Dirigiríamos, um dia, em breve, de preferência, carros voadores? Desatolaríamos, enfim, nossos pés do chão tão ingrato que nos foi a Evolução?
Pouco se me davam, àquela altura, ou àquela pouca altura, àquela rasteirice de minha existência, tais elocubrações.
Mesmo que possíveis, se para amanhã ou se para um futuro próximo, carros voadores não me interessavam. Eram o sonho de outro, de outros. Não o meu.
E eu já contava com 10 anos e meio de idade : desiludido da vida, não acreditava nem mais me fiava nessas besteiras.
Mais tarde um pouco, na puberdade, fase de sonhos coloridos e "molhados", fui um grande pterodáctilo, um grande ser planador das terras do Sonhar, dos territórios do onírico.
Por vezes, sobrevoei os edifícios de minha cidade; por vezes, voei rasante e célere pelas ruas de seu centro velho, sempre vazias pela madrugada; eis outro de meus sonhos : ruas vazias de gente.
Creio, no entanto, que o desgosto de acordar de meus voos, e ver-me chafurdado no lodaçal de minha realidade, era tão grande que, com o tempo, meu cérebro foi bloqueando meus sonhos condoreiros. Nunca mais sonhei-me imune à gravidade.
Sigo, hoje, pois, a invejar a sorte de qualquer pardal ou beija-flor, de qualquer mariposa ou barata cascuda.
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