Do Baú do Azarão (Ou : Antes do Formatinho; Muito Antes do Formatão)

Há o apreciador de bebidas alcoólicas e há o alcoólatra - o bebum, o pé de cana. O apreciador, o bebedor "social", digamos assim, é o cara que, volta e meia, saboreia a sua cervejinha, o seu vinho, em reuniões e encontros com amigos, em festas de famílias, ou que toma lá as suas três ou quatro latinhas num fim de semana. É o bebedor "esportivo", bebe mas não fica de porre, bebe mas não vomita. E só voltará a beber em alguma outra situação esporádica. Muito diferente do alcoólatra, que dorme e acorda pensando na hora em que irá beber de novo, que faz da birita o fio condutor de sua vida.

Da mesma forma - e em exata escala de analogia - há o leitor comum de quadrinhos de super-heróis, hoje chamadas pernosticamente de HQs, e há o leitor viciado e dependente das HQs, o adicto em figuras musculosas trajadas com colants apertadinhos.

O leitor comum é o cara que tem lá os seus heróis preferidos, mas não funda um torcida organizada em nome dele. Lê um gibi aqui, outro ali, um outro acolá... sazonalmente. Lê uma edição especial hoje, um encadernado daqui a um mês, e assim por diante. Não acompanha a cronologia do herói, não segue a vida do personagem feito uma tiete de pop star.

O quadrinólatra, não. O viciado em HQs funda seitas, igrejas em nome de seus preferidos. Enverga seus símbolos e emblemas em camisetas, canecas, capas de caderno, cuecas etc. Tem miniaturas de heróis a enfeitar suas estantes e criados-mudos. Não perde um lance - ou publicação - da trajetória do herói que escolheu para chamar de seu. É um BBB das bandas desenhadas. Muitos chegam a comprar a mesma história editada em diferentes versões de encadernação. Ele faz dos quadrinho uma das poucas - se não a única - fontes de prazer de sua vida. Dorme e acorda pensando nas próximas publicações de seu herói.

De onde se depreende que, antes de tudo, o quadrinólatra é um desocupado - e sei porque também já fui uma dessas felizes criaturas. Dos meus 11, 12 anos até fins de minha segunda década de vida.
E como quem tem tempo, caga longe (feito diz meu amigo Josimar), o fanático em HQ se debruça em tempo integral sobre a vida de seu personagem favorito. Sabe-lhe todos os pormenores, detalhes e minúcias. Sabe-lhe de seus pensamentos, dos bastidores de sua psiquê. Sabe a sua data de criação, os seus criadores, a ideia por detrás de sua concepção, qual foi a edição de sua estreia etc etc.

O fã de HQs passa também a se sentir um pouco dono da vida do herói, meio que se sente na posse e no controle dos rumos futuros do personagem. Passa a criticar e a repudiar qualquer mudança no personagem que não lhe agrade, seja no argumento, seja no desenho, ou no desenhista que o ilustra. Quer arrumar briga de foice com um quadrinólatra? Mude o uniforme do seu herói sem o seu consentimento, sem lhe ter pedido opinião. Não importa a mudança, ele, o fanático em HQs, com certeza, teria feito melhor - isso, é claro, lá na cabeça dele.

Assim como tem a sua galeria de heróis preferidos, o fanático tem também o seu panteão de argumentistas e desenhistas favoritos; bem como um extenso aterro sanitário deles, onde joga os seus desafetos. Eu mesmo tenho o meu desenhista mais odiado, o meu inimigo público nº 1 : Mike Zeck. Tenho asco, uma verdadeira ojeriza ao tal Mike Zeck. Até hoje. Além de desenhar, de fato, mal pra caralho, de ter uma noção alienígena de anatomia e movimentos, o estrupício deu o azar de substituir dois dos maiores mestres do lápis de todos os tempos. Mike Zeck entrou no lugar de Sal Buscema, no Capitão América, e no lugar do michelângelo Paul Gulacy, no Mestre do Kung Fu, o que só fez evidenciar ainda mais a canastrice artística do pulha.

E quando dois ou mais quadrinólatras se juntam, então? Saiam de perto. Não há mãe que os suporte. A minha, a do Leitinho e a do Marcellão que o digam. Eles travam debates acalorados sobre os destinos de seus heróis como se disso dependesse os destinos do mundo e de suas vidas. Discorrem sobre a plausibilidade de seus poderes, quais deles a ciência corrobora e seria capaz de emulá-los na vida real. Fazem prognósticos de qual sairia vitorioso num hipotético futuro embate. Imaginam o que fariam se adquirissem os poderes de seus heróis, que melhores usos fariam deles.

Conjecturam sobre íntimos e nunca mostrados detalhes anatômicos de seus heróis. O pinto do Coisa também é de pedra? O do Hulk fica maior quanto mais nervoso ele fica? O Tocha Humana usa camisinha de asbesto ou amianto quando vai dar aquela "chamuscada"? O do Thor fica duro por qualquer rabo de saia ou se faz necessária uma buceta digna para levantá-lo? O do Homem-Aranha esporra teia pra tudo quanto é lado quando goza?

Sim, meus caros, o bicho-homem, de forma geral, tem uma enorme fixação pelo membro viril. Muito mais ainda, o fã de HQs; a rigor, um bando de punheteiros que não comem ninguém.

Porém, que eu me lembre, nenhuma questão foi tão preemente quanto uma surgida, acredito, em meados da década de 1980. Nenhuma polêmica jamais se mostrou tão ferrenha ou radical : o formato do gibi. As dimensões, o tamanho das edições em que as histórias eram publicadas. Sobretudo, entre dois deles : os chamados "formato americano" e "formatinho".

O formato americano, de dimensões 26 cm x 17 cm, é o formato no qual as histórias são publicadas nos EUA, e que, para eles lá, só deve se chamar "formato", mesmo. É para esse formato que todos os elementos da história - desenhos e balões de falas - são pensados e projetados originalmente.

O formatinho é uma adequação brasileira do primeiro, menorzinho, menos dotado, mais subnutrido, com vistas a baratear o custo e o preço de capa de cada edição. O formatinho foi extensamente praticado pela Editora Abril em seus áureos tempos e tem dimensões de 19 cm x 13,5 cm.

Diziam os mais puristas, os militantes do formato americano, que a redução no tamanho implicava na supressão de elementos das páginas originais. Que partes dos desenhos muitas vezes eram cortadas para o ajuste ao formatinho, assim como o conteúdo dos balões de falas, resumidos ou truncados, segundo eles.

Na época, eu com meus 15, 16 anos, nem sabia dessas coisas, ou mesmo me importava com elas. Pouquíssimos tinham acesso a material vindo de fora para efeito de comparação. Além disso, para mim, que economizava o do lanche e o do ônibus para comprar gibis, o formatinho tinha um tamanho que bem cabia no meu bolso. Sem contar que cada edição em formatinho da editora Abril tinha 84 páginas e trazia três ou quatro histórias de diferentes personagens. Em terras de Tio Sam, o formato americano contava com 32 páginas (umas 10 de propaganda) e trazia uma única história, só do personagem título. Muito mais caro ainda.

Não sei se essa peleja persiste até hoje. Não sei nem mesmo qual ou quais editoras estão de posse do direito de publicação dos super-heróis. Hoje, particularmente, se fosse voltar a ser um leitor assíduo, preferiria o formato americano. Não por purismos, melindres ou pruridos. É que, com 55 anos, mesmo com óculos enxergo mal pra caralho "de perto". Para mim, o formatinho hoje é pior que bula de remédio.

Contudo, há um fato que eu tenho certeza que apenas raríssimo leitores conhecem. E bota raríssimos nisso. Primeiro porque foi uma situação que se manteve por muito pouco tempo, apenas sete meses. E, segundo, porque faz muito tempo, e quem viu ou já está morto ou está com Alzheimer e não se lembra. 

Antes do formatinho, e muito antes do formatão, houve um formato intermediário. Também utilizado pela editora Abril, bem no início do que viria a ser o seu reinado das HQs de super-heróis. Entre julho de 1979 e janeiro de 1980, período correspondente às edições de 1 a 7 de Heróis da TV e de Capitão América, a Abril publicou os heróis em formato 21 cm x 14 cm. O gibi do Capitão tinha 50 páginas e o Heróis da TV, 132. Abaixo, as edições de 1 a 7 de Heróis da TV, perfeitamente preservadas em naftalina.

O que me fez lembrar que eu, feito os puristas, também cheguei a maldizer o formatinho; por pouco tempo, um mês ou dois. E explico.

Os gibis tinham datas para chegar às bancas. O Heróis da TV chegava no dia 05 de cada mês e o Capitão América, no dia 20. Fã que eu era, em todos os dias 05 e 20, lá estava eu, saía da escola e já corria pra banca mais próxima. Se a edição atrasasse uns dias, eram dias de pânico e de agonia, eu já começava a tremer, a experimentar crônicos sinais de abstinência. Pois bem, quando peguei na banca a edição do Heróis da TV de fevereiro de 1980, a de nº 8, estarreci. Que patifaria era aquela? Ela estava menor. Em tamanho e em número de páginas, de 132 caíra para 84.

Tamanho era o meu vício à época que cheguei a olhar torto para o jornaleiro, cheguei a pensar que o tal falsificara o gibi para vendê-lo a incautos. Cheguei a pensar isso mesmo. Não o comprei. Recoloquei-o no lugar e corri a outra banca, que eram muito mais numerosas na cidade do que são hoje. Só fui me convencer de que a mudança partira, de fato, da editora na quinta banca em que passei. Vencido, comprei o gibi. Cinco bancas... Não disse que, antes de tudo, somos uns desocupados?

Abaixo, lado a lado, os Heróis da TV nº 7 e nº 8, a mostrar a redução e a definição final do tamanho que viria a ser chamado de formatinho pelos séculos dos séculos, amém.

De onde se conclui, meus caros, que, para os fanáticos das HQs, desocupados e punheteiros que somos, o tamanho importa, sim. E importa muito.

Aliás, para a sua namorada, mulher, esposa etc, também. Ela só não fala porque, enfim, é o que ela tem pra hoje.



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