Dias de Chuva São Para se Ficar em Casa (parte final)

“E seu meio-irmão Loki, deixou de querer destruir-lhe?”

“O Loki... Ele nunca quis me fazer mal, realmente. Ele é só o irmão mais novo querendo atenção. Ademais sendo adotado. Sabe aquele engraçadinho da família? Aquele que põe sal no açucareiro, aquele que amarra bombinhas no rabo do gato, que dá pra você uma bala com tinta dentro?” 

“Sei, sim.”, dei um gole e lembrei de que eu fui um desses na minha infância. 

“Pois é, Loki era dessas crianças travessas, uma criança travessa com as habilidades de um deus, mas ainda uma criança. Ele nunca teve chance alguma de causar mal real, a mim ou a Asgard. O danado é quem animava os almoços da família aos domingos. Pai Odin se fazia de sério, cerrava seu único olho em reprovação, ralhava com Loki, castigava-o, às vezes. Porém sempre gostou de suas momices.”

“E o que é feito de Loki, hoje?”

“Cresceu, mortal. De criança traquinas, verteu-se em adulto triste. Não apronta mais das suas, anda abusando do mulso, deve fortunas em todas as tabernas de Asgard. No começo, ele mandava o taberneiro pôr a despesa na conta do Pai Odin, mas depois descobriram seu embuste e ele é persona non grata em todo o circuito boêmio de Asgard. Aliás, beber e mandar a conta para Pai Odin deve ter sido sua última traquinagem, depois disso, nunca mais um sorriso demente foi visto em seu rosto.” 

“Sempre pensei que vocês fossem parecidos com as famílias Reais daqui, que ainda existem em certos países, cada membro tem lá uma espécie de salário, uma mesada. Vocês não têm?” 

“Já tivemos, mortal. E como já tivemos!!! Na ocasião, Asgard era próspera, luminar, os impostos nos chegavam aos borbotões. Hoje, além das atividades de subsistência, nada é produzido, a população empobreceu, Pai Odin desonerou os cidadãos da maioria dos impostos, mal temos para a manutenção do palácio - só conseguimos manter uma velha Troll que faz limpeza uma vez por semana -, quanto mais para mesadas e salários. Eu, felizmente, ainda tenho umas reservas, vou ter uma confortável aposentadoria”. 

“E como Loki faz pra beber até cair, pra encher o cu de mulso?” 

Pergunta oportuna, inclusive. Lembrei naquele momento que eu também não tinha dinheiro para pagar todas aquelas ampolas que Thor tava tomando, menos de vinte tivessem sido, até aquele instante, e eu cortava meu saco. 

“Não sei ao certo, perdemos contato há muito tempo e não se pode dar muito crédito ao que o povo comenta, povo adora uma maledicência. O corrente é que Loki anda de amizades com os deformados Trolls, que desce aos seus infectos subterrâneos e com eles bebe e dança a noite toda. Intoxica-se de uma imitação de mulso, um mulso clandestino produzido por tais anões. Espanto não seria, corre das más-linguas , que, logo, Loki passeie por Asgard pisando em cascos ao invés de pés. Pai Odin certa vez baixou um decreto proibindo a fabricação clandestina dessa bebida, asgardianos de menos posses a obtinham por contrabando, certos Trolls amealharam fortunas, mas o decreto não pegou e, hoje, como todos os asgardianos são de poucas posses, Pai Odin faz vista grossa – a única que Ele tem – ao contrabando. Ao menos, a bebida é uma maneira barata do povo aliviar as mágoas, a bebida entranhada na cultura de um povo é um excelente auxiliar para um Rei a governar miseráveis”. 

“E não tem jeito, Thor? Essa ruína de Asgard é irreversível, definitiva? “ 

“Sabe do que Asgard precisa há eras, mortal? Uma guerra. Uma guerra que deixaria as suas duas Mundiais, reunidas, a parecer briga de vizinhas. Uma guerra poria desenferrujadas todas as engrenagens, todos se mobilizariam, as forjas, novamente aquecidas, paririam armas reluzentes, os campos abandonariam sua menopausa, abasteceriam cornucopiosamente as despensas, resguardo para um possível cerco, as mulheres se reuniriam em torno de seus tachos e caldeirões e, em meio ao seu intrínseco falatório confuso e estridente, cozinhariam para seus guerreiros, preparariam emplastros e poções para curá-los, os guerreiros colocariam os dentes a tomar sol, beijariam suas mulheres ao sair e, à noite, ao seu retorno, teriam seus paus duros a oferecer, as crianças teriam o principal, amigo mortal, as crianças teriam esperança!!!"

 “Esperança, Thor? Que tipo de esperança uma guerra pode trazer?” 

“A melhor de todas, mortal! A esperança de ficar vivo!!! Numa guerra, todos se ocupam de permanecer vivos. Uma sociedade não dura muito tempo sem guerras. Tanto os homens como os deuses só caminham com uma espada em seus rins.” 

“E os inimigos clássicos de Asgard, Thor? Ymir, o gigante do gelo, Surtur, o do fogo?” 

“Há! Há! Há! Há! Sim, eles invadem ainda a sala do trono do Pai Odin. Surtur às terças-feiras e Ymir às quintas. Revezam-se em intermináveis jogos de xadrez com Pai Odin. A maior ameaça que representam é darem um xeque-mate no Todo-Poderoso.”, e o conteúdo de outra ampola desapareceu goela abaixo. 

“Você disse que não existem mais batalhas, certo?” 

“Certo. Ninguém mais quer invadir e tentar a posse de um reino em ruínas”, e botou uma tristeza enorme na face, tristeza de quem já sabia o que eu iria perguntar em seguida. E eu perguntei, fui cruel. 

“E como fica o maior momento da vida de um guerreiro como você? Não terá mais direito à glória do Valhalla? Nada de Valquírias peitudas a buscar seu corpo tombado na justa? Nada de batalhas ao dia e banquetes e orgias à noite sob o teto do castelo de Valhalla?”, achei que tinha pegado pesado, mas Thor pouco se importou. Que merda vale o comentário descuidado de um mortal? 

“Verdade todo o seu dito. Nada de Valhalla para mim e os que ainda vivem. Morreremos, sim. Pela falta de fé, morte lenta, agonizante, inglória. Morreremos como seus anciãos, prostrados em um leito, cagando-se e se mijando, sufocados em nossos excrementos. Sem batalhas, sem sangue, sem Valquírias em cavalos alados. As Valquírias, hoje, cuidam dos netos, fazem tricô e ganham peso, tornam-se velhas obesas, de peitos caídos, e felizes.” 

Se deuses fossem capazes de pranto, Thor teria chorado naquele instante. Arrependi-me da minha pergunta. Busquei desviar o assunto, consertar a situação. 

“Olha, Thor, vamos mudar de assunto, certo? Nós viemos aqui para nos divertir. Eu tô indo de novo ao banheiro e na volta trago mais duas ampolas pra você. E sabe aquelas duas maravilhas com quem conversei há pouco? Pois então, estão querendo te conhecer, perguntaram se não poderiam sentar aqui com a gente. O que acha de, depois de ir ao banheiro e pegar as ampolas, eu chamá-las?” 

“Faça como quiser, mortal. Aqui é seu reino.” 

Não foi resposta das mais animadas, mas tomei-a como uma afirmativa. A guerra traz esperança... Só na idéia de deuses. A possibilidade de uma boa buceta ao fim da madrugada é que traz. Mijei cantarolando e cantarolando cheguei ao balcão do Laércio para mais duas ampolas e uma long neck. 

“O teu amigo acabou de ir embora, falou que não era possível esperar por você, a coisa me pareceu uma emergência”, me informou tristemente o Laércio, mais umas duas horas e Thor teria limpado o estoque do bar. 

“Como assim foi embora? Por quê?”, e um início de remorso começou a se avizinhar. Será que ele se ofendeu com minha rude pergunta? Burro!!! Sempre fui burro!!! 

“Só o que ele me disse é recebeu uma convocação de um tal Pai Odin. Achei estranho esse negócio de Pai Odin, ele me pareceu um rapaz distinto, nunca pensei que pudesse mexer com essas coisas de macumba. E como esse Pai Odin falou com ele? Aqui ninguém entrou já faz quase uma hora e o rapaz nem celular tinha.” 

Tá certo. Para o Laércio, distinto é quem lhe dá lucro; nesse sentido, ele nunca terá freguês mais distinto que Thor; eu nem queria pensar na conta. E aquilo da macumba só podia ter vindo mesmo do Laércio, pensar que Pai Odin é uma espécie de pai de santo, orixá ou que tais, pai Ogum, mãe Oxum, oh misifio... Só na cabeça do Laércio. 

“Tá, tá, Laércio!!”, apavorei-me, como iria conseguir uma buceta? Thor era meu chamariz, “E o que esse Pai Odin falou pra ele?” 

“Não entendi direito, ele falou muito rápido, e que sotaque mais excomungado esse seu amigo tem, hein?” 

“Fala logo, porra. Desembucha, caralho”. 

“Parece que a casa deles tá sofrendo uma invasão, um assalto, sei lá, e o velho tá chamando todos os filhos em socorro. Mas sabe o mais engraçado? Uma invasão, um assalto, seqüestro ou sei lá o quê, é uma coisa triste, certo? E o rapaz disse isso com um enorme sorriso, como se tivesse ganho a mega-sena acumulada. Deve ser louco esse seu amigo.” 

“Tem certeza do que ouviu, Laércio? Asgard está sendo invadida?” 

“Ei!!! É isso mesmo, é esse o nome que ele falou, que nome estranho para uma casa, não acha? Onde fica essa porra?” 

Deuses têm deuses? Se sim, os deuses de Thor haviam atendido às suas preces. E torci, naquele momento, para que ele perecesse naquela batalha, provavelmente a derradeira de Asgard, torci para que ele se acomodasse no aposento que lhe é de direito no castelo de Valhalla e torci para que, todas as manhãs, uma Valquíria-camareira chegasse até ele com o café, trocasse as suas roupas de cama e fizesse-lhe uma boa duma chupetinha. Sorte para você, amigo. 

“O rapaz deve mesmo ser louco”, prosseguiu o Laércio, “ficou tão eufórico que, tá vendo aquelas duas boazudas ali?, enlaçou uma em cada braço, as levantou do chão, tascou um puta dum beijo em cada uma e saiu quase derrubando a porta.” 

Olhei para as duas e elas estavam mesmo com caras de quem foram beijadas por um deus. Pensei em ir até lá fora, mas sabia ser inútil. Naquele momento, Thor já estava em Asgard, ou a caminho de lá, todo feliz Fiquei feliz por ele. Eu não terei minha chance de batalha derradeira, não terei Valhalla e nem Valquírias peitudas e de tranças. E era hora de acertar a conta com o Laércio, hora mais temida que a do Ragnarok, ao menos por mim.” 

“Foram quatro long necks e 26 ampolas, das de 600 ml.”, proferiu Laércio seu veredicto final, sua condenação sumária. 

“Mas teu amigo deixou algo aqui pra te ajudar nas despesas”, disse Laércio e jogou , sobre o balcão, uma moeda amarelada, que fez um som pesado, maciço, ao chocar-se contra o granito. 

“Digo a você que é ouro puro.”, garantiu Laércio com a segurança de um numismata. 

“E como pode saber, Laércio?” 

Laércio pegou a moeda no balcão e cravou-lhe os dentes. 

“Tá vendo? É puro ouro.” 

Tudo bem. Se existe alguém que, no século XXI, é capaz de saber o ouro apenas mordendo-o, esse alguém tinha que ser o Laércio. 

“E deve ter quase uns cem gramas aqui.”, avaliou Laércio, movimentando sua mão para cima e para baixo, sopesando a moeda, “dá para pagar todo o meu estoque e ainda sobra para uma fodelança da boa com aquelas duas boazudas.” 

Peguei a moeda da mão do Laércio e a observei. A efígie de Odin, o caolho, em uma das faces e Asgard e sua Bifrost na outra. Fiquei contente em saber que a Bifrost era real, o teleporte devia ser apenas uma opção, uma opção mais rápida, menos poética. Um deus que paga suas contas, pensei, um deus honesto... Que decadência. 

“Tudo bem que eu possa comprar essa sua espelunca com essa moeda aqui, mas hoje vou ficar lhe devendo, vou guardar a moeda comigo. Faz as contas.” 

E o Laércio as fez. Com vontade. Com gana. Acho que acrescentou até os 10% do garçon. Não existem garçons no bar do Laércio. Ele tava muito afim de ficar com aquela moeda. O que eu tinha no bolso cobriu a quarta parte da despesa, o resto eu paguei na semana seguinte. E o Laércio nem exigiu que eu assinasse promissória ou algo do gênero. E não foi por amizade nem pela solidez de um cliente de 12 anos, nada disso. Ele sabia que eu não fugiria do seu bar, sabia que eu voltaria na semana seguinte. Esperto, o Laércio, sabia que eu não tinha outro lugar pra ir. 

Tentei, à saída, conversar com as duas gostosas. Disse-lhes que meu amigo tinha dado uma saidinha rápida e que logo voltaria. Propus que, enquanto isso, elas se sentassem comigo. Não as convenci. Perceberam minha mentira logo de cara. Ele disse que não voltaria tão cedo, elas me disseram. Valeu pela ajuda, Thor, amigão. Não seria ainda daquela vez que eu pegaria alguma coisa no bar do Laércio. Que se fodessem as duas, estavam pensando o quê?, que enfiassem aquelas bucetas no cu. 

Sem buceta, sem Valhalla, sem dinheiro... 

E a noite terminou muito mais triste do que começou. 

Não obstante, o céu, a caminho de casa, não exibia única nesga de nuvem; era quase possível divisar uma figura, com uma marreta à cintura, a caminhar de alma leve por sobre o imperceptível arco-íris noturno. 

O céu, a caminho de casa, estava estrelado. 

Soberbamente estrelado. 




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