Dias de Chuva São Para se Ficar em Casa (parte 4)

 


Acabei de falar e fechei os olhos. Esperando pela marretada em minha cabeça. A marreta de Thor versus minha cabeça. Seria uma briga das boas. A marretada não veio. Veio apenas uma pergunta, a mais prosaica de todas.

“Mortal, onde posso, nessa estalagem, aliviar minha bexiga?”

Inacreditável, tão inacreditável quanto a existência de deuses. Eu achincalhei o cara e ele só pensou em mijar. Ou ele não entendeu picas do que falei ou considerou que eu não valia uma marretada de seu Mjolnir. Indiquei o caminho. 

Quanto cabe de urina na bexiga de um deus? A humana, em média, comporta uns 600 ml, medida exata, coincidência ou não, de uma ampola. Minutos depois, ele reapareceu e o Laércio lhe acenou do balcão com uma ampola em cada mão e um sorriso inédito. Nunca tinha visto o porra do Laércio sorrir antes. Mas se alguém foi capaz disso, esse alguém só podia mesmo ser um deus, inda mais um deus que tomou umas nove ampolas em pouco mais de uma hora. O Laércio vai erguer um altar pra esse cara, pensei. E eu nem tinha terminado minha segunda long neck, já quente e choca. 

“Tudo bem”, retomei a conversa, aquilo estava atravessado em minha garganta, feito espinha de peixe, “então, quer dizer que se nós, humanos, deixássemos de dar tanta importância ao sexo, se conseguíssemos, sei lá, sublimar tal necessidade, poderíamos nos tornar deuses?”, e tentei dar um tom mais cordial ao circunlóquio, medo da marreta. 

“Sim, e isso não é evidente? Não apercebe-se de que é por essas e por outras que eu estou, palavras suas, de aviso prévio?” 

“Ainda não captei, Thor.” 

“Nós, deuses pagãos, sempre escondemos isso de vocês, esse potencial de vocês nublado pelo sexo. E aí, do nada, chegou o tal do cristianismo e revelou esse segredo. Revelou pela metade, é verdade, mas já o suficiente para encherem suas recém-erguidas igrejas. E sangrarem as nossas.”, e acabou com a décima primeira ampola, sem conseguir esconder um lampejo de intensa saudade em seus velhos olhos. Saudades de suas igrejas cheias, supus eu, da fé de seus seguidores entrando feito anabolizantes por suas veias. 

“Peraí, de novo. Não sou grande conhecedor do cristianismo, mas não sei nada dele dizer que podemos ser deuses, pelo contrário, é uma religião fascista, só aceita um deus.” 

“Por isso lhe disse que só revelaram o segredo pela metade. Deuses é claro que não, religião nenhuma seria louca de dizer que cada fiel pode converter-se em um deus, seria, expressão de vocês, dar um tiro no pé. Mas o cristianismo permite os mártires, os beatos, os santos. Começa a compreender? O que eles dizem? Rejeitem, abstenham-se da fraca carne e serão santos, serão erguidos acima do humano, do primata, estarão ao lado de deus. Entendeu, agora? Revelaram apenas uma parcela da verdade, a que lhes convinha, mas foi o suficiente para arrebanharem seus milhões, de fiéis e de moedas.” 

“E vocês, deuses pagãos, ficaram vendo tudo isso acontecer sem fazer nada para impedir? Devo dizer que não simpatizo com pagãos nem cristãos, mas porque não lutaram pelo poder?” 

“E, por acaso, dá, um velho, importância ao que um recém-nascido faz? Claro que não. Os recém-nascidos nos parecem inofensivos, não vemos neles os futuros canalhas do mundo. E foi isso. Ríamos daquele novo bando intitulado cristãos, fazíamos pouco caso deles, não achávamos que eles fossem capazes de revelar tal segredo ao povaréu, nem desconfiávamos de que eles soubessem desse segredo. Quando vimos, já era tarde. Nada mais havia para reverter. Quando um segredo é revelado, não adianta correr depois a desmentí-lo. No momento em que percebemos, já era tarde. Lá estavam aquelas hordas de cristãos açoitando as próprias costas com chicotes de pontas metálicas, amarrando a cabeça do pau até estrangular, confeccionando cintos de castidade para suas mulheres, que acabavam por traí-los pelo cu. Lá estava a primeira leva de santos assexuados a fazer milagres. Estávamos perdidos, mortal, irremediavelmente.” 

Era a minha vez de esvaziar a bexiga. Deixei Thor lá na mesa, iniciando sua décima quarta ampola. Enquanto mijava e mirava as esferas de naftalina no fundo do mijadouro, fiquei pensando no que aquele deus maluco tinha me dito, e tudo era muito coerente. Esvaziada a bexiga, sacudido o pau, peguei mais uma long neck com o Laércio. E mais duas ampolas pro Thor. Notei que o bar estava “lotado”, umas 30 pessoas, senão um recorde, perto disso. Assim que sentei-me à mesa, notei duas gostosinhas vindo e olhando em nossa direção. Nossa é o cacete. As duas passaram e tiveram olhos fixos só no Thor. E ele nem aí. Como nem fosse com ele. Quantas bucetinhas ruivas, macias e cheirando a bacalhau norueguês aquele cara já não tinha comido? Se ele acha que me convenceu com aquela lorota de que deuses não são afeitos aos prazeres sensuais, se enganou. 

Pois não são projeções otimizadas de seus fiéis, os deuses? Evidente que aquele cara curtia uma bucetinha, inda mais com um martelo daqueles. 

“Cristo, então, é o responsável pela derrocada de vocês todos, os pagãos. Vocês devem odiar esse cara.”, fiz-me de solidário ao deus em vias de extinção. 

“Cristo? Quem é capaz de odiar esse menino?” 

“Mas ele não tirou seus fiéis, não minou seus poderes?” 

“Quem disse isso a você, mortal? O cristianismo é que cortou nossos pescoços. O Cristo, não. Ele e o cristianismo não tem nada a ver um com outro. Usando outra de suas expressões, em nada se assemelham o cu e as calças.” 

Thor, sem aviso, levantou-se e se pôs-se a dançar ao compasso da música executada pela banda ao palco, um choroso blues, blues do Mississipi. E aquele ogro executou inusitados movimentos lentos, delicados e marciais ao mesmo tempo, chorosos como o blues que entupia o ambiente. Sabe-se lá em que ele pensava. Umas cinco mulheres, no mínimo, teriam se despido e trepado com ele, lá, no palco, se ele houvesse pedido. Terminada a música, passou pelo balcão do Laércio e rebocou mais duas ampolas até a mesa. 

“Conheci esse menino Cristo, mortal. Não tinha como não gostar dele. Um garoto de boa índole, gente finíssima, apesar do pai. Amigo dos amigos, chegado também numa taberna, sabia fazer um vinho excelente. Só um defeito: falava demais, adorava falar, não podia ver um montinho de terra, uma pequena elevação que fosse, e já se abancava em seus discursos, em suas histórias.”, e sugou mais meia ampola com uma expressão doce em seu rústico rosto, de quem fala das travessuras de um irmão mais novo, bem mais novo. Que idade teriam os deuses nórdicos? 

“Não pense”, continuou Thor, “que ele concorda com toda esse esquema, essa religião que estruturaram em volta de seu nome. Não concorda, não.” 

“Como assim não concorda?” 

“O menino foi um inocente útil, um bem-intencionado que teve seu carisma usado pelo próprio pai, carisma que o próprio pai já não tinha, o pai andava meio queimado desde o velho testamento. O velho Avohai não inspirava confiança há tempos, precisava de um novo marketing, e Cristo foi sua nova embalagem, seu cabo eleitoral. Quando o menino se deu conta, já era tarde, pregos o embutiam à grotesca cruz. Estive presente à sua crucificação, quis impedir, mas naquele lugar ninguém acreditava em mim, ninguém me conhecia, logo, eu era mais fraco que o mais fraco dos mortais presentes. Vi o menino ser pregado. Está registrado que um dos soldados deu de beber a Cristo, vinagre. Era vinagre quando foi colocado na cuia, era vinho ao tocar a boca dele. E adivinha quem fez a transubstanciação? Eu e Mjolnir também temos nossos truques. Era o mínimo que eu podia fazer pelo moleque. E o máximo, também. Mas meu vinho nunca foi tão bom quanto o dele. O meu dá uma ressaca desgraçada no dia seguinte.” 

“Tá, tudo bem, sei que Cristo não fundou religião nenhuma , foi Pedro, mas como sabe que ele não concorda?” 

“Já encontrei com o moleque várias vezes depois de seu calvário. E ele, acredite, arrepende-se do que fez. Se soubesse em que transformariam suas palavras, ele teria ido morar em algum confim do deserto com sua Madalena e quantos filhos Seu Pai lhes desse. Seu Pai, porém, vaidades de um velho canalha e decrépito, não estava disposto a ser avô.” 

“Encontrou com ele? Mas não é dito que ele ascendeu e tomou a direita de seu pai? Tá me dizendo que ele anda por aí?” 

“Sim, durante um tempo, ele ficou mesmo lá, ao lado do pai dele, mas nem Cristo tem paciência pro velho e, de vez em quando, sai para dar umas voltas, beber um pouco. E tentar entender o que fizeram com seu nome e palavras. Cada vez que ele passa defronte a uma igreja, ele chora compungido, de desgosto.” 

“Mas ele não pode simplesmente chegar até, sei lá, o Papa e desfazer tal equívoco, pronunciar-se mundialmente e dizer do real sentido de sua jornada?” 

“Há! Há! Há! Há! Cristo procurar o Papa? Acha que o moleque é louco? O Papa nem o receberia, chamaria sua Guarda Suíça e ordenaria que o botassem em camisa-de-força e o esquecessem nas catacumbas do Vaticano. Se o moleque contasse tudo o que sabe, acabariam as igrejas, e os sanguessugas do sangue de Cristo ficariam sem seus empregos, seus luxos, seus efebos, seus bordéis em Castelgandolfo.” 

Levantou como só um deus pode levantar, caminhou até ao balcão como só um deus pode caminhar e recebeu novo sorriso do Laércio como só um deus recebeu até hoje, eu nem sabia que o Laércio tinha dentes. Minto, sabia sim. Às vezes, ele rosna para alguns clientes. Voltou com mais duas ampolas e outra long neck. 

“Toma, amigo, lembrei de você.” 

“Diga, Thor, você encontrou Cristo muitas vezes?” 

“Sim, várias e várias. A última tem uns 300 anos, numa bodega na França. Eu cheguei e ele estava numa acalorada discussão com um janota de nome Descartes, estava ensinando ao cara sobre uma tal de dúvida racional ou coisa que o valha. Quando me viu, abandonou o almofadinha e me abraçou. Mortal, poucas vezes lembro de ter bebido tanto quanto àquela ocasião. O moleque é bom de copo. Mas percebi que ele bebia por tristeza, por desgosto. Ele estava lá, forte como um viking, forte como eu era quando tinha meus 1700 anos, mas extremamente frágil, derrotado pela culpa que sentia, a palavra dele se propunha ao esclarecimento e não ao controle, à tacanhez. Sabia, amigo mortal, que o moleque já se suicidou várias vezes, de remorso?” 

“Pára com isso, vai. Cristo, um suicida? Tá certo.”, dei um bom gole e varri o ambiente com os olhos, em busca de alguma incauta. Nada. A situação estava feia, normal no Laércio. As duas únicas comíveis só tinham olhos para o Thor, apesar de toda a feiúra dele, apesar daquele cheiro de pele podre de suas roupas. 

“Por que a descrença em minhas palavras, mortal? Vocês tem um caso parecido aqui na sua terra. Um inventor, eu acho. Criou essas máquinas voadoras e quando viu que elas estavam sendo utilizadas para matar pessoas, suicidou-se, não foi?” 

“É, é o que contam por aí”. 

“Pois então, o mesmo remordimento levou o moleque a se matar várias vezes, mas, no caso dele, isso não adiantava. Uns dias depois, ele sempre ressuscitava. Acabou desistindo de se matar, a última foi há uns mil anos.” 

“É bom ver que você não guarda rancor, Thor.” 

“E para quê? O moleque é gente boa, e a vez dele também vai chegar, como a minha chegou.” 

Uma das gostosas acenou pra mim, encostada em uma coluna, para que eu me aproximasse. Falei pro Thor que já voltava e a gostosa me perguntou se ela e a amiga não podiam se sentar à nossa mesa. Resolvi dar uma de difícil, até porque não era por mim que elas estavam meladas. Disse que meu “amigo” estava com graves problemas familiares e estava desabafando comigo, que não era o melhor momento para elas irem até nós. Voltei para a mesa; Thor já entornava, sei lá, a décima oitava ampola. 

“E como ficam vocês nessa situação de deuses esquecidos?” 

“Nós vamos tocando a vida, amigo mortal. Asgard ainda persiste. Não é mais a cidade dourada, mas conserva ainda seus atrativos. Nós somos deuses no banco de reservas, olhando os novos jogarem suas peladas. Não participamos mais de batalhas, quem iria querer combater sombras? Mas ainda encontro amiúde com Balder, Frandal e Hogun para uma noitada de mulso. O volumoso Volstag, quando a mulher e os doze filhos deixam, também se junta a nós e passa a noite a desfiar suas divertidas mentiras. Mas já não é a mesma coisa. E esses nossos colóquios se tornam cada ver mais raros, mais espaçados. Balder prefere se enfurnar em suas matas, com seus animais e plantas; Frandal não perdeu a habilidade, mas sua galhardia de espadachim o abandonou, tornou-se instrutor de esgrima para as crianças asgardianas, crianças que nunca chegarão a ser adultos, que nunca usarão suas instruções de espada para nada; Hogun, cada vez mais severo e circunspecto. O mais afortunado, nunca pensei dizê-lo, acabou por ser o imenso Volstag, com sua hedionda esposa e suas insuportáveis doze crias, sua família toma todo o seu tempo, ele não tem tempo para ficar remoendo glórias passadas.” 

Fiquei pensando no que Thor tinha dito, que seus encontros com os amigos estavam adquirindo uma folga cada vez maior. Tenho amigos que encontro, quando muito, uma vez por ano, bienalmente, alguns mais ainda. O que seriam encontros raros para deuses? A cada cem, mil anos... Preferi mudar de assunto, a melancolia se instala quando dizemos de amigos ausentes. Até mesmo num deus. 

(continua...)




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