O Rei dá a luz um Demônio – A Gênese de Etrigan

 


Quando falamos em personagens místicos e sobrenaturais, da DC Comics, dois nomes vem as nossas mentes quase que instantaneamente, como por mágica: Constatine e Etrigan, O Demônio. O mais famoso mago das HQs nasceu como um mero coadjuvante da clássica reformulação do Monstro do Pântano pelas mãos de Alan Moore, sua presença foi tão marcante durante a saga Gótico Americano que recebeu o aval de ter seu título próprio, dando origem ao selo Vertigo e uma publicação com 300 edições de sucesso.


Porém, mais de dez anos antes, o rei dos quadrinhos, Jack Kirby, havia criado um personagem que pode não ter a mesma longevidade em publicações que Constatine possui, mas tem sua presença assegurada quando o assunto é misticismo ou bruxaria nas histórias da DC: Etrigan, o temido demônio rimador que dividiu sua essência e corpo com o especialista em demônios Jason Blood. Sua saga tem início na distante Camelot, no fatídico dia em que as forças de Morgana Le Fey empreenderam um derradeiro ataque contra o reino de Arthur Pendragon em busca do Livro da Eternidade e capturar Merlin, o poderoso mago invocou das profundezas um feroz demônio para defender a si e o reino, porém Morgana estava muito bem preparada. Sentindo a derrota iminente, Merlin ordenou ao seu demônio que se escondesse enquanto ele se retirava, até o momento em que fosse necessário ser invocado novamente, longe de todos Etrigan assumiu a forma humana de Jason Blood, retraindo as memórias da batalha e partindo pelo mundo afora para não ser mais visto novamente por centenas de anos, aguardando o chamado do mestre.

Esse é o ponto de partida da saga de Etrigan, antes de avançar mais cabem aqui alguns esclarecimentos quanto a sua criação nas mãos de Jack Kirby, vamos falar um pouco sobre os bastidores de sua gênese.O roteirista e historiador Mark Evanier, criador de Groo, o Errante, foi aprendiz de Kirby e acompanhou a criação do personagem, no primeiro volume de Lendas do Universo DC: Jack Kirby, dedicado a Etrigan, temos uma introdução onde ele narra detalhadamente como tudo aconteceu.


Resumidamente, no inicio dos anos 70, Kirby produzia para a DC a saga da sua célebre criação: O Quarto Mundo, que envolvia Os Novos Deuses, Povo da Eternidade e Senhor Milagre. Os títulos eram produzidos bimestralmente, situação que deixava o Rei com algum tempo de sobra, um consenso entre todos os que tiveram a oportunidade de trabalhar com ele era a estúpida velocidade com a qual produzia os seus materiais, mantendo sempre a qualidade admirada até hoje, deixando um legado de mais de 25.000 páginas desenhadas. Carmine Infantino, editor da DC na época, precisava de alguma coisa que preenchesse esse tempo livre que Kirby tinha, em uma reunião pediu a ele novos projetos, seguindo a linha da ficção científica, sugerindo algo baseado na saga do Planeta dos Macacos, dessa ideia nasceu Kamandi, O Último Garoto da Terra. A DC gostou da ideia, mas queria mais alguma coisa, algo inspirado no crescente interesse em gibis de monstros e temáticas sobrenaturais, como House of Mystery e The PhantomStranger.


Kirby trabalhava com praticamente tudo o que lhe era proposto, assumia o título como um objetivo pessoal de fazer dele único, vendável, um sucesso, porém ele não estava se sentindo muito a vontade com os temas sobrenaturais e como as HQs lidavam com eles naqueles tempos, só que se lhe dessem um desafio, ele o agarrava, segundo suas próprias palavras: “Carmine quer um quadrinho sobre um demônio? Ótimo. Vou dar a ele. Vai até se chamar O DEMÔNIO!” e passou a pensar em como seria essa nova série, durante um jantar ele começou a explicar para a família e sua equipe de assistentes toda a história sobre um homem chamado Jason Blood, suas características e os coadjuvantes envolvidos, nesse instante nasceu Etrigan, O Demônio.

Mais uma vez mostrando por que é chamado de Rei, Kirby mergulhou em sua ideia logo em seguida, para o visual de Etrigan ele buscou uma imagem de uma história do Príncipe Valente, onde o personagem precisava de um disfarce, uma máscara horrível, para isso retirou a pele de um ganso, virou do avesso e a esticou por sobre a cabeça, conseguindo um efeito impressionante que inspirou Kirby a reproduzir para o personagem, com o tempo a imagem ficou quase fiel a inspiração, reunindo as artes e parágrafos da primeira edição, junto com o material para Kamandi, Kirby entregou para os editores.


Eles gostaram de imediato e deram sinal verde para a produção das primeiras edições, só que a menina dos olhos dele era sua série do Quarto Mundo e tinha esperanças de que ficasse apenas nos argumentos com outros artistas trabalhando em seus textos, o que o Rei não esperava era o fato de que os chefões da editora terem gostado mais dos novos personagens do que o próprio Quarto Mundo, resultado: veio a ordem para Kirby dedicar-se integralmente aos seus novos rebentos que seriam títulos mensais. Abalado por ser obrigado a se afastar do seu amado universo do Povo da Eternidade, Kirby dedicou-se a se aprofundar na sua nova criação e no novo cenário de terror e misticismo que estava criando. Em pouco tempo superou a mudança e depositou todo seu talento no novo herói das trevas da editora e o resultado nós podemos verificar nesse primeiro volume, é o comprovado talento de Kirby para uma narrativa recheada de tramas macabras, retratadas com sua arte inconfundível, que nos leva a ficarmos fascinados com o mundo de Etrigan e Jason Blood, sua amaldiçoada contraparte humana. A dedicação dele era tanta que ele mesmo era responsável pelos argumentos, arte e edição das histórias, Mike Royer apenas arte-finalizava, Evanier realmente foi um homem de sorte por poder acompanhar e trabalhar com esse mestre.

YarvaEtriganDaemonicus!

Em setembro de 1972 é lançada a revista The Demon com a primeira aventura de Etrigan, nesse começo vemos os últimos momentos de Camelot, prestes a cair diante das forças de Morgana Le Fey, cujo objetivo principal era capturar Merlin e o precioso Livro da Eternidade, para se defender, Merlin invoca Etrigan e lança o demônio para a batalha, é o traço de Kirby nos seus melhores momentos, são passagens breves, mas os cenários e expressões inconfundíveis do seu traço marcante não deixam de ser admiráveis. Quem conhece HQs, admira os estilos de desenhistas como John Byrne, George Pérez e Neal Adams, sabe como cada um destaca o talento nos seus trabalhos, mas Kirby criava obras de arte quando desenhava, Etrigan é um grande exemplo disso.

O feiticeiro sente que precisa se retirar, entrega um pedaço de papel ao demônio e lhe passa suas últimas ordens antes que a bela Camelot seja devastada definitivamente, foi seu único recurso para retardar o avanço de Morgana. Afastado da batalha, o ser infernal passa por uma mudança e Jason Blood passa a caminhar sobre a Terra, com um fardo milenar sobre os ombros e um passado misterioso obscurecido em sua mente.

Passamos para a Gotham do século XX, onde o demonologista Jason Blood realiza investigações sobre o seu misterioso passado, somos apresentados ao time de protagonistas que passaria a acompanhar a jornada dele em busca de respostas: o místico Randu, o despreocupado empresário Harry Mathews e a bela mocinha Glenda Mark, o que nenhum deles desconfia é que Morgana também está presente, manipulando os acontecimentos nos bastidores na sua busca pelo Livro da Eternidade de Merlin.

Uma festa em seu apartamento é interrompida pela chegada de um estranho viajante de posse de um mapa e uma invocação demoníaca, Jason o acompanha às ruínas de um antigo castelo, ambos sofrem diversos ataques, até ele ser guiado a uma misteriosa tumba e, ao ler as antigas inscrições, a invocação faz o demônio Etrigan surgir novamente para lutar.

Com esse empolgante ponto de partida, começamos a acompanhar Jason e Etrigan viajando por diversos lugares e enfrentando as mais estranhas e sinistras ameaças sobrenaturais, como Morgana e o retorno de Merlin para caminhar ao lado do demônio, seguindo a temática do Médico e o Monstro, Etrigan surge para o combate quando as coisas ficam extremamente ameaçadoras para a frágil forma humana de Jason, trazido pelas palavras “yarvaetrigandaemonicus”, ou “Invoco o Demônio Etrigan” em forma bem reduzida, e voltando a forma humana por meio de outra: “Afasta-te, Etrigan. Dá lugar à forma vilã”, os diálogos são envolventes e nem um pouco cansativos como alguns materiais mais antigos, hoje em dia podemos perceber que o excesso de textos explicativos dos narradores foi aos poucos sendo substituída por mais e mais quadros de ação e poucas palavras, nesse sentido Kirby sabia como cativar a atenção do leitor.

Nas oito histórias desse primeiro volume somos apresentados a uma galeria de vilões sinistros, além da poderosa Morgana, Etrigan enfrenta monstros, bruxas, o culto do Olho Mestre e os Reencarnadores, a ameaça do Duque de Ferro e Meg, a Feia; a maldição do Uivador, a chegada do Menino Bruxo Klarion, o retorno de Merlin e o Fantasma dos EsgotosFarley Farfax. O que não falta é cenas de ação, seres das trevas e mistério, cabe mencionar a Criatura do Além, uma entidade que assume a forma do maior medo da sua vítima, fazendo com que ela acabe morrendo de pavor, para quem já leu A Saga do Monstro do Pântano de Alan Moore (Não leu? Vergonha) irá reencontrá-la na forma do Macaco Rei, a entidade que assombra o centro para crianças especiais onde AbbyCable trabalha e é novamente combatida por Etrigan, uma das melhores histórias do Monstro onde Moore trabalha com a criação de Kirby de uma maneira sensacional, é mestre homenageando mestre. 


A criatura no traço de Kirby e depois em Monstro do Pântano


Meu único ressentimento com esse lançamento da Panini é a falta de cuidado com a edição em termos de tradução e letreiramento, em alguns pontos balões de fala são trocados, letras somem entre as palavras e até o título de uma história fica difícil de entender por faltar parte do seu texto, para uma edição de mais de 200 páginas a R$ 29,90 é um descaso com o investimento do leitor e desrespeito com o material clássico apresentado. Mesmo assim é uma homenagem ao talento do Rei Kirby na série Lendas do Universo DC, melhor do que o apresentado anteriormente, Super Powers, que leva o nome de Jack, mas não é uma obra 100% criada por ele, vale por ter a chance de ver os maiores heróis da DC sendo trabalhados pelo Rei, não é um material que virou uma lenda, como a saga do Demônio Rimador e o seu mestre, Merlin. Falando em rimas, um detalhe interessante é que uma das maiores características de Etrigan, falar sempre rimando, não é de sua origem, isso acabou vindo como tempo, por isso não estranhem por ele falar de forma normal quase o tempo todo.

No próximo e último volume teremos a continuação das histórias e das aventuras do demônio mais famoso dos quadrinhos: Etrigan.

Mude! Mude!

Ò forma humana, que o poder irrompa da carne mundana!

Que o sangue ferva no coração da chama!

Afasta-te, forma vilã!

E dá lugar ao Demônio Etrigan!




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https://planetamarveldc.blogspot.com/

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