Aquela Que Matou Não Só o Guarda


Quando se quer dizer que uma bebida, em especial uma cachaça, é muito ruim, tão amarga de tragar, daquelas que se dermos um gole pro santo, ele nos roga uma praga eterna, lança-se mão, muitas vezes, da popular expressão "aquela que matou o guarda".
Quando ingressei no serviço público, há 20 anos, havia, na escola em que me efetivei, um professor de Matemática, em vias de se aposentar, que era uma daquelas figuras raras, falante, sempre de bom humor, conversador e exímio contador de lorotas, o Orlando Carrara, ou, como era conhecido, o Seo Orlando. O Seo Orlando conhecia (talvez ainda conheça, talvez ainda esteja vivo) mais "causos" que o Rolando Boldrin.
E foi numa das muitas vezes em que me sentei com o Seo Orlando à mesa de um boteco para tomar uma cerveja que ele me contou a origem da expressão "aquela que matou o guarda". Segundo ele, a história remonta à época do Brasil Império, aos tempos de D. João VI. Contou-me, entre um gole e outro de uma ampola geladíssima de Belco, que houve um guarda, da guarda pessoal da infanta Carlota Joaquina - mulher de D. João VI, mãe de D. Pedro I -, cuja esposa há muito desconfiava de que o marido estava a fazer muito mais que a segurança da Princesa do Brasil, há muito desconfiava de que o guarda estava era "guardando" na Carlota. Tomada pelo ciúme, a esposa traída deu fim à vida do marido, do guarda. Nome da corna braba : Canjebrina. Outro termo muito feito em sinônimo para a cachaça. Ou seja, a Canjebrina matou o guarda. Daí para a consolidação e a consagração popular da expressão foi um pulo : "aquela que matou o guarda".
Até hoje nunca fui atrás de verificar a veracidade do causo do Seo Orlando, mas ainda que não seja verdade, é uma história boa demais para ser jogada fora. Adotei-a como real e fim de papo.
E como nada muda no Brasil, como no Brasil a História não é cíclica e sim emperrada, como o Brasil de hoje ainda é o Brasil Império, "aquela que matou o guarda" continua livre e a cometer das suas.
Evoluiu, "aquela que matou o guarda", diversificou-se ao longo do tempo e hoje não mata só o guarda. Mata bancário, dona de casa, comerciante, pedreiro, advogado, aposentado etc.
Eis a verdadeira "aquela que matou não só o guarda" : cerveja Belorizontina, da cervejaria Backer. A cerveja serial killer. Com quatro mortes já comprovadas e mais dezesseis internados já no bico do corvo.
Uma grande duma cagada, duma displicência, dum descaso, que, certamente, jamais serão punidos adequadamente, fez com que lotes e mais lotes do sacrossanto líquido fossem contaminados com as substâncias dietilenoglicol e monoetilenoglicol, compostos de ação anticongelante muito usados como aditivos em combustíveis automotivos em lugares de climas frios, em lubrificantes, na produção de cosméticos etc.
Na indústria cervejeira, podem ser usados - embora o uso do etanol puro ou do propilenoglicol sejam mais costumeiros - como aditivos da água que circula pelas serpentinas responsáveis pelo resfriamento da cerveja. "Para a cerveja chegar perto da temperatura de 0º C, precisamos que a serpentina esteja a -5º C ou -6º C. Com a água pura, ela congelaria, por isso colocamos algum tipo de aditivo, um anticongelante", explica Carlo Lapolli, presidente da Abracerva (Associação Brasileira de Cerveja Artesanal). Mas, conclui Lapolli, "o anticongelante com a água gelada vai passando por serpentinas ao redor do tanque, não há contato direto com a cerveja".
Neste caso, houve. A intoxicação pelo dietilenoglicol e pelo monoetilenoglicol causa a Síndrome Nefroneural, cujo quadro de sintomas abarca náusea, vômito, dor abdominal e, finalmente, insuficiência renal e alterações neurológicas.
Agora começo a entender o porquê do meu amigo Jotabê, o ermitão de Belo Horizonte, de quem tenho a impressão de já ter sido um cara muito bom de copo, de já ter tomado muita Belorizontina em copo Nadir Figueiredo, ter decidido, "de uma hora pra outra", se tornar um abstêmio e, assim, ter permanecido, já há vários anos : sobrevivência. Jotabê, que não é bobo nem nada, decidiu que é melhor ser um sóbrio vivo do que um bebum morto. Mais liso que um bagre ensaboado, Jotabê não dá ponto sem nó, não bate prego sem estopa.
Antes que algum maledicente, que algum boca de urubu, diga que eu também logo encontrarei a minha nêmesis em uma latinha de boa e barata, me adianto ao agourento : muitos dos lotes contaminados eram de cervejas artesanais da cervejaria Backer, cervejinhas gourmet para degustador fazer bico e ir treinando a beiça pra mais tarde chupar rola. Minhas boas são baratas, sim. São pobres, porém limpinhas.
Fica, então, a dica para os suicidas deste meu Brasil dantes mais varonil. A sua passagem desta para pior, para o colo do capeta, não precisa ser traumática, violenta, ou espetaculosa. Não precisa se jogar do alto de um edifício nem cortar os pulsos nem meter um balaço calibre .38 na têmpora nem bater as botas em convulsão e babando feito cachorro louco por overdose de barbitúricos.
A sua voluntária partida para a terra dos pés juntos pode se dar de forma zen, relaxada, alegre, festiva, com música, churrasco e amigos entornando muita cerveja Belorizontina. De preferência num domingão, que é pra não ter que pegar no batente na segunda braba.
American IPA Pele Vermelha, cerveja artesanal, outro produto da Backer contaminado. A ampola de 600 ml não sai por menos de vinte e tantos contos.

Em tempo e voltando ao causo do Seo Orlando : belos fundadores tivemos, Carlota Joaquina, uma biscate, D. João VI, um corno, e o imperador D. Pedro I, nosso libertador, um filho da puta. Pãããããããta que o pariu!!! E vejam só que mocreia, que espanta-caralho era a Carlota. Morrer por causa disso? E olha que o artista responsável pela tela ainda deve ter caprichado muito. Pobre guarda....
E a bisca ainda carrega a foto do corno dentro de uma jóia ao pescoço.

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